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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(Photograph: Biontech Se Handout/EPA)
Interrompo a ausência dos últimos dias chamando a vossa atenção para três curtas notas, que são ao mesmo tempo evidências do contraste entre a actuação do novo inquilino da Casa Branca face ao seu antecessor, à retórica confrontacional de Pequim e aos abusos que estão a ser cometidos em nome do rule of law na RAE de Hong Kong.
A primeira diz respeito à decisão ontem revelada pela Embaixadora dos Estados Unidos junto da Organização Mundial do Comércio (WTO no acrónimo inglês), Katherine Tai, de que o Presidente Biden deu instruções no sentido da suspensão das protecções da propriedade intelectual, de maneira a que possam ser disponibilizadas para todo o mundo, ricos e pobres, as patentes das vacinas da COVID-19, no que constitui um passo extraordinário no combate à pandemia.
Mas mais do que isso, os EUA não estarão apenas a partilhar patentes e tecnologia. Este é o culminar dos primeiros cem dias de governo do novo presidente, a pérola que brilhou quando se abriu a ostra.
Não sei qual será o efeito prático deste movimento. Estou, todavia, convicto de que este é um sinal muito forte no sentido do desanuviamento da tensão internacional, uma ajuda consistente aos países menos desenvolvidos e a transposição de um discurso inflamado e balofo para acções que podem fazer a diferença, ajudando os EUA a limparem a má imagem internacional deixada por Trump e a sua pandilha de cantinfleiros.
Em sentido oposto, o discurso cada vez mais belicista do mais alto responsável chinês. Pode ser que seja apenas um discurso para dentro e destinado a impressionar os seus fiéis, Taiwan e Hong Kong, em ano de grandes comemorações internas, embora seja difícil acreditar nisso.
A retórica da invencibilidade não é própria de quem defende a paz e uma coexistência pacífica e cooperante com todas as nações e povos do mundo, em especial se for acompanhada daquelas conferências de imprensa surreais dos porta-vozes do MNE chinês, plenas de ameaças e acompanhadas de exibições de força no Mar do Sul da China e no estreito da Formosa.
A forma como Pequim reagiu anteriormente a um simples pedido feito por Canberra de realização de uma investigação independente ao surgimento da COVID-19, que viria depois a permitir no âmbito da OMS/WHO, e o modo como agora suspendeu toda a cooperação com a Austrália a propósito do China-Australia Strategic Economic Dialogue, revela a utilização de dois pesos e duas medidas.
Iguais reacções não surgem quando em causa estão decisões da União Europeia ou dos EUA que colocam em crise interesses chineses, o que mostra como é fácil ser contido com os mais fortes e desabrido com os mais pequenos. Ou como se as razões de segurança nacional, quando seriamente invocadas, e não com uma cortina para outro tipo de actuações à margem do justo e do legal, constituíssem um exclusivo de um qualquer país.
Quando começar a fase da contenção de danos talvez seja tarde para se alterarem os sentimentos que, desgraçadamente, amiúde começam a surgir em diversos países relativamente a tudo que traga a marca identitária chinesa. É mau para a imagem do país, é mau para o seu povo, é mau para o desenvolvimento e o equilíbrio global.
Uma última nota para a decisão proferida pelo District Court de Hong Kong de aplicar penas de prisão a alguns activistas. Isso seria expectável tendo presente a natureza do regime, tudo o que aconteceu nos últimos dois anos e a forma desastrada como as autoridades locais e o Governo central lidaram com o problema.
Cada um fará a sua leitura, alguns apenas aquela que será compatível com os seus interesses pessoais.
Em todo o caso, não deixa de ser preocupante que um tribunal se permita, independentemente de se poder discutir se foi um motim ou não, condenar afirmando expressamente que não existe qualquer prova de que os arguidos tenham desempenhado qualquer papel efectivo no tumulto (riot).
Se a isto se somar a dispensa de uma jornalista por colocar perguntas difíceis em conferências de imprensa, começa-se a ter o filme completo da extensão da substituição do rule of law pelo rule by law.
Aos poucos, o circo das eleições presidenciais estadounidenses vai chegando ao fim.
Passada a fase do folclore, dos foguetes, do barbecue e da bebedeira, perdidas que foram mais de quarenta acções judiciais nos tribunais federais, num deplorável espectáculo de sombras em que se seguiu um guião escrito por um fantasma e com executantes medíocres, por cujo rosto escorria a tinta mais ordinária, chegou a hora da ressaca.
