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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Porquê que sancionar o apelo ao voto BNS é um erro político?
(versão portuguesa do texto publicado no Macau Daily Times)
Foi divulgado, há dias, pela Comissão dos Assuntos Eleitorais (CAEL) o Relatório Final sobre as Actividades Eleitorais relativo às eleições legislativas de 2021. Não me vou pronunciar sobre o conteúdo do documento, mas apenas sobre dois curtos parágrafos (pág.ª 55), os quais aqui transcrevo:
“A actual Lei Eleitoral não prevê sanções claras para os actos que incitam ou estimulam eleitores a votarem em branco ou produzirem votos nulos.
A CAEAL considera que os referidos actos visam obviamente perturbar os procedimentos eleitorais e destruir a equidade eleitoral, propondo-se, deste modo, estabelecer as respectivas sanções.”
No dia seguinte, li em alguns jornais que por sanções se devia entender a eventual criminalização dos votos BNS (Blank, Null, and Spoiled). Não sei se alguém da própria CAEL falou nisso. De qualquer modo, a ideia de penalizar os defensores desse tipo de votos é assustadora, mesmo num sistema eleitoral em que só uma fracção ínfima dos deputados é eleita por sufrágio directo e universal.
Percebe-se qual a preocupação da CAEL, mas um erro não se corrige com outro.
Nas últimas eleições houve um conjunto de candidatos afastados pela CAEL e excluídos das eleições. A decisão foi alvo de crítica e condenação em diversas instâncias, designadamente na União Europeia, parceiro comercial da China, e na Comissão dos Direitos Humanos da ONU, em Julho de 2022, sendo que aqui por violação do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Recorde-se que a China faz parte da ONU, ocupando inclusivamente um lugar permanente do Conselho de Segurança.
Importa referir que não há qualquer razão digna de protecção que aconselhe sancionar a “promoção” do voto BNS. Este é em qualquer sistema eleitoral, justo, democrático e decente, uma opção para o eleitor tão legítima como qualquer outra, possuindo significado próprio. Para o Tribunal Constitucional da Colômbia “el voto en blanco constituye una valiosa expresión del disenso con efectos políticos a través del cual se promueve la protección de la libertad del elector” (Sentencia C-490/2011). É, pois, falso que os votos BNS perturbem o procedimento ou a equidade eleitoral.
Há académicos que situam o seu aparecimento em França, por volta das eleições legislativas de 21 de Agosto e 4 de Setembro de 1881, em que surgiu um número inusitado de votos nessas condições (Ihle & Deloye, RFSP, 1991). Certo é que a sua existência é uma constante de tal forma enraizada nas democracias que há algumas em que foram criados partidos, portanto constitucionais, cuja mensagem fundamental é exactamente a do apelo ao voto em branco.
Em Espanha, o partido Escaños em Blanco defende no seu programa eleitoral que os seus eleitos não tomarão posse, nem receberão qualquer subsídio, procurando deixar os lugares no parlamento vazios para obrigarem à mudança do sistema eleitoral e do sistema de representação vigente.
Noutras circunstâncias, casos do Peru e do Brasil, o Sendero Luminoso, movimento marxista-leninista, em 1983, e o Partido Comunista Brasileiro, sob a direcção de Luiz Carlos Prestes, nas eleições de 1950, apelaram ao voto em branco como contestação à fraude eleitoral e à deriva democrática. Causas nobres.
Outros exemplos de apelo ao voto em branco chegaram-nos dos USA (Boston 1985), Argentina (Voto bronca, elections of 2001, 1957 with Péron), e Espanha em 2004, nas eleições do País Basco. Em França também existe um Partido do Voto em Branco (Parti du Vote Blanc) e no Quebec (Canada), o Parti-nul. E, tanto quanto sei, nos EUA, em 2012, só os republicanos tentaram eliminar o voto em branco que figurava nos boletins do Nevada (Superti, 2016).
Cada sistema eleitoral tem as suas próprias regras, embora não tenha notícia de em democracias e sistemas de sufrágio directo e universal haver quem sancione, seja sob a forma de coima ou prisão, o apelo aos votos em branco, nulos ou à abstenção. Em Portugal, nas primeiras eleições após a Revolução dos Cravos, em 1974, o Movimento das Forças Armadas apelou ao voto em branco e pretendeu disso retirar consequências políticas. Não houve problema. O regime democrático consolidou-se.
