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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Os anos passam e o Festival Internacional de Música de Macau regressa sempre na mesma altura. E isto é bom.
Na sala ouve-se a voz de alguém que convida em português a responder aos inquéritos que são distribuídos pelas assistentes. Para as pessoas se habilitarem a “valiosos prémios”.
Porém, suspeito que os subalternos só queiram falantes de língua chinesa a habilitarem-se aos prémios. Porque os inquéritos são distribuídos exclusivamente nessa língua. E só a opinião de quem responde aos inquéritos em chinês deve ser importante.
Em Jixi ou Xining também só distribuem à população inquéritos em chinês. Compreende-se. Um país é mais importante do que dois sistemas, como já nos ensinaram.
Fico é na dúvida se o FIMM será um evento internacional. Pergunto para mim se é verdade que existem duas línguas oficiais na RAEM. E, também, se num evento internacional com algum público que só fala inglês não seria conveniente que os inquéritos, além de incluírem as duas línguas oficiais, não deviam ser também em inglês? Tal como os programas dos espectáculos são trilingues.
As pessoas erram muitas vezes sem terem consciência de que erraram, só se apercebendo disso mais tarde. Os que têm a graça de um dia descortinar o erro. De o admitir e de o corrigir. Normalmente quando o mal está feito.
Deve ser esse o caso. Mas repetindo-se a asneira com uma impressionante regularidade não creio que seja incompetência.
Há quem me diga ser essa mais uma manifestação de patriotismo iluminado. Fará parte de uma estratégia.
Eu penso que é apenas, mais uma vez, um problema agrícola. Isto é, de cultura. De cultura intensiva da estupidez. Por isso se semeia e reproduz anualmente com tanta facilidade nos eventos musicais com a chancela do ICM. A terra é fértil.
No final lá virá o louvor. Toca a todos.
O sociólogo Hao Zhidong, antigo professor da Universidade de Macau, entretanto jubilado, deu no passado dia 18 de Abril uma interessante entrevista ao semanário Plataforma. Por se tratar de um académico chinês, profundo conhecedor da realidade da RPC, de Macau e do funcionamento dos sistemas e das instituições dos dois lados da Porta do Cerco, as suas declarações adquirem uma dimensão que se proferidas por um ocidental não teriam o mesmo impacto.
As conclusões a que o Prof. Hao Zhidong chegou com o seu estudo sobre a liberdade académica não constituirão novidade quando aponta como um dos factores da sua erosão o fenómeno da “comercialização do ensino superior”.
Trata-se de algo que é tão visível em Macau – em que o simples facto de alguém organizar uma conferência sobre direitos ambientais levando ao título a questão de saber se também se tratam de direitos humanos é susceptível de causar incómodos, não vá isso ter consequências na continuidade dos contratos de trabalho –, como será nos EUA – veja-se a acção do Instituto Confúcio neste país e o último relatório sobre a presença da China no respectivo sistema educativo –, na Austrália, no Canadá ou mesmo em Portugal, muito embora nalgumas instituições a acomodação e a subserviência sejam mais fulgurantes e inversamente proporcionais à vergonha.
O que chama mais a atenção nas suas palavras foi a evolução verificada na Universidade de Macau, o que tende a ser desvalorizado pelos seus responsáveis e pelos dirigentes políticos. Mas ainda quando disfarçado é motivo de conversa, comentário e discussão em círculos mais ou menos restritos.
Diz Hao Zhidong que foi tempo em que era fácil convidar pessoas de Taiwan de diversas correntes políticas para participarem em eventos académicos, e que actualmente há o risco, como já aconteceu, dos convidados serem à chegada impedidos de entrar. Num sistema que, para quem anda no mundo, cada vez menos se sabe se é o primeiro, o segundo ou o único.
Se o caminho seguido em Hong Kong pode de algum modo ser compreendido pelo extremar das posições dos grupos internos pró-Pequim e pró-independência, com consequências imediatas ao nível da representação parlamentar, bem como nos episódios de violência que se seguiram e nos veredictos judiciais que foram sendo proferidos, já em Macau seria impensável que o garrote autoritário tivesse necessidade de se manifestar da forma por que o fez.
