Voltar ao topo | Alojamento: Blogs do SAPO
Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Ouvi com bastante atenção as palavras do Secretário para a Administração e Justiça na conferência de imprensa de ontem. De acordo com uma notícia do Macau Daily Times, André Cheong é o presidente da Comissão que conduzirá o concurso que no final atribuirá as concessões para a exploração dos jogos de fortuna ou azar nos próximos dez anos.
Devo dizer, o que vem na linha do que anteriormente aqui e noutros locais escrevi e disse, que estou de acordo em muitos pontos com aquela que é a perspectiva do Governo Central e do Governo de Macau para o futuro do jogo. Posso discordar é do caminho a seguir e da forma como as coisas vão sendo feitas.
A operação de limpeza que se iniciou há algum tempo ainda não acabou. Temo que comece a perder fôlego à medida que a crise cresce em Macau, que o desemprego aumenta, que as empresas fecham e que as reservas financeiras encurtam a um ritmo impressionante. Não basta encontrar um ou dois bodes expiatórios, é preciso, como diz um querido amigo meu, ir até ao osso.
Gostava, por isso mesmo, de poder acompanhar o optimismo do presidente da Comissão, mas não estou nada convencido de que venha aí uma "nova era". A última que aqui apareceu foi nas carreiras de autocarros e foi tudo menos o que se apregoava. Muita parra, pouca uva, aumentos de preços, acidentes e mau serviço.
Sem que sejam dadas garantias quanto à abertura de fronteiras e um regresso à normalidade, estou muito curioso quanto às propostas que poderão vir a ser apresentadas pelos concorrentes.
Tenho dúvidas que alguém, um investidor sério, se não souber, nem tiver quaisquer garantias quanto à data em que tal poderá vir a acontecer, sem uma ideia aproximada sobre o número de visitantes que poderão entrar na RAEM nos próximos tempos, digamos, dois ou três anos, e sem andar a conversar às escondidas, se abalance a fazer propostas mirabolantes. E não estou a pensar naquele cantinflas patusco que quer uma concessão para ele e para a rapaziada amiga e que se farta de prometer volumes de investimento proporcionais ao mau gosto daquilo que por aqui tem edificado. A Covid-19 continua aí, o vírus vai-se mutando alegremente e a política de "tolerância zero dinâmica" é tão lúcida quanto os seus defensores.
De qualquer modo, olhando para o Despacho do Chefe do Executivo n.º 136/2022, de 27/07 (Boletim Oficial n.º 30, I Série, 2.º Suplemento, de 28/07), pode-se dizer que o que foi dito na conferência de imprensa – desenvolvimento sustentável da RAEM, novo patamar para a economia e a sociedade, estrutura de clientes pouco saudável, desenvolvimento de elementos não-jogo, etc. – corresponde a uma inversão da ordem de importância dos factores de selecção que constam do despacho.
O que consta do despacho como primeiro factor de avaliação dos concorrentes é o "montante da parte variável do prémio proposto", sendo que o último (sétimo) é a indicação pelos concorrentes de quais "as responsabilidades sociais que pretendem assumir". E se virmos os demais factores intermédios referidos no despacho, então é caso para dizer que há qualquer coisa que não bate certo.
É que seria muito mais interessante, na minha perspectiva, que é aquela que penso seja a preferida pelo Governo Central e que mais interessa a Macau, que a ênfase tivesse sido colocada, em primeiro lugar, nas responsabilidades sociais que as concessionárias pretendem assumir.
Depois viria a proposta de fiscalização e prevenção de actividades ilícitas – que é aquilo que verdadeiramente preocupa Pequim desde há vários anos e com toda a razão –; a seguir o plano de gestão dos casinos, o interesse para a RAEM dos investimentos em projectos relacionados e não relacionados com o jogo, o critério da experiência, as propostas de expansão em mercados estrangeiros (ainda que quanto a estas, no actual contexto, seja discutível o lugar que lhe cabe entre as prioridades) e, finalmente, em último lugar, o critério do montante da parte variável do prémio proposto. Esta, que deveria ser a última preocupação, surge como sendo, afinal, ao fim deste tempo todo e de toda a conversa dos últimos anos quanto à diversificação e à responsabilidade social das concessionárias, como aquela que continua a ser a preocupação-mor do Governo.
Sei que vícios antigos têm dificuldade em eliminar-se, mas não devia ter sido muito difícil colocar as coisas noutros termos. Ainda se vai a tempo de emendar a mão.
Por agora, vamos aguardar para ver até onde nos irá levar esta "Nova era". E com quem.
Numa cidade que tem visto a qualidade de vida dos seus habitantes decrescer a olhos vistos, que já vê as pessoas manifestarem-se nas ruas para pedirem mais e melhor habitação social devido à especulação do mercado imobiliário e à falta de alternativas de habitação condigna para quem não aufere salários milionários; onde um subconcessionário do jogo se permite fazer do alto do seu palanque apreciações descaradas sobre decisões políticas do governo legítimo da RAEM; onde o presidente do Tribunal de Última Instância se queixa das pressões sobre o poder judicial no discurso de abertura do ano judiciário, numa terra onde aquele mesmo governo se mostra absolutamente incapaz de fazer uma lei de arrendamento equilibrada ou de meter na ordem para protecção dos seus próprios cidadãos a mafiagem das agências imobiliárias que impõe contratos de arrendamento sem a morada ou o número de telefone do senhorio, e em que a sua mediação é tornada obrigatória para poderem cobrar dos arrendatários, que não têm alternativa, comissões anuais equivalentes a meio mês de renda; onde os preços, dos bens de primeira necessidade aos lugares de estacionamento em edifícios residenciais e escritórios, estão há muito cartelizados e a desregulação do sistema de transportes e do estacionamento público é um dado evidente, a preocupação é agora a negociação e aprovação de um código de ética para junkets. O caos na área do jogo é tão grande que ninguém sabe, a começar pelas concessionárias que permitem as operações debaixo do seu nariz, onde andam os milhões depositados nas mãos dos operadores anónimos que floresceram nos últimos anos como se fossem bancos licenciados, cujos milhões são reinvestidos nas mesas de jogo sob a forma de empréstimos aos jogadores e cuja actividade tem uma face visível nas carrinhas de vidros escuros que aceleram pela cidade aos ziguezagues e, noite fora, se plantam em segunda fila à porta dos restaurantes de luxo.
A preocupação com a aprovação de um código de ética para os junkets de Macau afigura-se neste momento tão bizarra quanto seria a aprovação por parte do Governo da RAEM de regras rigorosas para a falsificação de moeda por parte de organizações mafiosas. Como se gente que se habituou a viver e enriquecer à margem da lei com a conivência dos diversos poderes soubesse o que é ética.
Estamos a caminho do ponto de não retorno. Ou a República Popular da China dá dois berros e um murro na mesa e esta gente acorda para Macau poder retomar o caminho de uma autonomia saudável e responsável, em benefício dos seus residentes que sempre tiveram uma vida próspera e tranquila, ou isto descamba de vez.