Quanto ao seu sentido, os votos BNS podem ter vários significados, mas no caso dos nulos deliberados e dos brancos, muitos vêem-nos como uma forma de protesto não-violenta destinada a mostrar o descontentamento dos eleitores em relação à má oferta política, ao baixo nível dos candidatos, e como manifestação do sentimento de corrupção política ou de simples insatisfação com as regras eleitorais.
Se os eleitores consideram que os mecanismos eleitorais são maus e os candidatos impreparados, devem poder manifestá-lo de forma legal e pacífica. Há inclusive países, como a Ucrânia e a Rússia, até o ditador Putin o eliminar, em que no boletim de voto havia a opção “Against all” ou “None of the above” (Superti 2016, Alvarez et al. 2018).
Na Índia, o Supremo Tribunal (Writ Petition (C) No. 161 of 2004, September 27, 2013) decidiu que “Not allowing a person to cast vote negatively defeats the very freedom of expression and the right ensured in Art. 21 i.e., the right to liberty. (…) the voter must be given an opportunity to choose none of the above (NOTA) button, which will indeed compel the political parties to nominate a sound candidate.”.
E em países como a Grécia, a Suíça, a Holanda, Colômbia, Peru, e até na Mongólia, onde as eleições têm de ser repetidas com novo candidatos se os votos brancos atingirem os 10% (David, 2022), essa forma de intervenção política é aceite.
Aqui não se discute a possibilidade de se institucionalizar essa opção no boletim de voto. Mas pensar que sancionar o apelo ao voto em branco, ou nulo, é uma hipótese, é triste. Isso não faz parte da matriz jurídico-política herdada.
A CAEL ou o Governo da RAEM não podem ter medo dos eleitores. É mau sinal quando isso acontece porque só os maus governantes temem o escrutínio popular. O que importaria seria tornar a abstenção, o voto branco e o voto nulo, nos casos em que este não resulte de erro de preenchimento, menos atractivos, reduzindo esse número e aumentando a participação. Todavia, isso só se consegue melhorando o sistema eleitoral, a informação, a transparência e a qualidade da oferta. Isto é, com melhores programas eleitorais e candidatos bem preparados e eticamente irrepreensíveis.
A desafeição política, menos ainda em regimes autoritários, não se combate proibindo, multando ou criminalizando. Isso é um erro e não é próprio de sociedades políticas civilizadas. A desafeição política combate-se com inclusividade, melhores políticas e mais competência, tornando o sistema eleitoral "mais dinâmico e mais competitivo" (Urdánoz Gamusa, 2012).
Afastar as pessoas da participação, penalizar o combate político livre e democrático, impor o medo e a auto-censura à manifestação da livre opinião, e remeter as pessoas ao silêncio, não melhora a legitimidade de nenhum sistema político-eleitoral, por muito mau que seja, não reforça as instituições e não aumenta o amor pela pátria e pelo partido.
Tal como no amor, também na política é preciso ter uma relação séria e saudável com o parceiro (povo), o que não se consegue com violência.
As instituições e os políticos têm em cada momento histórico de conquistar pela bondade a alma do povo, sob pena de se revelarem incompetentes para a função. O Chefe do Executivo devia pensar nessa opção antes de aceitar a sugestão da CAEL.
Gerard David (c. 1450/1460–1523), The Judgement of Cambyses (1489)
Que a advocacia caminhava a passos largos para um beco sem saída, estava subjacente a qualquer análise séria ao trabalho realizado nas últimas duas décadas e meia.
E se isso não aconteceu mais cedo, tal ficou a dever-se a meia dúzia de advogados, e de bons magistrados, justiça lhes seja feita, que com maior ou menor dificuldade foram cumprindo as respectivas funções com o brio, a dignidade e a coragem possível num ambiente profundamente hostil em cada dia que passava.
Os relatos que diariamente me chegam, pelos jornais e de viva voz, de algumas diligências e da forma como alguns julgamentos vão decorrendo, e o que cada vez mais esporadicamente (felizmente) vou vendo, são simplesmente assustadores.
Dir-me-ão que essa será uma consequência do caminho da integração da RAEM na RPC, ou que existem sempre os direitos de protesto – que desconheço quantas vezes, se é que o foi alguma vez, terá sido usado –, de participação, de reclamação e recurso, o que é verdade, mas estes institutos não podem, não devem, ser usados como solução corriqueira para o atropelo da lei e/ou dos seus princípios, como forma de colmatar a ausência de bom-senso, a deficiente formação humana e jurídica, a impreparação funcional ou a errada percepção dos poderes-deveres inerentes à função desempenhada.