Sem antecedentes de violência dignos de registo – os últimos com dimensão situam-se há mais de cinquenta anos e numa altura em que os regimes políticos vigentes na China e de Portugal eram bem mais fechados do que são hoje –, com uma população reduzida, uma sociedade tradicionalmente pacífica, conservadora, avessa aos conflitos, onde o silêncio, o seguidismo e a hipocrisia, por vezes também a desonestidade intelectual, são normalmente premiados, e em que se contam pelos dedos de uma mão as vozes dos que ousam discordar e apelar ao sentido crítico dos seus concidadãos, nada faria prever o retrocesso verificado na democratização de Macau, nem o aumento do controlo da liberdade académica.
Quanto a esta de nada servirá a alguns responsáveis que se instalaram por cá ainda no tempo pré-1999, e cuja reverência ao poder vigente em nada difere da que antes manifestaram ao último governador português, virem dizer que por lá se respira o melhor dos mundos em termos de liberdade académica.
Na RAEM, o sentimento de incumprimento de promessas anteriores, o reforço de mecanismos de controlo policial interno, com a desculpa da participação no esforço de segurança nacional (que sempre se cumpriu e a que sempre se foi sensível deste lado) e o ambiente de crispação latente que perpassa alguns sectores da vida pública, com especial incidência na actividade passiva e omissiva da Assembleia Legislativa (veja-se o que aconteceu com o décimo chumbo do projecto de lei sindical), por outro lado, acentuam o espírito sublinhado por aquele entrevistado de uma nova revolução cultural em marcha.
Porém, o ponto em que se mais se evidencia a teatralidade propagandística de algumas decisões prende-se com a forma como se tem vindo querer atribuir a Macau um papel que, tendo sido tentado antes sem sucesso, desde a fundação do Fórum Macau, e não obstante o empenho de uns quantos, se tornou mais óbvio ser forçado: o de constituir uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa.
Quanto a este chavão repetido sem sentido por muitos papagaios e catatuas, Hao pergunta para que precisa a China de Macau para fazer a ligação aos países de língua portuguesa, se pode fazer essa ponte sozinha. E, digo eu, como sempre o fez sem as dificuldades burocráticas e o atavismo dos interlocutores locais.
Em política ou em matéria de relações e negócios internacionais, a generosidade, ainda que camuflada, tem sempre um custo. E quando não é económico, em termos de liberdade académica ou de direitos fundamentais, assumirá uma matriz ideológica sem resultados úteis ao nível das comunidades destinatárias.
Isto pode não chegar para nos fazer reflectir sobre a cada vez mais previsível, e politicamente frágil, escolha do ainda Presidente da Assembleia Legislativa para ocupar a cadeira de Chefe do Executivo. Uma generosidade da Comissão Permanente da APN que deverá ser agradecida pelos súbditos locais.
Todavia, é quanto basta para se perceber o pouco tempo que o Presidente da República passará na RAEM no contexto da próxima viagem à China.
Não desvalorizando a importância do italiano, também feriado nacional, 25 de Abril só houve um e falava português.
Passaram quarenta e cinco anos, o pragmatismo continua a não se compadecer com a lamúria, arte em que localmente também somos exímios.
O pragmatismo adapta-se a tudo. É a nova peste negra. A nova revolução cultural a que se refere o Professor Hao. Acomoda-se aos tempos e segue em frente.
Os tremoços e amendoins rançosos que ontem distribuíam pelos bem-comportados de Macau são agora os nossos pistacchi (pistácios). Só a propaganda não muda. E é aí que ela conflitua com a liberdade. E a utilidade de alguns sacrifícios perante os resultados possíveis. Conhecidos e previsíveis.
Ainda assim um bom sinal para se voltar a estudar John Dewey e outros autores da mesma escola. Agora à luz do princípio “um país, dois sistemas”. E com um olhar nas mais recentes linhas da política externa portuguesa e nas expectativas dos residentes da RAEM. Um petisco.