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simplicidade

por Sérgio de Almeida Correia, em 09.11.23

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O texto é relativamente curto, com pouco mais de cem páginas, deixando-se ler tranquilamente, sem altos nem baixos. Como é típico dos livros de memórias, remete-nos para um passado próximo, com os corpos ainda quentes da memória, de recordações de infância, de deliciosos momentos do quotidiano, todos acabando por conviver com a chegada da nostalgia da lembrança, espécie de nevoeiro que vai tomando conta da luz das horas e dos dias mais soalheiros à medida que se recuperam lembranças.

Rodrigo, irmão de Gonzalo, não é Gabo, mas sendo filho recupera alguns dos melhores momentos de seus pais numa altura em que as despedidas se aproximam e a consciência da aproximação à partida torna tudo ao mesmo tempo mais subtil e mais denso.

Cada dia que vivemos, bem ou mal, alegre ou triste, aproxima-nos mais da morte e esta, como ele escreveu, "não é um acontecimento a que uma pessoa se possa habituar".

A habituação jamais ocorrerá quando se fala de quem nos quis e que foi querido, e que por essas mesmas razões tende a fixar-se no essencial que nos marcou e que com gosto depois se recorda.

Uma despedida entre entes queridos tem tudo para não ser um momento feliz; o que todavia não impediu o autor de nos trazer um pouco mais de luz sobre os últimos anos de Gabriel García Márquez e sua mulher Mercedes.

Fê-lo num estilo simples, sem arabescos e sem a prosápia de outros filhos, mantendo as distâncias e os protagonistas no local que merecem e que a vida lhes proporcionou, assegurando-lhes a dignidade no momento em que as primeiras folhas de Outono caem para nos prepararem para a invernosa solidão do fim.

Um conjunto de fotografias torna-nos cúmplices dos relatos, aqui e ali pontuados com notas de humor que reflectem a genialidade do homem – no me las puedo tirar todas é um desses momentos mágicos – e o ambiente que o rodeou os seus últimos tempos, prova inequívoca de que mesmo quando se está "sempre embriagado com a vida e as vicissitudes da existência" é em casa que "a maior parte das coisas que vale a pena aprender continua a aprender-se".

Verdade que nos dias de hoje não será igual para todos, e para muitos é mentira, mas que no caso de Rodrigo se confirma plenamente, pese embora os engulhos que o malfadado Acordo Ortográfico de 1990 continua a provocar em quem traduz e em quem lê. Uma pena a que Rodrigo, Gabo e Mercedes são totalmente alheios e a que só não escapa o leitor português.

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pesar

por Sérgio de Almeida Correia, em 27.01.21

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Sabia-o doente há algum tempo e foi com tristeza que esta manhã soube do passamento de Vítor Ng (Ng Wing Lok, 吳榮恪).

Foi-me apresentado pelo Rui Afonso no tempo em que ambos eram deputados na Assembleia Legislativa, em meados dos anos 80 do século passado, pouco depois de eu demandar Macau pela primeira vez. 

Industrial, empresário, político, no ouvido ficar-me-ão as conversas por causa das receitas do jogo e as posições vigorosas, por vezes controversas e com as quais nem sempre concordei, que tomou em defesa daqueles que entendia serem os interesses de Macau.

Depois de 1999, quando eu fazia uma investigação sobre a classe política local, e estando ele na Fundação Macau, prontificou-se a receber-me e a abrir-me portas, dando-me o amparo necessário para melhor perceber um lado pouco conhecido e obscuro para a maioria dos ocidentais da elite chinesa.

Melómano confesso, e sabendo-me também apreciador do som das grandes orquestras, um dia, após um belíssimo jantar em sua casa, levou-me a conhecer a sala que possuía magnificamente equipada e onde se deliciava com a audição de "la grande musique". Foi uma 1812 com uns canhões inesquecíveis.

Ultimamente, estando já muito fragilizado, encontrava-o amiúde nos concertos do Centro Cultural, procurando o meu braço para poder descer as escadas até ao seu lugar sem correr o risco de se estatelar.

Que o Vítor descanse em paz. E que no Além não lhe faltem os músicos e as partituras.

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por Sérgio de Almeida Correia, em 25.01.18

