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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(créditos: Raquel Wise)
Um após outro. Este ano tem sido assim. Vendo-os partir.
Foi assim com o Rui, com o Luís, com o Pedro, agora com o Zé Pedro, que não sendo meu amigo era amigo do Paulo e por isso também meu amigo.
Nós sabemos que ela anda por aí, que está sempre presente, mesmo nas manhãs mais cristalinas quando os primeiros raios cortam o azul penetrante do céu. Rondando como uma repugnante e irritante varejeira que, por vezes, atordoada pelo jornal se esconde para logo de seguida reaparecer e nos irritar. Ou entrando pé ante pé, como se fosse uma fada, sem que nada nem ninguém se aperceba da sua presença, impondo-se de repente, sem aviso prévio, destroçando sonhos, corações, vidas. Muitas.
Ultimamente tem-se feito sentir com mais intensidade e cada vez mais perto de mim. Todas as esperanças depositadas num brinde de ano novo vão-se esvaindo com o correr dos meses, à medida que o ciclo se fecha e, impotente, vejo este carrossel que sem parar, em cada volta que dá, vai ficando mais vazio, até ficar quase sem ninguém, mas continuando a rodar, rodando, embalado por aquela música monótona e repetitiva que não pára e pelas luzes que não se apagam depois de todos partirem.
O mais estranho de tudo isto é que tudo se passa cada vez mais perto de mim. Com quem de um modo ou de outro me acompanhou ao longo de décadas, e que ao seu jeito ajudou a moldar a minha forma de ver o mundo. Mas também com quem fazendo parte de nós à distância foi comigo comunicando até ao fim, deixando aquele rastilho que me acaricia todas as manhãs e me faz sentir que vale a pena, que vale sempre a pena ser um homem livre.
Uma palavra, um gesto, um sorriso, sempre um estímulo e uma dignidade imensa na forma como iam acomodando os dias à sua dor, no seu combate, na sua liberdade, sem esmorecer, sublinhando aquilo que de mais belo existe na simplicidade de um olhar, na cumplicidade de um cumprimento, na ternura de um aceno.
E, é claro, com aquele "pouco de fé" que nunca fez mal a ninguém e se torna imenso quando o dia chega ao fim e se sabe que há mais uma noite esquinada para dobrar. Ainda que não raro saibamos que não somos únicos porque somos todos feitos da mesma massa e da mesma matéria, e que de cada vez que olhamos o céu e vemos os sonhos partirem irremediáveis a nossa raiva é igual, e se despeja sabendo que o sol voltará a brilhar.
Quem faz a estrada acaba sempre por conhecer o caminho. E sabe que é por ali que se deve seguir, com energia, com convicção, com carácter, sem olhar para trás, mantendo a constância e o ritmo. Com ternura, sem pieguices. Porque tudo valeu a pena. E nunca foi de mais.
Eu estava hospedado no central Metrópole. Já nos conhecíamos, mas naquele dia quente e húmido de Junho de 1993, ele veio buscar-me ao hotel, para irmos jantar, no belíssimo Saab 900 turbo, azul escuro, com os estofos de cor creme, que me ficaria na retina e viria a ser o meu carro nos anos seguintes.
Tratava-se de acertar os termos da minha contratação, qual mini-estrela do universo da advocacia lisboeta, com experiência anterior da Administração de Macau, referências de boa vizinhança nos anos em que cá residira, quando era apanhado logo pela manhã à porta do elevador com a sua mulher a dizer-me que a música era boa. E eu envergonhadíssimo pelo volume de som que saía das sinfónicas ou das vozes, então de Brel, Ferré e Brassens, que tomava conta do patamar de acesso aos elevadores, ali na Rodrigo Rodrigues.
Sempre impecável na simpatia e na afabilidade do trato, acertámos o pouco que havia, verbalmente, como é timbre entre homens de bem, e passados dois meses eu desembarcava de novo em Macau para me atirar de corpo e alma ao escritório que nessa época ficava no edifício da Nam Kwong, na Almeida Ribeiro, onde éramos vizinhos do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês.
