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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
“I democratici che non vedono la differenza tra una critica amichevole e una critica ostile della democrazia sono anch’essi imbevuti di spirito totalitário. Il totalitarismo, naturalmente, non può considerare come amichevole alcuna critica, perché il principio dell’autorità finisce necessariamente col contestare il principio dell’ autorità stessa” – Karl Popper, La società aperta e i suoi nemici. Platone totalitário, Roma, Armando Editore, 1973, vol. I, pp. 265.
Não é a primeira vez que me sirvo da citação que acima transcrevi de Popper. Achei por bem voltar a fazê-lo no início deste texto pelo significado daquilo que ali se encerra no momento em que o Presidente da República se prepara para iniciar uma viagem à China. Penso que por ela se explica a necessidade deste texto ser devidamente interpretado e temporalmente situado, o que não permite leituras implícitas. Aqui, o que parece é e só vale o que cá está.
Dizem os jornais, a minha fonte de informação privilegiada, que o PR far-se-á acompanhar do vice-primeiro-ministro e líder do CDS-PP, do ministro dos Negócios Estrangeiros, do ministro da Economia e do ministro da Educação e Ciência. Para além deles, seguirão também viagem cerca de oitenta empresários, representantes de nove universidades, mais alguns falidos e desacreditados sempre à espreita de uma oportunidade de reabilitação, bem como os oportunistas da praxe e … uma fadista.
Tirando a inclusão da fadista, com lugar cativo à mesa de Belém, e de um ex-governador de Macau, que fez as manchetes dos jornais locais, nacionais e internacionais, entre outras razões, por ter criado uma fundação para si e os seus amigos com o dinheiro dos outros sem lhes dar cavaco - facto que será sempre bom recordar pelas repercussões externas que teve quando se anuncia uma missão “das mais importantes de sempre em todo o seu mandato, pelo alcance político, económico, cultural e académico de que se reveste” - , confesso que a composição da comitiva é de tudo o menos importante, embora registe que a Presidência da República continua a privilegiar esse lado frívolo das missões oficiais que consiste em convidar os amigos. Mas como em relação a estas coisas os chineses, mesmo quando registam, não comentam, importa que nos foquemos no essencial, deixando para os bastidores da visita e os sumos depois das massagens os pormenores sobre as encomendas de compras de joalharia, malas e relógios contrafeitos que farão sucesso entre os amigos na hora do regresso.
Seria bom que, já que se celebram apenas 35 anos do estabelecimento de relações diplomáticas com a RPC, que a comitiva nacional tivesse a noção do tempo e se recordasse que este não tem a mesma dimensão para chineses e ocidentais. A percepção desse facto implicará um módico de humildade por parte do PR, sendo obviamente dispensáveis declarações do tipo “eu fiz”, “eu disse”, “eu escrevi”, “foi um governo meu que”, e por aí fora, expressões que os portugueses bem conhecem mas que seria conveniente moderar nas entrevistas e discursos oficiais. Seria desagradável que por essa razão fosse depois necessário recordar-lhe alguns factos em relação às quais sofre de um défice crónico de memória.
Depois, seria conveniente que prestasse a devida atenção a quem está no terreno e mantém o distanciamento necessário para não embandeirar em arco com o primeiro brinde que seja feito à comitiva, ou o que lhe seja segredado pelos especialistas que avaliam a realidade pelo número de estrelas dos hotéis que lhes foram destinados ou o número de pratos dos banquetes. A China sabe receber os seus convidados e normalmente fá-lo com o mesmo desvelo em relação a todos, apesar de dificilmente esquecer gafes protocolares e o permanente sorriso dos seus dirigentes não seja particularmente compreensivo para com o sentido de humor nacional, o anedotário político e a bazófia de alguns empresários dados a contas de mercearia.
Também seria aconselhável que da parte do MNE, que apenas estará na primeira parte da viagem, e do ministro da Economia, se salientasse que a venda de imobiliário a preços inflacionados para pagamento de comissões no interior da China e em Portugal, salvar da insolvência alguns empresários próximos do partido do senhor primeiro-ministro ou dar crédito a autarcas medíocres e manhosos, não se confunde com a política de atribuição de vistos dourados, e que o investimento que o País privilegia é aquele que seja susceptível de criar riqueza, permitir a transferência recíproca de know-how e gerar exportações e postos de trabalho. Se há coisa que os chineses saibam fazer é criar riqueza, e sendo gente séria espera que do outro lado também esteja gente à altura, e não pacóvios manhosos e endinheirados à procura de vender gato por lebre, de um lugar ao sol ou de um motivo para se rirem no almoços do Gigi ou nas sardinhadas estivais da Comporta.