Assistimos, cada vez mais, ao desvalorizar da advocacia, dentro e fora dos tribunais, remetida para o lugar de uma mera solicitadoria cara e desprestigiante, que se basta com o cumprimento de formalidades, e a uma maior funcionalização e trivialização do ofício de julgar, que arrasta consigo todos os vícios inerentes aos maus burocratas.
Como se a adequada aplicação da lei e o desempenho destas elevadas e exigentes tarefas, essenciais para a dignidade e manutenção de um Estado de direito decente e o funcionamento de sociedades justas, estruturalmente sãs e equilibradas, fossem coisas para confiar a espíritos mercenários ou carreiristas, ou para serem vistas como mera solução para o preenchimento de quotas, afirmação de egos imaturos e a transmissão para a opinião pública de uma imagem desconforme à realidade.
Os prémios e os elogios podem ser impostos, ou comprados; a dignidade não.
Quanto maior for o silêncio de quem tem o direito e o dever de se pronunciar sobre o que se está a passar, maior será o desprestígio inerente à justiça e à advocacia.
Não temos todos as mesmas responsabilidades. E o problema, convenhamos, não é de segurança interna ou de legalidade. Estas nem sequer se colocam. É acima de tudo de sensatez, mas também ético, moral e deontológico.
Há que ter a coragem de não ser indiferente. E não ficar indiferente quando se tem o poder e a riqueza e há valores que nos transcendem, que estão muito para lá da interpretação circunstancial da lei e da nossa simples existência física e terrena.
Alguém devia fazê-los ver o quanto estão errados. Nem tudo vale uma missa. Ou um penacho.
Nos últimos três anos não houve quem não reparasse na quantidade de lojas que encerraram e de fracções destinadas à habitação que ficaram devolutas. A pandemia teve o condão de obrigar alguns senhorios a perceberem que o valor das rendas que cobravam era claramente excessivo para as condições de mercado.
É verdade que muitos não compreenderam logo a dimensão da crise e resistiram a baixar as rendas, o que em muitos casos, em especial com proprietários de Hong Kong e do Interior do país, só sucedeu volvidos largos meses sobre o início da pandemia.
Houve alguns que continuaram a resistir ao ajustamento de rendas e acabaram por ficar com os apartamentos e lojas devolutos até hoje. Um simples passeio pelas ruas da cidade ou uma visita a alguns prédios de escritórios revela a quantidade impressionante de fracções disponíveis. Estabelecimentos e empresas com dezenas de anos de operação comercial simplesmente fecharam, mandando milhares para o desemprego.
No entanto, mal bastou perceber-se que a cidade iria abrir ao exterior e que as limitações impostas pela aberrante política de tolerância zero iriam desaparecer para logo surgirem os habituais abutres e especuladores ligados a esse cancro social que são hoje as agências imobiliárias, anunciando pretensas tendências de mercado que eles próprios fixam de acordo com os seus desejos. O resultado da voragem é também quase imediato, bem ao invés da sua redução quando acontece uma crise.
Há senhorios que vivendo em Macau não embarcam logo na propaganda e compreensivelmente aguardam que a situação económica e social melhore para poderem, eventualmente, no final dos prazos dos actuais contratos, subir os valores das rendas. Mas há quem logo, ainda que por vezes à revelia dos senhorios, se apresse a contactar arrendatários querendo aumentar rendas de contratos em curso, em pelo menos 10%, mas por vezes mais, já a partir do próximo mês de Março.
Na actual conjuntura, e se o actual Chefe do Executivo não quiser discutir com o seu antecessor o título de pior governante de Macau, impõe-se que o Governo tome medidas que refreiem o ímpeto especulativo de senhorios e agentes imobiliários.
Não existe um mercado equilibrado quando a parte mais fraca está permanentemente nas mãos de gente sem escrúpulos, alguns com assento em entidades com responsabilidades políticas e para onde ainda vão gozar com os inquilinos.
Continuo a pensar que as comissões das agências deviam ser da responsabilidade dos senhorios que colocam os seus imóveis no mercado, visto que a procura de um arrendatário é um serviço prestado pelos agentes e mediadores, o qual devia ser pago por quem o requisita e não pelos inquilinos, e que seria objecto de um único pagamento ao longo de toda a vigência do contrato e até que o contrato finde ou o arrendatário se mude para outras paragens. Este já seria um bom travão à especulação imobiliária.