Macau dera o salto da pequena vilória colonial da era pré-Almeidista, com pretensões a cidade, para a metrópole consolidada do final do século XX que crescera fora do espaço que lhe estava destinado, espremida entre a zona de aterros do porto exterior, mais a dos novos aterros e os que haveriam de vir a sê-lo mais alguns anos volvidos.
Nesse tempo, a Assembleia Legislativa (AL) era uma máquina de produção legislativa, atenta, rigorosa e eficiente que causava problemas à inércia governativa, aos amanuenses da Praia Grande e gelava os paninhos quentes com que alguns queriam tratar dos assuntos que interessavam a Macau e aos seus cidadãos.
Aqui demandavam os melhores e mais pragmáticos homens do direito. Não havia tempo a perder, nem lugar para protagonismos. Era tempo de combate. Era preciso tomar conta das acções em curso, preparar novas petições, analisar contratos, acompanhar as questões do aeroporto e da AL, ler os pareceres, formular uma opinião sobre os caminhos a seguir. E depois começaram as escrituras e impunha-se tomar conta daquilo tudo.
Não me perdi. Com o apoio de uma querida amiga, com o beneplácito do Rui, fui tratando de desempenhar as minhas tarefas com a competência e o brio de quem, acabado de chegar depois de um interregno de três anos, vinha disposto ao trabalho no escritório do parceiro contratante para que ele se pudesse dedicar por inteiro às questões da transição.
Anos antes, depois de uma reunião no Palácio do Governo, onde também funcionava a AL, discutíramos as primeiras questões do bilinguismo e as perspectivas do Prof. Heuser (Heidelberg), e quando em Novembro de 1989 me predispusera a regressar à pátria, ele teve a gentileza de nos convidar – à saudosa Lurdes, ao meu amigo Pedro Horta e Costa e a mim –, para almoçarmos na Galera, em jeito de despedida.
Nesse primeiro interregno da minha vida macaense continuei a contactar com o Rui, com o Frederico e o com o Francisco, prestando alguns serviços avulsos para uma pequena sociedade que tinham em Portugal. Foi pouco no volume e no valor, muito na solidariedade e no apoio a quem queria ingressar, sozinho, no complicado mundo da advocacia lisboeta, respeitando escrupulosamente as regras deontológicas. Creio que nunca lhes agradeci devidamente o que então por mim fizeram.
O regresso em 1993 foi, pois, mais fácil. Todas as questões se resolviam com uma aparente facilidade graças às referências que o Rui possuía e ao extenso conhecimento que tinha de leis, regulamentos, fontes e tudo o mais que era necessário num dia-a-dia onde não nos podíamos dar ao luxo de perder demasiado tempo com rodriguinhos. Havia o trabalho na AL, os actos notariais, os tribunais, o acompanhamento da imprensa, os contratos do aeroporto, as tertúlias e os tempos de descanso, que nisso o Rui tratava os trabalhadores como príncipes. Ninguém se queixava, e ainda havia a sua eterna boa disposição.
O pior era lá fora, na selva, onde o tráfico de influências, as negociatas, o compadrio, o clientelismo, os generais, os coronéis, os seus avençados e as seitas campeavam. Sabendo que o mundo não iria terminar no dia seguinte, e que a 1999 se seguiria 2000, a tudo isso o Rui resistiu. Com a maior das facilidades e sorrindo com desdém aos merceeiros que se deixavam vender por pataca e meia e uma quota num terreno. Depois, quando foi necessário assegurar informação credível e transparente lá surgiu o Futuro de Macau. Cumpriu a sua missão com seriedade. Outra coisa não seria de esperar.
