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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(créditos: Macao News)
Ficou finalmente concluída, entrando ao serviço depois de muitos incómodos, transtornos e milhões gastos, a obra designada por “Obra de construção da travessia pedonal ao longo da Avenida de Guimarães na Taipa”. Nome pomposo para uma obra que entendo ser perfeitamente despicienda, como muitas mais realizadas na cidade com pouco ou nenhum critério.
Tenho sérias dúvidas sobre a utilidade prática da obra. Além de tornar muito mais feio o ambiente urbano.
Talvez com excepção da Rua do Campo e da Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues, em Macau, a maior parte dessas travessias pedonais é pouco utilizada, continuando a haver muita gente que as ignora e insiste em atravessar a rua, colocando em risco a sua segurança e a da circulação rodoviária. Veja-se, por exemplo, o que acontece na Avenida Marginal Flor de Lótus, entre a Pousada Marina Infante e o Hotel Broadway, no lado oposto ao Galaxy, ou na Estrada de Seac Pai Van.
Depois, porque nas ruas adjacentes à Avenida do Guimarães continua a haver passadeiras, sendo certo que não raro os engarrafamentos na via principal são provocados pelos carros que nela circulam e que quando mudam de direcção são obrigados a aguardar que os peões atravessem as "zebras" nas laterais, obrigando todos os veículos que circulam atrás de si a parar.
Mas pior do que tudo isso é que quer a passagem superior agora inaugurada, quer a que em breve será inaugurada na Estrada de Seac Pai Van, a seguir ao Parque, no sentido de quem vai para Coloane, próximo do acesso à Estrada do Alto de Coloane, constituem monumentos ao mau gosto, à falta de critério e à total ausência de sentido estético.
Já que se iriam gastar milhões, seria expectável que existisse alguma uniformidade estética entre, por exemplo, as passagens superiores existentes nas proximidades do Cotai, na Rotunda do Istmo e na Estrada Governador Nobre de Carvalho, onde está o elevador inclinado da Taipa grande, ou a da Estrada de Seac Pai Van, próximo do nado-morto "Hotel 13", com utilização das mesmas cores, de materiais de qualidade idêntica e esteticamente inseridas no mesmo estilo.
Nada disso aconteceu.
Esta nova passagem da Avenida do Guimarães é um bom exemplo de como não se devem fazer as coisas, havendo inclusivamente partes da construção que foram erguidas mesmo em frente à porta principal de acesso a edifícios residenciais, que ficaram agora com um mono de betão colocado à entrada, o que certamente facilitará as mudanças de casa que estão quase permanentemente em curso numa cidade onde não existe estabilidade residencial para uma grande parte da população menos favorecida devido aos altos valores das rendas.
Finalmente, dir-se-á, quanto a um dos objectivos da obra, traduzido na remoção das passadeiras para que o trânsito flua mais depressa, que o objectivo não deverá ser o de transformar ruas e avenidas que atravessam zonas residenciais e onde há grande circulação de peões em vias rápidas. Já basta a velocidade a que circulam alguns motociclos, designadamente os de distribuição de comidas ao domicílio, e transportes públicos, cuja condução descuidada e ao arrepio das regras rodoviárias se reflecte nos inúmeros acidentes que provocam e que em nenhum caso se devem à falta de passagens superiores para peões.
A simples colocação de bandas que obrigassem os condutores a reduzir a velocidade junto dos locais de atravessamento de peões e a colocação de semáforos e temporizadores electrónicos teria resolvido o problema – como sucede entre o City of Dreams e o Venetian – e não teria tornado a cidade ainda mais feia e desconfortável para quem gosta dela e aqui vive.
Ontem ficámos a saber que o Governo decidiu cancelar o concurso público para a empreitada da obra de construção da Linha de Seac Pai Van do Metro Ligeiro, que havia sido lançado em Julho de 2020.
Na altura da abertura das propostas os preços oscilavam entre 896 milhoes e mais de 975 milhões de patacas, sendo os prazos de construção entre 490 e 820 dias de trabalho. Estava previsto que a empreitada se iniciasse em finais de 2020.
Desconheço se a proposta de cancelamento, ou a sua decisão, partiram do próprio Chefe do Executivo, mas não custa acreditar que tenha sido este o responsável pela decisão depois de tudo o que aconteceu na primeira fase em matéria de custos, tempo de execução e desresponsabilização, até hoje, dos principais responsáveis.
Desta vez, o Governo não esteve com meias-palavras e esclareceu que "[d]ada a experiência adquirida do passado, há probabilidade de ocorrência [de] situações graves de trabalhos a mais e extensão de prazo de execução", atenta a "irracionalidade considerável dos prazos de execução propostos", o Governo da RAEM, por "razões de interesse público", que não se esperaria que fossem outras, "decidiu pela anulação do referido concurso e, muito em breve procederá ao lançamento de um novo concurso para a execução a respectiva obra".