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Quando eu era miúdo, a minha Mãe metia-me no comboio, no final de cada ano lectivo, e ele esperava por mim em Faro, para me levar para uns dias de férias junto ao mar. Isso foi no tempo em que a Ilha de Tavira não tinha campistas, nem parques de campismo, não havia rádios aos altos berros, nem restaurantes de hambúrgueres. Os pais dele tinham uma casa na ilha. Como marinheiro que fora, embarcado e com várias voltas ao mundo na "Sagres", levou-me a velejar e à pesca. Foi com ele que apanhei salmonetes à noite, burriés, e mergulhei pela primeira vez no azul profundo do Algarve. Deu-me a conhecer a Meia Praia, Santa Luzia, as Quatro Águas, Sagres. Tantos locais, tantos mares que para mim eram novidade. Foi logo no primeiro Verão a seguir ao 25 de Abril. Depois continuou nos anos seguintes. Uma vez, à noite, enquanto os adultos jantavam, fui mordido por um cão pastor dos Pirenéus. Quis fazer do bicho cavalo e ele não gostou. Levou-me de chata pela ria, até Tavira, para uma freira me coser. Dessa vez passei o resto das férias de castigo, de perna e braço entrapados. Via-me jogar futebol na praia, todos os dias, com os mais velhos, achava-me graça, e por causa disso passou a tratar-me por "Beckenbauer", em homenagem à grande estrela da selecção alemã e do Bayern de Munique. Eu sempre achei que seria mais o velho Müller, ou o Eusébio, pois gostava de marcar golos. Para mim, no início da minha adolescência, ele era uma espécie de Jacques Cousteau com sotaque algarvio, com a pele muito tisnada. Conhecia toda a gente, miúdas giras, todos o conheciam. "Agora vamos ali tomar um café, vou apresentar-te um borrachinho!". O "borrachinho" tinha mais vinte anos do que eu. Elas riam-se e ele gozava com a minha timidez. Foi ele que me apresentou o Dentinho e o Brito da Mana. Eram parceiros no mergulho. Eu era o primo. Tomava conta do barco e das garrafas de mergulho. Nesse tempo, ele fazia de tudo um pouco, um verdadeiro artista. Cozinhava, decorava cafés, pintava painéis, quadros, fazia barcos em miniatura. Ainda era casado com uma prima minha, que entretanto partiu e de quem, por força de circunstâncias várias, viria a divorciar-se. Já  a viver com outra pessoa disse-me que fora casado com uma senhora. Gostava muito dela. E tinha um Giannini 1000, de cor roxa, com uma risca branca a meio, carro que comprara ao Cônsul do Reino Unido no Algarve. E também um MG branco, descapotável, com o qual os dois fazíamos a EN125 entre Faro e Tavira. Às vezes, já adulto e a viver fora de Portugal, encontrava-o em casa da minha Mãe. Aparecia nos aniversários dela. Estive muitos anos sem ir ao Algarve, décadas, deixei de o ver, de com ele conviver. Um dia regressei ao Algarve. Acabei por ir viver para Faro, reencontrei-o. Tratou de me fazer o papel e os novos cartões de visita na tipografia onde estava a trabalhar. Ainda estivemos juntos algumas vezes, mas já então era um homem triste, muito diferente daquele que conheci. E tínhamos vidas e interesses diferentes. A vida tinha-lhe pregado algumas partidas. Só vestia de preto e branco, usava um brinco de ouro, como os piratas, e a aliança no polegar. Um excêntrico bem educado, simpático, com um incrível sentido de humor, que pintava, decorava e também gostava de poesia, chegando inclusivamente a publicar alguns livros, na esteira da senhora sua Mãe, poetisa algarvia. Ainda me ofereceu dois com dedicatória. Nos últimos anos andava adoentado, mal dos olhos, e ia de quando em vez a Coimbra. Para "fazer a revisão", como ele me dizia sempre com algum humor quando me encontrava junto à Pontinha. Nos últimos anos perdemos o contacto. Víamo-nos de quando em vez, sempre ali para os lados da Rua de Santo António. Perguntava-me pelo Alfa e pelos tios. Tínhamos vidas diferentes. Também ele foi, à sua maneira, um homem livre. Nunca lhe pagarei os dias e noites de liberdade que me proporcionou, nem a forma como me deu a conhecer o mar do Algarve e a Ria Formosa. Soube há pouco que a vida voltou a pregar-lhe mais uma partida. Foi a última. O José César faleceu ontem a caminho de Coimbra. Tiveram de parar o comboio. Em Santiago do Cacém. Já não chegou a tempo de mais uma revisão. Oxalá que tenham para ele, lá em cima, um lugar com vista para o areal da praia de Faro. E para a ria. Para que ele possa continuar a ver o Sol esconder-se todas as tardes, vermelho fogo, para os lados do Ancão. Ele merece-o.

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patten

por Sérgio de Almeida Correia, em 01.12.17

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"One of the most fundamental questions about political life – or political science, as some like to call it, as if it were one – is 'Who are we?' With what pattern of loyalties do we identify? Which narratives, memories and experiences shape our behaviour? Do we always find ourselves caugh in the some threads of that spider's web? Can we move about from one strip of the silky trap to another? All of which raises a preliminary question. 'We' is simply the collection of 'I's'. So who am I? What makes up my identity? Genetics, nature, nurture play a major role. But in addition, as with everyone else, my identity in part reflects choices I make. It is also in part the result of influences over which I have little or no control. 'Know thyself' was Socrates' challenge, a challenge both to personal memory and to honesty. Here, perhaps, is the beginning of a justification for writing in this rather different way about my life." 