O conhecimento chinês em matéria de novas tecnologias, modernização de equipamento ferroviário, em especial no que à alta velocidade diz respeito, no momento em que se dão os primeiros avanços num projecto que visar ligar por via terrestre a China aos EUA, implicando a construção de um túnel subaquático no estreito de Bering, deverá merecer a devida atenção das autoridades portuguesas, atento o estado de decrepitude que atingiram os carris nacionais, a necessidade de se fazer avançar a alta velocidade para ajudar o nosso desenvolvimento a custos suportáveis e de se encontrar uma saída para a longa crise que atravessamos.
A defesa do interesse nacional em questões de índole técnica, económica e cultural não deverá, todavia, fazer esquecer a nossa responsabilidade em matéria de direitos humanos, defesa da liberdade de deslocação, manifestação, reunião e expressão, e a rejeição total e completa da pena de morte. Os péssimos exemplos terceiro-mundistas que nesta matéria têm chegado dos EUA, não podem deixar de constituir matéria de reflexão e de defesa do legado histórico das nações civilizadas em quaisquer circunstâncias.
Reservo nestas breves linhas uma palavra final para a situação de Macau. A degradação dos padrões de vida dos residentes, face ao que seria expectável e desejável há uns anos, é hoje um facto incontornável. Sem prejuízo das fartas responsabilidades que a última administração tem na actual situação – a política de vistas curtas levou a que fossem os chineses a promover após 1999 o desenvolvimento que deveria ter sido conduzido e liderado pela administração portuguesa antes da transferência –, Portugal não pode deixar de chamar a atenção com a necessária firmeza para a política de não concessão de autorizações de residência a cidadãos nacionais com base em argumentos espúrios e nos complexos pós-coloniais de alguns idiotas.
O cumprimento integral da Declaração Conjunta exige que Portugal alerte a RPC para o que está a acontecer e que tome uma posição inequívoca sobre a degradação ambiental e da paisagem urbana da RAEM, sobre o descontrolo na entrada e saída de turistas e o que esse descontrolo afecta na qualidade de vida de quem cá vive e trabalha, bem como para as dificuldades que a ausência de um política e de uma estratégia locais para o desenvolvimento imobiliário provocam em constrangimentos ao mercado habitacional. Impõe-se que a oportunidade seja aproveitada para sublinhá-lo sob pena de se permitir o desvirtuamento do sentido dos compromissos assumidos entre os dois Estados e de se entregar o respeito integral pelos seus princípios às “contingências do mercado”. A defesa da Declaração Conjunta na letra e no espírito não é uma defesa dos interesses nacionais. Bem pelo contrário, essa é uma obrigação de Portugal e da RPC assumida reciprocamente para com os residentes de Macau. E estes são todos os que aqui vivem e pagam os seus impostos, qualquer que seja a sua nacionalidade, a etnia ou a cor da pele.
Se para além disso for possível reforçar o compromisso das autoridades chinesas para com a língua portuguesa e lançar as bases para uma política mais consistente de sua defesa, ultrapassada diariamente em todos os serviços públicos locais pela comunicação em língua inglesa, já não seria mau.
Do nosso cônsul-geral espero que consiga transmitir aos responsáveis nacionais a necessidade de se encontrar uma solução aceitável que ponha cobro à patente indigência de meios humanos e económicos da nossa representação, incompatíveis com as responsabilidades nacionais e a necessidade de um reforço da nossa presença na Ásia no momento actual. É inaceitável que a legalização de um simples documento – reconhecimento de uma assinatura - leve uma semana e implique a quem não está cá a fazer turismo três deslocações, pelo menos, aos serviços consulares. E longas esperas. Ou que aos contratados locais que prestam serviço no Consulado sejam pagos salários ridículos para o nível de vida da cidade e aquilo que se lhes quer exigir. De igual modo, o que aconteceu com as obras de renovação da residência consular ou do novo auditório, por muito agradecidos que estejamos, e estamos, aos cidadãos nacionais e empresas que as financiaram e executaram, até pelo seu valor irrisório relativamente ao que estava em causa, ou por comparação com os juros que o país paga aos seus agiotas ou foi retirado aos bolsos dos reformados, não pode repetir-se e seria um mau princípio se a excepção se tornasse a regra.
Enquanto português e homem livre, condição que faço questão de diariamente sublinhar onde quer que esteja, resta-me desejar os maiores sucessos à viagem do Presidente da República à China, desde já me penitenciando pelo facto de não me predispor a levantar o convite que o Consulado colocou à disposição dos nacionais que queiram confraternizar com o visitante. O facto de não confundir a instituição com o seu titular não me obriga a fazer de hipócrita. Outros, mais dados ao lustre, estou certo que abrilhantarão os salamaleques, cumprindo esse papel com o habitual empenho e a sua inexcedível subserviência a quem transitoriamente manda e distribui comendas curriculares para seu próprio deleite e afirmação.
(Hoje Macau, 13/05/2014)