As razões invocadas pelo Governo indiciam claramente que se estaria, uma vez mais, perante uma "fraude", idêntica a tantas outras ocorridas no passado, e pela qual pagariam a RAEM e os contribuintes os prejuízos de todos e os lucros da habitual meia dúzia de indivíduos.
Estiveram, pois, muito bem, o Chefe do Executivo e o Governo, a quem aplaudo a decisão e dou os parabéns pelo acerto de procederem à anulação do concurso. São decisões como esta que contribuem para a afirmação do sentido de seriedade da função política e a afirmação patriótica dos decisores.
Pode ser que este seja o sinal que a população de Macau precisava para perceber que alguma coisa começa a mudar e que não basta enxotar as moscas herdadas de anteriores governações. É preciso acabar com elas para não nos continuarem a incomodar e a darem cabo da reputação e credibilidade de Macau e da qualidade de vida dos residentes.
E quanto aos concorrentes que no concurso anulado apresentaram propostas com preços e prazos irrealistas, já a contarem com o cambalacho dos trabalhos a mais e com a extensão dos prazos, como aconteceu no passado, o mínimo que se pode esperar é que nem sequer se apresentem ao próximo concurso. E que tenham vergonha.
Porque se voltarem a apresentar-se no próximo concurso para fazerem propostas idênticas mas com preços mais altos e prazos mais alargados, isso só quererá dizer que as propostas apresentadas no primeiro concurso não eram sérias.
E quem para a realização de obras públicas apresenta propostas pouco sérias uma vez, ou melhor, se habituou a apresentar propostas pouco sérias para vencer concursos (o caso da capacidade da Estação de Tratamento de Águas Residuais de Macau é flagrante), contando com a conivência de alguns decisores, com a opacidade dos processos decisórios e eventualmente ignorando conflitos de interesses, dificilmente apresentará, alguma vez, uma proposta decente para realização de uma obra pública na qual o Governo da RAEM e a sua população possam à partida confiar.
(créditos: Expediente Sínico)
O acrónimo "LRT" significa Light Rail Transit e aparece muitas vezes referido na imprensa sempre que na RAEM alguém se quer referir ao Metro Ligeiro.
O que até agora foi construído representa "uma extensão de 9,3 quilómetros, ou seja, equivale a 44,28% do inicialmente planeado para o sistema do metro ligeiro". Entre 2007 e Setembro de 2012 a sua estimativa de custo passou de quatro mil e duzentos milhões de patacas para catorze mil duzentos e setenta e três milhões (MOP$14 273 000 000,00). Foi obra.
"Em Maio de 2016, o GIT afirmou que não fez a actualização da estimativa do custo da linha de Macau, uma vez que o seu traçado ainda não tinha sido definido. Além disso, em 2016, quando foram determinadas a construção dos 11 traçados no curto, médio e longo prazo, o GIT não avançou com quaisquer informações sobre o custo do investimento de cada traçado ou, sequer, o custo do investimento global. Em Dezembro de 2017, apenas oito dos 11 traçados tinham dados concretos sobre o seu custo, por outro lado, dentre esses dados, apenas a estimativa de custos da linha da Taipa tinha sido actualizada para 10 823 milhões de patacas. Ademais, até 31 de Dezembro de 2017, o preço total das adjudicações com o sistema de metro ligeiro foi de cerca de 13 273 milhões de patacas. Além disso, houve três contratos importantes que sofreram alterações ou foram resolvidos, resultando em despesas adicionais de cerca de 1 726 milhões de patacas." (cfr. Relatório do Comissariado de Auditoria da RAEM).
As prorrogações de prazo representaram acréscimos "entre 95 a 111% do prazo inicialmente concedido". Ninharias.
No último Relatório de Auditoria chegou a escrever-se que "o dono da obra além de não impor exigências rigorosas à entidade fiscalizadora, a sua actuação demonstrou que não dá relevância às duas questões acima referidas" (gestão e prazos), acrescentando-se que "os atrasos ocorridos na consignação da obra demonstram claramente que o dono da obra dá pouca importância à pontualidade no cumprimento da sua execução" e que o Gabinete de Infra-Estruturas (GIT) "tem sido passivo e pouco sério na coordenação das obras".
A situação é de tal forma estranha que o Secretário para os Transportes e Obras Públicas disse há dias na Assembleia Legislativa que "a sua eficácia é zero", o que ademais se comprova pelo número médio de passageiros que é transportado (em regra inferior a 2000/dia) e pelos relatos que vão sendo feitos pelos escassos passageiros: "what struck me most was that I was the only passenger on the platform, along with some birds perched on power wires".
Sobre as obras do novo hospital ou da cadeia o cenário não será muito diferente.