Outro seria a fixação de tectos que protejam os arrendatários e evitem um aumento generalizado dos preços.
É tempo do Governo da RAEM intervir no mercado imobiliário sem que para tal seja necessário receber "ordens" ou recados do Governo central, directamente ou via alguém do Gabinete de Ligação.
Esta intervenção, neste momento, é fundamental para garantir a estabilidade das famílias e das empresas, permitindo que haja tempo para se recuperar pelo menos uma parte do que se perdeu nos últimos anos, e controlar a inflação. Como aliás acontece em qualquer sociedade decente e equilibrada onde os governantes e os legisladores não são eles próprios rentistas, comissionistas ou "sócios" de especuladores imobiliários.
Espero que o Chefe do Executivo não desperdice esta oportunidade única para uma intervenção governamental que garanta no futuro uma sociedade mais justa e equilibrada para todos os residentes. Ficar-lhe-iam todos gratos.
Cumprindo a tradição e todos os atavismos burocráticos, foi dado a conhecer o Relatório do Ano Judiciário 2021/2022 dos Tribunais da RAEM. Tirando a estatística, cada vez mais irrelevante, não porque não seja necessária, mas porque está cada vez mais distorcida, quer pelo mau desempenho de alguns protagonistas ao nível de base – o aumento ou diminuição do número de processos em todas as instâncias é cada vez mais marcado pela má e tardia justiça, que ora demove os interessados de a ela recorrerem, ora aumentam o número de recursos destinados a corrigir a "asneira" –, quer pelo seu custo e falta de utilidade em tempo útil, aquilo que há de interessante no documento é ver o que se escreve sobre o uso das línguas oficiais nos tribunais.
No Tribunal Judicial de Base (TJB) foi de 92,6% (8333) o número de decisões proferidas exclusivamente em chinês, e de apenas 0,48% (43) o de decisões nas duas línguas. Globalmente, desceu significativamente o número de decisões proferidas em chinês (menos 1564) e em português (menos 152). No Juízo de Instrução Criminal (JIC) a utilização da língua chinesa foi superior a mais de 90%. Relativamente ao Tribunal Administrativo (TA) ficámos na mesma. Alguém ter-se-á esquecido de fazer a revisão e mistura-se o que diz respeito ao TA com o JIC sem que se perceba de que estão a falar, pelo que não há números (cfr. páginas 38, 39 e 40).
No Tribunal de Segunda Instância (TSI) verifica-se que 62,15% dos acórdãos foram redigidos em chinês. Em matéria criminal houve 468 acórdãos exclusivamente em língua chinesa (85,56%).
Já quanto ao Tribunal de Última Instância (TUI) fica-se sem perceber a estatística. Referir que 63 acórdãos, representando 50,4% do total foram redigidos nas duas línguas ou apenas em chinês não contribui para se saber quantos é que foram relatados apenas em chinês. Em português sabemos que foram 62, o que dá 49,6%. Apesar de tudo, nada mau no que ao TUI concerne.
Perante este cenário, e ciente do que se vai passando, diria que é nas instâncias inferiores que as coisas continuam muito mal em matéria de utilização da língua portuguesa e de respeito pelos direitos das partes.
Basta ver quantas decisões exclusivamente em chinês são notificadas a partes e mandatários que só dominam o português, algumas com centenas de páginas e com prazos de recurso muito curtos para a extensão e volume dos processos, mesmo em situações em que ambas ou a maioria das partes e os seus mandatários não dominam o chinês, para se perceber o desequilíbrio existente, o que torna mais difícil, morosa e dispendiosa a realização da justiça.
Mal se compreende que assim seja quando se exige aos magistrados que dominem as duas línguas oficiais para acederem à profissão. Se estes e os tribunais não têm meios é preciso que lhes sejam facultados, até porque não é minimamente razoável que num Estado de direito, se é que como tal ainda nos devemos ver e queremos que nos vejam, se recusem simples extensões de prazo à defesa para efeitos de tradução de peças processuais notificadas a mandatários que não dominam a língua em que são notificados, qualquer que ela seja, num sistema em que são cada vez menos os que sabem onde acaba a morosidade e começa a pressa, e vice-versa.