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memórias

por Sérgio de Almeida Correia, em 31.12.14

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A primeira imagem que retive quando saímos da turbulência foi a dos campos de arroz de Surabaia. Chovia com intensidade. Pouco antes, o piloto avisara-nos de que teríamos de rumar a Juanda para reabastecer a aeronave em virtude de não haver combustível suficiente para se continuar à espera de uma aberta que nos permitisse aterrar em Denpasar. Não sei porquê, mas o verde dos campos de arroz tem sobre mim um efeito estranhamente tranquilizador. Talvez porque mesmo nos dias de chuva, quando o céu está mais pesado e o seu cinzento mais carregado e com tendência a deprimir-nos, a profundidade desse verde me faça comungar da explosão de vida que dos campos irradia. Há muito que queria ver os terraços de arroz e os cumes dos vulcões, embrenhar-me na floresta e mergulhar nas águas quentes daquela ponta do Índico, cujo nome de repente se mistura com o de dezenas de mares e estreitos feitos do apelo ao desconhecido. Recordava-me de há muitos anos ter lido um artigo, amplamente ilustrado, cujo título era "Flores after the storm", e depois mais alguns outros que tinham em comum o facto de referirem que as águas indonésias ficavam mais ricas depois dos temporais. Quando a vida regressava à normalidade, quando a transparência voltava, havia mais alimento e os grandes cardumes também regressavam. Com os campos de arroz também se passará algo semelhante. Parecem mais verdes, mais puros. Por razões várias, incluindo a inexistência de relações diplomáticas entre Portugal e a Indonésia, a minha confrontação com aquelas águas e campos foi sendo adiada. Concretizou-se agora. A realização de velhos sonhos sempre traz consigo um turbilhão de emoções. Mais intenso quando há todo um conjunto de circunstâncias a rodeá-los, onde se mistura a alegria com a apreensão, com a saudade e a ausência, com a preocupação com terceiros que estão longe, carentes, e aos quais não se pode acudir num momento tão especial como o Natal. Não sou de balanços, mas não sendo insensível ao que fica para trás sou incapaz de seguir em frente sem rever o passado. Quando volto a cabeça e atiro um olhar sereno sobre o que jaz, sobre a memória que nos transportará para o momento seguinte, para o trilho de novos sonhos, vejo a minha alma soltar-se durante breves instantes, fazer a triagem e cuidadosamente recolher o que nos permitirá seguir em frente e nos acompanhará no futuro que se avizinha. Nesse exercício percorro palavras, cores, gestos, olhares, momentos de ternura, de verdadeiro afecto, num caleidoscópio que se aproxima e se afasta até parar imóvel no momento em que num rápido semi-cerrar das pálpebras me endireito, olho para o que tenho diante de mim e me preparo para o dia seguinte.

Do passado sabemos apenas que existiu. Que foi. Do futuro teremos sempre a certeza do que connosco transportamos. E o que transportamos é o que não nos trai. É isso que nos dá a felicidade. A certeza de que existimos. Uma palavra, um sorriso, um beijo, uma imagem. Por vezes, apenas o cheiro da terra húmida, o sabor a sal, a paz de um campo de arroz. O que não nos trai é o que fica das memórias.

Um Bom Ano para todos vós.

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memórias

por Sérgio de Almeida Correia, em 23.10.14

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"Tivemos encontros com vários departamentos do Partido, visitámos empresa, centros científicos e escolas. Assistimos a um concerto da Orquesta Sinfónica de Budapeste e visitámos a vida nocturna da capital da Hungria, tradicionalmente famosa em toda a Europa Central, que na altura estava a ser retomada em larga escala.

O nosso acompanhante, alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mais diplomata do que quadro partidário, levou-nos a um cabaré que na altura fazia grande furor. Mal nos sentámos, Cunhal desconfiando do ambiente segredou-nos, ao José Vitoriano e a mim: << Vamos lá ver o que sai daqui.>>

Ora, o que havia de sair, depois de uns números cómicos e de pantomina relativamente inocentes: um grande espectáculo de striptease. Aguentámos. Cunhal bastante contrafeito. À saída não se conteve e repreendeu o acompanhante, embora de modo delicado: <<O camarada devia ter-nos prevenido da natureza do espectáculo. Suponha que não queríamos vir?>> O diplomata, ainda novo, meio zíngaro, teve um momento de embaraço, mas recompôs-se, sorriu e respondeu simplesmente: << Agora trazemos aqui todas as delegações mais importantes e não tem havido protestos.>>

O espectáculo nocturno de Budapeste foi assunto muito debatido na nossa delegação, no dia seguinte, dedicado ao repouso, nas margens do Lago Balacon, a estância turística mais importante da Hungria de então." - Carlos Brito, in Álvaro Cunhal - Sete Fôlegos do Combatente - Memórias  

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