Preocupado como estava com esse mesmo futuro, o Rui não se poupou a esforços. Eram leis e relatórios, múltiplas reuniões, mais o Conselho Superior de Justiça e até, por pouco tempo, a presença no Conselho Superior de Advocacia. Durou pouco a sua presença em tal órgão, de onde se demitiu. Fazer de corpo presente não era com ele. Hoje, alguns do que lamentam o seu trágico e prematuro fim foram os mesmos que ao melhor jeito estalinista eliminaram as suas referências na AAM. Como se ele não tivesse sido um dos primeiros, como se não tivesse, também ali, dado o seu melhor e não tivesse sido fundamental para que a AAM tivesse adquirido o estatuto que teve e, entretanto, tem vindo a perder. O Rui nunca ligou a essa desfeita que lhe fizeram. Eu protestei, sem sucesso, com os vários pastores que por lá passaram, mas estes nunca me deram resposta, e aquele rebanho seguiu pastando para onde o mandavam. Por isso, hoje, os tribunais estão como estão e o português assume cabisbaixo, não fora o esforço de alguns magistrados na sua preservação, o estatuto de língua morta perante a horda de ruminantes que dele tomou conta. Chorai, pois, que lenços não faltarão e sempre sobrarão as mangas das camisas quando aqueles forem levados pela corrente. O agravo não ficará com quem já partiu.
Como director dos SAFP deu o pontapé de saída para a reforma da administração, para dotar Macau de quadros capazes, competentes e bilingues. Foi acima de tudo um homem preocupado com os problemas da localização e autonomização jurídicas de Macau. Para o Rui, seria impensável deixar um sistema à mercê do que viesse de Cantão ou Fuquien, ou sujeito aos humores de um qualquer serventuário do poder ou do partido. Macau e as suas gentes, de qualquer origem ou etnia, e a dignidade de Portugal e dos portugueses que aqui vivem e trabalham deviam ser os únicos referentes, a marca indelével dos séculos e dos que aqui nos precederam entrando e saindo de cabeça erguida.
A revisão de 1990 do Estatuto Orgânico, a lei de imprensa, toda a legislação penal avulsa, dos animais às associações criminosas, a defesa intransigente dos direitos e garantias dos cidadãos de Macau, que se dúvidas houvesse ficou plasmada no relatório do financiamento da Fundação Oriente e, pouco depois, em 2000, quando nos estúdios da TDM sugeriu a devolução do dinheiro da Fundação Jorge Álvares à RAEM como única saída decente para o esbulho feito às gentes de Macau. Da pouca vergonha do Instituto Internacional de Macau e do caminho seguido pela Escola Portuguesa é escusado falar agora.
Também a Fundação D. Belchior Carneiro lhe deve hoje o belíssimo lar-residência de Oeiras, depois dele, do João Frazão e de eu próprio desbloquearmos o imbróglio do terreno que havia sido impingido aos irmãos da Santa Casa pelo belga, em leito de cheia e com o “aval”, como sempre, da Administração de Macau.
É bom recordar tudo isto agora que o último figurante da administração portuguesa, o reservista ao serviço da EDP, aqui desembarcou, iniciando nova romaria para rever a sua pandilha local a pretexto da Escola Portuguesa. Já se adivinha, de novo, o cheiro a barbecue.
Enfim, que hei-de eu dizer nesta hora triste em que vejo partir um amigo que me acompanhou ao longo de trinta anos, que me ajudou na vida e na carreira, que contribuiu com as suas ideias e achegas para o meu sucesso académico e que me abriu sempre as portas de sua casa como se fosse a minha.
O legado de um homem cujo sentido da honra e da dignidade estão acima dos circunstancialismos de conjuntura é sempre de difícil avaliação. Mas foram esses mesmos valores que o impediram de dobrar a cerviz a troco de medalhas, de tostões ou de milhões, como fez quando recusou ser advogado em regime de avença dos interesses do jogo. O Rui não estava para aturar tipos que acham que os milhões que ganham lhes dão o direito de pedir favores e de telefonar às 3 ou 4 da manhã de um spa em Las Vegas para insultarem o advogado que não lhes reconheceu as assinaturas nuns contratos manhosos num inglês mal redigido e destinados a uma terra onde se fala em português e chinês. Negociatas de bordel, golpadas e moscambilhas nunca foi com ele. A gente anda na rua e fala com as pessoas.
Quando se demitiu da AL, em ruptura com o soba colonial, estava preocupado com as questões da segurança, embora soubesse que Portugal se afundava em negociatas de sanitas, aquisições de quadros com dinheiros públicos por troca com facturas de livros e restauros de peças antigas que nunca regressaram, mas fê-lo com a lealdade de sempre. O Rui dispensava o comprometimento do seu nome e a reputação do escritório nos cambalachos de fim de ciclo do império. Por isso a CNN ou a imprensa estrangeira que vinha a Macau queria conversar com ele.