Não obstante tudo isto, ainda há não muitos dias, o Chefe do Executivo, que se queixava dos desperdícios de Alexis Tang e que publicamente o recriminou, antes de o colocar numa prateleira dourada, em Lisboa, atribuiu uma Medalha de Honra Grande Lótus ao seu antecessor e uma Medalha de Honra Lótus de Ouro ao anterior titular da pasta das Obras Públicas e Transportes. Essas medalhas são as duas condecorações mais altas da RAEM e destinam-se a galardoar a prestação de "serviços excepcionais à RAEM, à sua imagem e bom nome" (cfr. Regulamento Administrativo 8/2001).
Confesso que ao olhar para a realidade, ao ler os relatórios produzidos pelo Comissariado de Auditoria e o CCAC que de tempos a tempos me entretenho a ler, e ao ouvir o Secretário para os Transportes e Obras Públicas, que está fadado para assumir todos os desmandos verificados quase como naturais e inerentes às obras de cada vez que vai à Assembleia Legislativa, como agora quando com o maior à-vontade veio dizer que a eficácia do metro ligeiro é zero, sabendo-se qual o seu custo, vicissitudes e quem ganhou com a realização da obra, não sei que serviços excepcionais terão sido esses merecedores de tão altas condecorações.
É que se existiram, e vamos admitir que sim, não se deveram certamente à obra pública conhecida. Sendo esta de eficácia igual a zero, os méritos do que fizeram deverão estar protegidos do escrutínio público por um manto de confidencialidade.
E é pena que assim seja. Porque se publicamente se conhece apenas o que não foi feito, o que ficou por fazer, o que ficou mal feito, o que foi muito caro, o que ultrapassou os prazos e o que tem "eficácia zero", haveria todo o interesse em perceber o que fizeram bem.
Bem sei que há coisas que só se aprende por experiência própria, como a necessidade da contratação de não-residentes que não venham do interior do país. Mas perante este cenário, para sermos justos, o actual titular das Obras Públicas terá de receber duas medalhas de honra. Um Grande Lótus pelo que, mal ou bem, ainda vai fazendo, e outro pelo que publicamente, e talvez involuntariamente, diz para ir abrindo os olhinhos a alguns representantes do povo na Assembleia Legislativa.
De outro modo não vejo como possam as coisas ficarem equilibradas. É tudo uma questão de justiça relativa.
Se quanto à competência, experiência, empenho e seriedade na resolução dos problemas de Macau e das suas gentes já todos sabíamos com o que podíamos contar, as dúvidas que poderiam restar sobre o seu desempenho colocar-se-iam num outro patamar. Em política não chega a boa vontade. Em especial quando estamos perante tarefas assaz complicadas e que, para além de capacidade de gestão e decisão, implicam a indispensável confiança de quem está acima e o espaço de manobra político para que se possa executar e levar a bom termo o que se impõe.
Daí que, na sequência de anteriores declarações, continue a ser digna de registo a forma expedita e desarmante – para quem se habituou a ver o exercício do poder como uma sucessão de cortes de fitas, distribuição de subsídios e o cumprimento de obrigações sociais – como o Secretário para as Obras Públicas e Transportes do Governo da RAEM tem cumprido o seu mandato.
Ontem, na Assembleia Legislativa, voltou a ser assim quando, sem pestanejar nem gaguejar, disse que desde há 15 anos caiu a qualidade das obras públicas e que os primeiros a assumirem responsabilidades deviam ser os construtores civis.
Faltou dizer que essa queda da qualidade construtiva foi inversamente proporcional à subida especulativa dos preços, às derrapagens descontroladas (porque também as há controladas) e à voragem que de então para cá se verificou por parte de uns quantos responsáveis e empresários, alguns já atrás das grades, outros aguardando que lhes apresentem a factura da sua desmedida gula.
Mas é evidente que Raimundo do Rosário não podia ir mais longe, ou ser mais claro, numa casa onde os interesses de construtores civis e empreiteiros têm sido, desde há várias décadas e não tão raramente quanto seria de esperar, disfarçados de interesse público. Logo ali, num hemiciclo onde a defesa dos cidadãos de Macau foi transformada por alguns dos que deviam ser os seus primeiros defensores numa palavra vã destinada a encobrir a satisfação de interesses próprios, alguns também menos próprios, bem como os de meia dúzia de acomodados, seus parentes e clientelas afins, que muito pouco têm feito pelo desenvolvimento de Macau e o engrandecimento das suas gentes.
O mea culpa que na Assembleia Legislativa se fez pela voz do mais alto responsável pelas Obras Públicas, e que ecoou dentro e fora de portas, constituiu um acto de indiscutível relevo político. Inédito pelo tom e pela clareza, é certo, mas também revelador de uma vontade de cumprir, e cumprir bem, isto é, no interesse da RAEM, o mandato que lhe foi dado. Em política, e num ambiente hostil e desconfiado, isto tem um nome: coragem.