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cegueira

por Sérgio de Almeida Correia, em 12.09.22

2917.jpg.webp(créditos: The Guardian/WPA/Getty Images)

Talvez muita gente ainda não tenha reparado, mas para além dos problemas cientificamente identificados causados directamente pela Covid-19 ao organismo humano, nas suas diversas variantes virológicas, existe um outro efeito colateral que se tem manifestado de múltiplas formas através da acção concreta de alguns governantes.

Nos primeiros meses da pandemia este efeito colateral não se evidenciou de modo tão evidente. O decurso dos anos permitiu a muitos países, alguns no seguimento de recomendações da própria OMS, a procederem a ajustamentos nas suas políticas. Foram estes ajustamentos que lhes possibilitaram compreender a natureza da doença, esse tipo de efeitos colaterais, e a necessidade de se tratarem rapidamente para fazerem regressar a normalidade às suas vidas quotidianas.

Houve outros, porém, que persistindo na chamada política de tolerância zero, ou mais recentemente do "zero dinâmico", não só não apresentam resultados positivos satisfatórios, como revelam um efeito de longo prazo designado por alguns cientistas pelo termo "cegueira covidiana caleidoscópica".

Os sintomas da doença são facilmente identificados pela análise de casos concretos, sendo que actualmente o flagelo é mais visível na região de Macau, onde os seus dirigentes ainda não se aperceberam da dimensão do problema e vivem numa realidade paralela da qual não conseguem libertar-se devido às consequências psicológicas e às deformações provocadas por essa mesma doença no globo ocular.

O custo desta nova forma de cegueira tem tido reflexos na reserva financeira de Macau, que no espaço de dois anos se viu reduzida em dezenas de milhares de milhões de patacas. Outros sintomas manifestaram-se na quase paralisação total da actividade económica, no aumento do desemprego e das falências, no crescimento das tendências inflacionistas, no abandono da RAEM de muitos quadros técnicos qualificados, na redução de trabalhadores não-residentes imprescindíveis para a normalidade da actividade de muitas empresas, na redução de falantes de língua portuguesa e outros idiomas estrangeiros, no desaparecimento de turistas, internos e externos, e, no que é particularmente grave, num aumento desenfreado de consultas públicas e da actividade legislativa ao nível dos meios de controlo da população, traduzido na proposta de revisão de leis que nem sequer chegaram a ser testadas no crivo da realidade com o argumento, imagine-se, de que não servem.

Esta última situação corresponde, grosso modo, ao caso de alguém que possui um Ferrari novinho em folha na garagem e nunca aprendeu a conduzi-lo, mas no dia em que resolve levá-lo para a rua, previamente, foi pedir a um mecânico de Zhuhai, daqueles que faz biscates ao fim-de-semana, para lhe mudar as velas e as pastilhas de travões com o argumento de que como o carro está parado aquelas devem estar gastas e é preciso aumentar a segurança em dias de chuva.

Essa forma de cegueira decorrente da chegada da Covid-19 à RAEM tem natureza caleidóscópica porque os pacientes, normalmente gente com responsabilidades políticas e administrativas, de cada vez que querem avaliar a situação, em vez de abrirem os olhos e olharem à volta, agarram num caleidoscópio, convencidos de que é um microscópio, e fecham-se numa sala com alguns crânios locais para estudarem cientificamente a realidade enquanto comem uns dumplings. O resultado é que como o caleidoscópio é um instrumento de óptica recreativa, os governantes não conseguem focar a crise e encontrar a melhor receita para resolverem os problemas da população.

Atentas as características intrínsecas do aparelho que usam, formado por múltiplos pequenos espelhos inclinados e fragmentos de vidro colorido, os governantes tendem a ver uma realidade colorida que se vai multiplicando até à exaustão sem que se apercebam do cerne do problema. À medida que vão rodando o aparelho vêem magníficas composições que lhes provocam o agravamento da cegueira, levando-os a ver nos vidrinhos encarnados os milhões de patacas das futuras obras públicas, nos amarelos imaginam hordas de turistas, nos verdes vislumbram os prémios das novas concessões do jogo, e nos azuis, curiosamente, vislumbram patos de plástico amarelo berrante com uma boina à Che Guevara a fazerem corridas no circuito da Guia.

