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reencontros

por Sérgio de Almeida Correia, em 10.10.25

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Durante cinco anos, por vezes longos, de outras vezes fugazes e etéreos como a paixão que chegou e partiu sem que houvesse tempo de a agarrar, estudando e seguindo regras, foi-se preenchendo uma quadrícula em que a palavra direito era a que mais vezes figurava, alternando com a de justiça. Entre a devoção e a alegria, o choro, a coragem ou o medo do futuro, com uns abraços e uns beijos à mistura, no final cada um seguiu o seu caminho.

Do que me lembro, a despedida, para alguns, das paredes que nos acolheram foi penosa. Para outros abriu-se uma avenida, larga e soalheira, onde se cruzaram múltiplas vidas, romances, aventuras, alegrias e desgostos. Até ontem.

Muitas vezes me recordei deste e daquele, de algumas com evidente e, com o correr dos anos, envergonhada paixão, à medida que a distância e o tempo me afastavam de rostos, de abraços fraternos e sinceros, de sorrisos, cheiros, e de alguns beijos que me foram tão próximos e reconfortantes durante aqueles cinco anos. Foi ontem, podia ter sido hoje.

Aprendemos, quase todos, a ler, a citar, a sublinhar, a glosar, a escrever e a pensar de forma diferente. Sentimos a autoridade do saber, identificámos trastes e embustes, olhámos para os exemplos. Criticámos, discutimos fervorosamente cada vírgula. Houve quem cultivasse hábitos de trabalho, de colaboração com o outro, de respeito para com a diferença. Muitos tornaram-se amigos, camaradas, parceiros, sócios; outros amantes. De gente e de muitas coisas. Poucos de leis, mais pela justiça, que pela liberdade todos trilhámos o caminho e aprendemos a lição.

 E no fim cada um seguiu o seu rumo. Até hoje.

Se pensarmos no que ficou, nas quatro décadas que se eclipsaram à velocidade de um fósforo, talvez nos vejamos submergidos num carrossel de lembranças e de emoções.

Mas antes que tal acontecesse, que tombássemos sob o peso de uma memória cada vez mais distante e traiçoeira; e aquelas que tão queridas nos foram se desvanecessem, houve tempo, pese embora algumas ausências, ora ditadas pela incontornável lei da vida, outras pela geografia ou o utilitarismo táctico do quotidiano que nos rege, e que tantas vezes nos afasta de nós próprios e impede o livre fluir da genuína afectividade, de convocar a preceito os últimos resistentes de uma tribo que entendeu preservar e cultivar a memória, a fraternidade e a amizade.

Foi assim que correspondendo ao apelo, porventura na evocação da linhagem de um Shakespeare – “But if the while I think on thee, dear friend, All losses are restored and sorrows end” – ou de Alberoni, para quem a amizade será um “instante de verdade”, ou, como alguém escreveu, “uma ilha de ética num mundo sem moral”, oitenta e oito almas, dissseram-me, alinharam-se para um conveniente e fraterno encontro que ignorou continentes, atravessou fronteiras, e por momentos se estendeu da Alameda da Universidade a um hotel das redondezas, onde foi então possível voltar a trocar abraços e a beber dos mesmos rostos e sorrisos que há tanto nos encantaram.

Talvez por isso, depois da primeira confrontação com a realidade, no átrio da faculdade, e da aceitação da irreversível mudança provocada pelo sulco dos anos, que se prolongou numa romaria ao Anfiteatro 1, com a tão generosa quanto inesperada presença do carismático mestre, no seu genuíno e simpático estilo cartooniano, despido de funções protocolares, se entendeu sublinhar a autenticidade do encontro com a gravação da simplicidade da passagem do tempo na austera eternidade da pedra. Sem gongorismo, sem prosápia, sem ademanes desnecessários. “No devagar depressa dos tempos”, frase lapidar e incontornável de um senhor da diplomacia.

Como é próprio de quem reconhece a gratidão do que lhe foi transmitido, sentimento maior dos que prezam a integridade, a virtude, e rapidamente identificam nos outros, nos seus semelhantes, nos que o merecem, a grandeza do carácter, a autenticidade dos justos, a lhaneza no olhar, a frontalidade do percurso.

Ao redor de uma mesa, sorrateiramente contemplando rostos na distância, redescobrindo nomes, entre um brinde e um piscar de olhos, vendo a música escapar-se pelos anos oitenta de outra era, ou imaginada ao largo do golfo de Sorrento na voz de Lucio Dalla, “qui dove il mare luccica e tira forte il vento", enquanto uma mão me tocava e um sorriso se recuperava, as vozes voltaram a tornar-se familiares. Próximas. 

Como se sempre ali tivessem estado, e a ternura de outrora, o afago, o sorriso, se recuperasse em cada abraço, no brilho do olhar, ao mesmo tempo que se ignorava o que nos ia passando pelo prato.

Enfim, saboreando cada gole de vinho entre dois dedos de conversa como se por ali corresse um Romanée-Conti, poderoso, ajudando as folhas a voltarem-se sozinhas com as nossas caricaturas.

E foi bom, deveras foi, recuperar para aquele cenário Armindo Ribeiro Mendes, como há quarenta anos, com a disponibilidade, a simpatia e a proximidade de sempre, exclusivo dos maiores, que de cagança só se fazem os tolos.

No regresso, pelo silêncio de estradas que há muito deixei de percorrer, vendo cair no ruído dos faróis com que me ia cruzando as primeiras chuvas de Outono, recuperei a solidão interior, que tão próxima me é, também a alegria das longas noites de estudo, boémia e paixão, e preparei-me para a saudade do dia seguinte.

Reconfortado para mais uma longa viagem até ao outro lado do mundo, puxando o fio de um longo novelo. Esperando em breve poder rever os que faltaram à chamada, os que não pude abraçar, e que aqui e além vão andando pelas suas vidas.

Ciente de que a ausência, uma vez mais, por muitos anos que passem, não é mais do que um detalhe no compasso de espera do reencontro. Na eternidade, como a Mélita me transmitiu, dos abraços que fizeram, e fazem, de nós aquilo que somos. E que jamais esquecemos.

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