Da falta de alinhamento com as negociatas nos ressentimos todos lá no escritório, quando o trabalho escasseou à laia de represália. E também aí, nessa altura, não lhe foi ouvido um ai. Um senhor. Como também não foi ouvido quando numa auto-estrada, depois de um acidente, foi em auxílio dos outros, suportando a explosão de um outro carro em chamas para ver as mãos e a cara queimarem-se-lhe, sofrendo depois enxertos vários em Coimbra, para poder salvar uma mulher inconsciente que estava dentro de um veículo acidentado. Antes dos bombeiros chegarem. Ou agora, como ainda há dias o vi, lutando estoicamente, lutando como só um herói sabe fazer, mantendo sempre a compostura, a dignidade e o sorriso apesar de ver ali o seu próprio corpo ser corroído pela dor e a ingrata antecipação do fim a chegar.
O Rui nunca foi de fazer fretes porque era um homem sério e honesto como poucos. Porque teve a consciência em todo o seu percurso da necessidade de se preservarem princípios e valores, porque sabia que estes, ao longo da vida, não necessitam de segurança pessoal, e dispensam a pertença a igrejas, a seitas, a partidos ou a associações discretas. Em rigor, o Rui comportava-se sempre como o verdadeiro anarquista que nunca foi mas que no íntimo lhe espreitava.
Devo-lhe a amizade, a camaradagem, a confiança sem limite no meu trabalho, o estímulo e a palavra amiga na hora certa. E também o trabalho diário de ardina digital junto dos seus amigos, trabalho a que nem a doença retirava o humor após meses de sofrimento. Na primeira aberta, mesmo depois de doente e entre tratamentos, lá chegava o e-mail com o anexo e uma única frase: “o ardina está de volta”. Até ao fim, o Rui teve sentido de humor. O Rui foi um dos poucos duros que conheci em toda a vida, que sorria e inspirava qualquer que fosse o combate e o estado das tropas. Até a um céptico como eu.
Três décadas de convívio depois, vendo-o partir assim, desta forma apressada, inacabada, sem jeito, com tantos livros para lermos e discutirmos (o último que aqui tenho é “O que resta da esquerda?”, do Nick Cohen), tantos filmes para comentarmos (irei ver “O Silêncio” logo que possa) sem tempo para ele poder assistir à discussão do trabalho que me consumiu, envelheceu e roubou horas ao nosso convívio dos últimos anos, torna-se mais imperioso do que nunca assegurar-lhe que iremos todos continuar a discutir os milhões que vão para a Universidade de Jinan, os que à custa do desinvestimento na saúde pública de Macau contribuem para dinamizar a incompetência grosseira, encher os bolsos de clínicas e hospitais privados de onde um dia começarão a nascer os cogumelos dos novos casinos. Esses e todos os outros.
Enquanto os grilos locais tecem loas em seu nome e agitam a casaca negra entre missas, nós continuaremos a resistir. E a olhar por esse imenso legado. Na língua em que nos deixarem. Sem receio de perdermos alguns amendoins.
Porque no fim, o que verdadeiramente importa, como sempre nos importou, são os nossos. Os nossos valores, os nossos princípios, a nossa gente, que são aqueles com quem nos cruzamos no dia-a-dia, os que nos vêm bater à porta com um pedido de ajuda, os injustiçados desta vida, os que todas as manhãs nos dizem bom dia olhando-nos nos olhos.
Até ao fim, sans Dieu ni maitre, como cantou o Ferré, cá estaremos, Rui. Honrando a memória e o legado. Com os que estiverem connosco às sextas-feiras. E nos outros dias. À alvorada, se necessário. Continuando a percorrer os trilhos e as veredas incertas da vida com o mesmo à-vontade. Como homens livres que sempre fomos. Até ao fim. Resistindo sem quebrar. Como o bambu. Como tu fizeste, como só tu soubeste ser. O melhor dos ardinas. Até ao fim, sorrindo, sorrindo sempre.
Macau, 19 de Março de 2017
(também no HojeMacau)