Esta enfermidade é uma espécie de cegueira invisível, altamente viciante, que ainda esta semana, durante as festividades do Bolo Lunar (Chung Chao), apresentou resultados significativos com a queda em três dias consecutivos dos números de pessoas entradas em Macau. Números que, de acordo com a TDM, "ficam muito aquém das previsões mais conservadoras dos Serviços de Turismo", pelo que fácil é inferir-se que os caleidoscópios ao serviço da DST devem ser do modelo usado pelo IAM. A doença manifesta-se em termos tais que até simples previsões, ao nível de uma pequena aldeia chinesa, saem distorcidas sem que os espreitadores dos caleidoscópios se apercebam do grau de cegueira de que padecem. Um drama.

Em Hong Kong, em determinada altura, aquela forma de cegueira chegou a manifestar-se, mas terá havido um dia em que o número dois de Carrie Lam, e actual Chefe do Executivo, se apercebeu de que os resultados da acção política do seu governo não podiam ser avaliados com caleidoscópios comprados nas últimas férias em Hainão, pelo que logo venderam os sobrantes para terceiros, assim melhorando a visão global, os resultados económicos e o estado de espírito dos seus empresários.

Por cá, contudo, há quem tenha esperança no aparecimento de um antídoto que chegue com as primeiras visitas ao estrangeiro, desde o início da pandemia, dos dirigentes máximos do país. 

Admito que, apercebendo-se do que se passa lá fora, vendo as pessoas nos outros países a levarem uma vida normal, enchendo estádios, teatros, cinemas, aeroportos, praias, autódromos, recebendo milhões de turistas de todo o lado, com as economias a tentarem recuperar para níveis pré-pandemia, com o rei Carlos III a confraternizar e cumprimentar os seus súbditos, com total à-vontade e liberdade, sem o aparato da segurança, sem que se fechem as ruas à sua passagem, sem uma máscara KN95 e sem medo de qualquer ómicron; e com o Presidente Xi num périplo internacional, os nossos governantes possam ver para além dos caleidoscópios e dos vidros coloridos.

Oxalá que alguém, inadvertidamente, tropece e lhes dê um encontrão quando estiverem com o aparelho a fazerem as previsões para os feriados de Outubro. Pode ser que os caleidoscópios se estatelem e fiquem em cacos. Talvez seja essa a única forma deles poderem ir depois a um oftalmologista, recuperarem a visão, deixarem de seguir os programas pré-pandemia e pré-revolução cultural da TDM, e voltarem a ver as transmissões televisivas dos canais internacionais.

Ficávamos quase todos a ganhar. E digo quase porque só os vendedores de caleidoscópios iriam perder. Há sempre alguém que se trama.

Enfim, na verdade, estes, e as respectivas famílias, também já ganharam muito nos últimos trinta anos sem que se dessem, ao menos, ao trabalho de melhorarem os modelos que venderam à Administração desde o tempo de Rocha Vieira.

Como também não se deram ao trabalho de melhorar a rede de esgotos, o que teria sido óptimo para evitarem os maus cheiros enquanto espreitavam para dentro dos caleidoscópios.

Mas compreendo que com o correr dos anos, tal como perderam a visão, alguns tenham perdido o olfacto, e se adaptassem aos maus cheiros. Não é fácil uma pessoa libertar-se dos aromas intensos a que se habituou durante uma vida inteira, mais a mais depois de se declarar patriota e passar a andar de máscara.

 

(qualquer coincidência com a realidade é pura ficção caleidoscópica)

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limites

por Sérgio de Almeida Correia, em 12.01.19

 

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(direitos reservados, foto de Teresa de Almeida Correia)

"Viver na sua cidade e não se sentir escorraçado dela é um direito primário que assiste a qualquer um. Ser mais bem tratado na sua cidade e no seu país do que aquele que vem de fora, para visitar ou viver, é o mínimo que um cidadão tem direito de esperar do seu governo" (Miguel Sousa Tavares, Quantos turistas queremos?, Expresso, 12/01/2019)

 

O Dr. Alexis e a Dra. Maria Helena deviam ler e mandar traduzir para chinês. Para que os senhores do Gabinete de Ligação também possam ler. Antes que nos afundemos todos em gás pimenta.

(com os meus agradecimentos à Estátua de Sal por tão oportuna partilha)

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