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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(Estação Ferroviária da Beira - Moçambique)
Ao contrário do meu avô Miguel, a quem o Barreiro e o sindicalismo português prestaram justa homenagem, nunca tive qualquer relação profissional com os comboios.
As minhas relações com tais viaturas e as vias-férreas remontam à infância e pertencem ao domínio da felicidade. Algo que, não sei se sabem, está muito para além dos sonhos.

Fosse porque quem mais me queria me segredava histórias de comboios antes de adormecer, me levava a fazer belas viagens entre Moçambique e a Rodésia, pela linha da Machipanda, da Beira a Vila Pery, hoje Chimoio, de Manica – Que saudades da piscina, meu Deus! – a Salisbury, passando por Umtali, hoje Mutare, e imensos apeadeiros, lugares, lugarejos e vilas perdidas no tempo e nos confins da história colonial, vislumbrando a serra da Vumba em carruagens confortáveis, marcadas pelo afago e o brilho da madeira bem tratada, refeiçoando numa carruagem-restaurante com toalhas e guardanapos cheios de goma e imaculadamente brancos, com um serviço simpático e sempre atencioso para com o “menino”, gargalhando com ele, com o nariz achatado e colado contra as janelas largas e luminosas, também sempre embaciadas e com as minhas dedadas, avistando Machipanda, Manica e os animais livres na distância, percorrendo as carruagens até cair de cansaço, dormindo entre belos lençóis, sempre embalado pelo balancear das composições, o som característico do rodado nos carris, e ao tempo também pelo tão penetrante e alucinatório cheiro do carvão e do vapor que saía das locomotivas.
Tempos inesquecíveis que por vezes se prolongavam na notável estação da Beira, projectada por Garizo do Carmo, Francisco de Castro e Melo Sampaio, onde quase diariamente me deixavam depois das aulas para eu percorrer o átrio em todos os sentidos, radiografando quem passava, admirando os carros em exposição, enquanto esperava que a Mélita ou o Fernando Luís descessem das suas ocupações para depois então me levarem exausto e satisfeito para casa.

Foram todas essas memórias, mais as da minha primeira adolescência, quando para minha satisfação me punham num comboio e me despachavam para Tavira, onde sabia que os meus primos, o sol e o mar da ilha e da ria cuidariam de mim durante algumas semanas de Verão, e, ainda, as recordações da minha vida de estudante universitário, que me levariam a percorrer a Europa de Interrail, e das viagens de que depois fiz na Austrália, na Suíça, no Japão, onde volto sempre que posso para percorrer o país no Shinkansen, que me entusiasmaram quando o Pedro se lembrou de me enviar o convite para visitar uma exposição de comboios em Carcavelos.
Já sabia do gosto e interesse do meu amigo por comboios depois de uma noite me ter revelado os seus tesouros, resultado de infindáveis horas de engenho, paixão e paciência, mas nunca imaginei ver o que vi no Pavilhão dos Lombos: uma magnífica exposição de modelismo ferroviário que me levou de novo a viajar no tempo e por estações e paisagens que me foram familiares.
Havia prometido a mim mesmo escrever umas linhas sobre o evento que ali ocorreu para vos dar conta da minha satisfação, talvez mais encanto, pelo que encontrei. E pela alegria que vi nos olhos de tantas crianças, algumas namorando com o parceiro e com as fantásticas maquetas, com filhos e netos, umas mais crescidas do que outras, com e sem barriguinha, por vezes de calções e cabelos brancos, partilhando curiosidade e paisagens de lugares espalhados por Portugal e mundo fora, incluindo numa recriação e lembrança do horror que se vive na Ucrânia, onde não se poupam crianças, novos, velhos, escolas, hospitais, museus, comboios ou estações.

Não será grande coisa o que à pressa aqui fica, eu sei, embora haja sempre a esperança de para o ano voltar com mais tempo. Se possível com o João. Para vermos comboios circulando por montes e vales a toda a velocidade, sem perderem, ao contrário do fantasma da nossa CP, carruagens pelo caminho, e sem deixarem os passageiros apeados, iluminando os olhos de quem os vê.
Se não for para sonhar de novo, recordar outros tempos, ao menos que seja para, pelo menos, levar, como desta vez, um amigo pela mão. Ou vários. Pequenos e graúdos, fazendo-os entrar naquele mundo mágico das geografias do contentamento, levando-os a percorrer comigo aqueles pequenos carris que têm a virtude de nos trazer os antigos por onde andámos, de diferente bitola, com outras paisagens e outros cheiros, mas com a mesma alegria da memória com que os vi e me receberam.
E a gratidão a quem me mostrou o caminho até ali, proporcionando-me o prazer de escrever estas linhas e de vos deixar com as imagens possíveis de um fotógrafo menor.