Torna-se evidentemente natural que a bebedeira não poderia ser eterna, pois todos sabemos que, também, nem o amor o é, sendo assim natural que assentada a poeira as coisas comecem a regressar à normalidade.
É verdade que nada voltará a ser como antes. Trump está politicamente morto, aguardando-se agora as exéquias. Obama não voltará; os Clinton e os Bush fazem parte dos livros de história. A página virou-se.
Neste momento, o palco pertence a Joe Biden. E por muita desconfiança que se pudesse ter relativamente às suas propostas, às suas capacidades físicas e intelectuais e à composição da equipa, o que ontem se viu justifica a mais fundada das esperanças.
Num discurso curto, claro e bem articulado, alinhavando as linhas de força da política interna e externa dos EUA para os próximos quatro anos, rodeado de gente devidamente qualificada, experiente e de uma honradez a toda a prova, Biden foi capaz de fazer em poucos minutos o que há mais de quatro anos não se via: apresentar um discurso de Estado sem floreados, mentiras, graçolas de mau gosto e ignorância.
No ouvido ficou-me a frase de que “America leads not only by the example of power, but by the power of the example”, o que não sendo tudo diz muito.
A partir de Janeiro veremos o que acontece, mas o simples facto de passar a haver um programa e uma agenda na Casa Branca, depois de quatro anos de bacanal político, delírio, insânia e balbúrdia melbrookiana são afinal uma pequena prova, se não da existência de Deus, pelo menos de que também a loucura não é eterna.
E este é um excelente sinal para o futuro. Para todos nós que ainda acreditamos nalguma coisa antes de nos levarem para a vida eterna.
Uma análise mais profunda ficará para outra altura. Agora trata-se tão só de saudar a vitória de Joe Biden e Kamala Harris nas eleições presidenciais estado-unidenses.
Depois de quatro anos fantasmagóricos, em que a rotação de pessoal na Casa Branca parecia a entrada e saída de pessoas na montanha russa de uma qualquer feira do Midwest profundo, enquanto um zombie com o cabelo pintado de amarelo se passeava pelo local, o resultado das presidenciais de 2020 é bem mais do que um simples regresso à decência.
É verdade que também o é, após quatro anos de indecência, em que a mentira, o ódio, a desinformação permanente, o desrespeito pelos valores mais essenciais da dignidade humana e a ignorância foram sendo espalhados como um vírus por todo o país e o mundo.
Mas onde não se vislumbrava uma saída foi possível traçar um caminho, e pacientemente percorrê-lo até surgir essa saída.
O fantasma do trumpismo, a besta, poderá continuar a pairar por aí como uma alma penada que já não fará qualquer diferença. Uma vez mais foi possível assistir ao triunfo da razão dentro das limitadas barreiras do sistema.
Importa então voltar a fazer a água correr, deixar a vida regressar à normalidade, retomar o equilíbrio, a ponderação da decisão e a serenidade nas escolhas, deixando de lado o radicalismo montanhês de Bannon e companhia, e esperar que os Estados Unidos da América, essa grande nação que tanto impressionou Tocqueville, possa libertar-se do demagogo ávido de poder e apenas preocupado com os seus interesses pessoais, de que falava George Washington, e regressar ao convívio da comunidade internacional, ao seio das nações civilizadas. De onde, apesar de todos os seus defeitos e limitações, nunca deveria ter saído.
Porque será sempre preferível uma democracia incompleta ao autoritarismo autocrático, policial e cerceador das liberdades dos novos candidatos a senhores do mundo.
"Look at what’s happening in Georgia, where Brian Kemp — the Republican secretary of state, who oversees elections — is running for governor against Democrat Stacey Abrams. In any other democracy, letting a man supervise his own election would be inconceivable."
"But with the crucial moment here, everyone should bear in mind what’s at stake. It’s not just tax cuts or health coverage, and anyone who votes based simply on those issues is missing the bigger story. For the survival of American democracy is on the ballot." (Paul Krugman, The New York Times)
Cristalino e certeiro, embora não seja só por lá que essas coisas estejam em jogo. Enfim, Krugman no seu registo habitual. A ler, enquanto não chegam os resultados finais.
Enquanto os números não duplicarem e for prevalecendo a mentalidade de troglodita é natural que estas "coisas" aconteçam. E que até sejam alvo de gozo por australianos. País de loucos.