É incompreensível que numa região como Macau, com os meios disponíveis, os residentes continuem a ter uma justiça tão lenta, distante e desligada, muitas vezes tanto da realidade como do direito, exigindo-se mais responsabilidade social às concessionárias do jogo do que se exige de respeito pela justiça e pelas línguas oficiais ao Governo, aos tribunais e aos seus protagonistas.
À medida que avança o julgamento do caso de corrupção que sentou no banco dos réus dois ex-directores dos Serviços dos Solos, Obras Públicas e Transportes, nota-se o incómodo das instituições e dos seus titulares. Dir-se-ia mesmo que nesta terra quando as coisas não encaixam no guião se torna mais difícil acomodar os factos à realidade que se quer ver vingar.
Se já em Dezembro passado o Chefe do Executivo não autorizou a prestação de depoimentos por parte do seu antecessor e do Secretário para as Obras Públicas, o que não deixa de ser lamentável quando em causa está apurar a verdade dos factos e perceber quem está a mentir e até onde vai o manto diáfano da alta corrupção, agora foi a Assembleia Legislativa a obstaculizar ao depoimento do deputado Vong Hin Fai, a que se seguirá previsivelmente igual decisão quanto aos deputados Chui Sai Cheong e Chui Sai Peng.
Não deixa de ser curioso que haja tanta gente da mesma família a ser referida por vários intervenientes num único processo, de arguidos a testemunhas, e não haja um esforço mínimo de se apurar a razão ou sem razão da invocação, tantas vezes, desses nomes – que não são pessoas quaisquer –, preferindo-se deixar tudo na opacidade.
Seria, aliás, necessário esclarecer, posto que isso foi também referido na sessão de ontem do julgamento, que história é essa das listas VIP para aquisição de fracções autónomas com 40% de desconto que eram aprovadas pelo arguido Ng lap Seng.
Recorde-se que este arguido, anteriormente ligado a diversos projectos imobiliários de grande envergadura, parceiro de negócios de alguns outros "tubarões" de Macau, financiador da Fundação Mário Soares, esteve preso durante largo tempo nos Estados Unidos da América exactamente por razões que se prendem com práticas corruptivas.
Saber até onde chegam as suas ramificações, até onde vão os tentáculos do polvo e dos seus parceiros de negócios, quais as razões para a existência dessa lista VIP, quem lá estava e porquê, é assunto de manifesto interesse público.
Qualquer residente de Macau gostaria de ter adquirido, de forma limpa, um apartamento, ou vários, no edifício Windsor Arch com um desconto de 40% e isenção do pagamento de condomínios.
O escandaloso património imobiliário que algumas pessoas "amassaram" em Macau nas últimas décadas devia merecer outra atenção de quem tem por obrigação combater a corrupção, defender a legalidade, o bom nome das instituições e fazer justiça. Já bastou o que se passou no tempo da administração portuguesa com alguns "servidores" públicos.
O que se está a passar agora ultrapassa todos os limites, e é muito mau para quem vê o seu nome referido nos julgamentos em curso e não tem oportunidade de se defender. Mas é também mau para os arguidos e para as testemunhas, perante os quais parece que alguns partem do pressuposto de que nunca falam verdade; como ainda é mau para a justiça que se quer fazer e que se pretende que seja acima de tudo independente, transparente, imparcial e justa, mas é particularmente mau para a dignidade das instituições e o bom nome da RAEM, dos seus dirigentes e da República Popular da China que é quem tem, em última análise, a maior responsabilidade sobre os escândalos de Macau que envolvem dirigentes políticos e altos funcionários da Administração.
Não se percebem quais os receios do Chefe do Executivo e da Assembleia Legislativa para se impedirem os depoimentos dos visados.
Isto está tudo a cheirar demasiado mal há muito tempo e não é só por causa da ausência de uma política ambiental séria e da falta de tratamento adequado dos resíduos líquidos e sólidos.
De um charco saem todos enlameados. Os limpos, os sujos e as instituições.
O Inverno chegou com sol. Vinte graus centígrados e 29% de humidade são o que há de melhor para se abrir as janelas, deixar a luz entrar, sair de casa, andar a pé, de bicicleta, correr, o que for, enfim, apanhar ar, percorrer os trilhos e ver as mudanças nas plantas e nos animais.
Pena que em Macau se usufrua cada vez menos das condições que temos. Num dia como o de hoje, feriado, uma volta por Coloane mostrou estacionamentos vazios, um deserto de gente, espaços fechados, e o inevitável polícia de giro a verificar parquímetros. Nem uma esplanada aberta. O cenário repete-se noutros locais mais citadinos.
