Voltar ao topo | Alojamento: Blogs do SAPO
Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Na sequência da publicação de um relatório na passada segunda-feira, que dá conta, entre outras coisas, de que 1 milhão e 37 mil pessoas vivem em Hong Kong abaixo da linha de pobreza, e que a percentagem de crianças que vive abaixo desse limiar subiu de 17,5 para 20,1%, a edição matutina do South China Morning Post, um jornal cuja linha editorial está cada vez mais próxima das posições oficiais de Pequim, veio sublinhar as declarações de Chua Hoi-wai, responsável pelo Hong Kong Council of Social Security.
Se bem se recordar, já em 2017 um artigo de Chen Hong Peng e Paul Yip questionava como seria possível ultrapassar o ciclo de pobreza que muitas crianças enfrentavam em Hong Kong, sendo que na altura se referia um número semelhante ao que foi agora divulgado, ao mesmo tempo que se interrogava sobre a melhor forma de serem dadas oportunidades a essas mesmas pessoas desafortunadas da vida.
Um dos aspectos que hoje ressalta é o das condições em que as famílias dessas crianças vivem devido aos altos valores do imobiliário, o que resulta numa afectação do nível de satisfação das necessidades básicas das crianças e na falta ou diminuição de refeições diárias que as permitiriam crescer saudáveis.
Seguindo por essa linha, Alex Lo escreve que "poverty relief is a long-term commitment", querendo-se com isto dizer tudo aquilo que não se tem visto em mais de 20 anos de integração na mãe-pátria. Trata-se de um insucesso tão grande do processo de integração que já não pode ser ignorado. Não há socialismos felizes, nem sequer num mercado capitalista e altamente desregulado.
Confesso que não sei se em Macau existem estudos que de uma maneira ou de outra nos dêem conta da situação que em matéria de pobreza por aqui se vive. Paul Pun, o incansável dirigente da Caritas, tem regularmente chamado a atenção para o aumento de bolsas de pobreza e para os esforços que a sua organização vai fazendo para trazer conforto e alívio a muitos milhares que em nada têm beneficiado do desenvolvimento económico da RAEM e do crescimento dos negócios feitos à sombra do jogo e da especulação imobiliária.
Há deputados que também a isso têm sido sensíveis e que de quando em vez fazem ouvir a sua voz.
Mas seria bom que todos nós, cidadãos, fossemos tendo consciência disto. E de que o Governo, em vez de andar a distribuir cheques sem critério, encaminhasse verbas para quem efectivamente precisa, reduzindo as disparidades cada vez mais gritantes que todos vemos diariamente crescer entre a população mais desfavorecida de Macau.
A celebração dos 40 anos de reforma, abertura económica, crescimento e desenvolvimento na RPC não pode ter como consequência um aumento das pessoas que vive em situação de pobreza, a multiplicação do número de situações de crianças em risco e um crescimento dos problemas sociais de Hong Kong e Macau de tal forma grave que se tornou notícia.
Que sentido tem festejar 40 anos de sucessos se um dos principais indicadores (científicos, como aqui se quer) de carência e insucesso aumentou? Que sentido pode ter a celebração dessa efeméride para quem regrediu social e economicamente, para quem hoje tem dificuldade em alimentar, dar um tecto condigno e educação aos seus filhos? Que país se pode de tal orgulhar? Que sistema será esse?
Pobreza não é vida. E só para os ascetas constitui uma escolha livre e consciente.
Não há maneira de encontrarem outro registo. É deprimente. Dizer que Paulo Rangel é o candidato ou "o representante da sra. Merkel em Portugal" é tão desqualificador como amanhã virem dizer que Assis é o candidato de Seguro. No fim, a política, o debate e os partidos é que perdem. Quanto à democracia, vai-se fragilizando em cada dia que passa.
A riqueza nunca me afligiu. Sempre convivi bem com ela mesmo quando tinha muito pouco. Porém, não deixo de pensar sobre o sentido que terá a elaboração dos rankings dos mais ricos, dos mais opulentos, dos mais ostensivos na exibição. O voyeurismo é um passatempo de todos os tempos a que sempre se dedicaram alguns pobres de espírito. Mas num momento como este, que Portugal e uma boa parte do mundo cruzam, em que a pobreza cresce a olhos vistos, em que a imprensa relata casos de crianças que chegam à escola sem pequeno-almoço, e outras ainda nem sequer adolescentes que se limitam a ter uma exígua refeição diária, faz algum sentido anunciar aos quatro ventos, como ainda há dias se dizia na rádio, que a fortuna de 870 milionários portugueses cresceu 715 mil milhões de euros, apesar da crise económica?
Saber, segundo revelava um relatório da UBS, que há mais 85 milionários no meu país devia ser motivo de satisfação. Lamento que não seja esse o caso. As novas teorias da relativização da pobreza substituíram a velha teoria da relatividade. Não sei se alguém saberá hoje qual o quadrado da distância que separará aqueles novos milionários dos novos pobres, nem se existe alguma relação proporcional entre ambas. São equações que me ultrapassam. Saber que os ricos estão mais ricos ou que aumentou o número de milionários só pode ser motivo de satisfação numa sociedade civilizada quando esse crescimento corresponde a um enriquecimento global, a uma diminuição do número de miseráveis, de sem-abrigo e de pobres em geral. Uma sociedade que se compraz a atribuir prémios de mérito a ricos que enriquecem num ambiente de miséria, desconstrução social e desestruturação dos laços de solidariedade em que assenta uma comunidade, é uma sociedade em estado terminal. E não é preciso um tipo chamar-se Mário ou Francisco para percebê-lo. Basta abrir os olhos. A pobreza e a forma como ela cresce em Portugal, perante a indiferença de uma casta de serventuários do poder, é que me aflige e nos torna a todos ainda mais indignos do chão que pisamos.
A Exame e outras revistas e jornais de negócios e de economia deviam dedicar-se à elaboração de rankings dos mais pobres. Deviam dá-los a conhecer, dar-lhes as capas das melhores revistas, o melhor papel, os melhores fotógrafos, o melhor espaço na comunicação social. Essa gente merece. A luta que diariamente travam pela sobrevivência vale mais do que o conforto de qualquer gabinete. E podia ser que dessa forma aparecessem uns quantos "Amorins" para os irem tirando da pobreza.
Uma sociedade que se alheia da pobreza que medra no seu meio está condenada a desaparecer. E temo que o que se siga não seja melhor, porque o problema não se resolve com bancos alimentares. As pessoas ainda sentem. Felizmente.