Percebe-se que durante quase três anos se andou a encanar a perna à rã em matéria de pandemia, fazendo-se do apelo nacionalista e patriótico o grande estandarte. Vejam o que se passa lá fora, vejam como nós protegemos a nossa população, sintam-se agradecidos.
Volvido este tempo, com a pandemia instalada no interior da China, à medida que se levantam as restrições anteriormente impostas para se manter a política de tolerância zero e do "zero dinâmico", verifica-se a dimensão estrato-esférica da fraude e da mentira. Percorrem-se tarde os caminhos que outros enfrentaram bem mais cedo. Os mortos, oficialmente, quase não existem, embora os números suscitem muitas dúvidas face às imagens e notícias que nos chegam de crematórios a abarrotar, como há muito não se via, e com custos elevadíssimos para as famílias que a eles têm de recorrer. De cada vez que há uma vaga de infectados e de mortes alteram-se as regras de contagem para se manterem os números reduzidos. A história não é nova. Como se alguém, no seu perfeito juízo, admitisse que com dezenas ou centenas de milhares de casos espalhados por todo o país, e vacinas das mais ineficazes, apenas morressem duas ou três pessoas por dia.
Aqui, passada a fase da paranóia securitária e operada a transformação da região para uma espécie de colónia penal de luxo, percebeu-se finalmente que a desconexão da realidade não conduziria a lugar algum. Também aqui os números vão crescendo e praticamente não há lar ou empresa que não tenha alguém infectado. E tal como do outro lado, aquilo que ontem era verdade e importante saber, de um momento para o outro tornou-se irrelevante. Se antes era necessário dar a conhecer e reportar à estatística, enquanto esta apresentava números reduzidos, agora deixou de ser conveniente. Ou foi alterado. Não interessa. O argumento, numa repetição do passado, é para quem não pensa. Dizer que não se divulgam os números dos casos de pessoas com "sintomas leves ou assintomáticos de forma a não confundirem a população sobre a situação epidémica" é conversa para fazer dos outros ignorantes.
A verdade é que hoje já não se divulgam os números dos infectados como antes se fazia apenas porque são elevadíssimos e não interessam à propaganda oficial. Ainda porque se torna muito difícil explicar às pessoas as razões para se ter a economia de rastos, delapidado as reservas, aumentado o desemprego e deixado a inflação galopar para se estar a bater no fundo.
Ninguém fica confundido com informação clara e fiável. As pessoas não são estúpidas, embora muitos possam fazer por parecê-lo para não terem chatices e continuarem a facturar. As declarações do responsável dos SSM, um dos poucos que dá a cara, são uma confissão do desastre da gestão da pandemia durante quase três anos. Tantos sacrifícios para nada.
Chegou o momento em que a única coisa que os SSM têm para nos dizer é que cada um deve ficar em casa e desenvencilhar-se como melhor puder e souber porque estamos a seguir a política anti-epidémica do Governo Central. E, tal como este, estamos à deriva e só sabemos que temos de abrir ao exterior para sobreviver e impedir a revolta social e a implosão disto tudo.
Compreende-se, ademais, o silêncio de toda aqueles que na Assembleia Legislativa levaram os períodos antes da ordem do dia a pedirem para se manter as fronteiras fechadas, implorando para se correr com os trabalhadores não-residentes, para se impedir a entrada de estrangeiros e a tecerem loas ao Chefe do Executivo e ao Executivo. Bastou o director dos Serviços para os Assuntos Laborais passar por lá uma tarde para os deputados "caírem na real". Da ausência de políticas em relação às (falidas) pequenas e médias empresas, à milagrosa diversificação económica, ao concurso para atribuição das novas concessões do jogo – cujo relatório fundamentado ainda está por conhecer devido a razões absurdas –, à política laboral e de "recambiamento" de técnicos expatriados e trabalhadores não-residentes, foi um nunca mais acabar de asneiras. O resultado está aí. Das lojas de gelados aos restaurantes, das pequenas empresas aos concessionários, não há quem não se queixe do êxodo de quadros e da falta de trabalhadores, dos mais aos menos qualificados. Ultimamente, também, da falta de limões e paracetamol.
E de conforto não serve que venham falar, a toda a hora, no reforço das relações com os países de língua portuguesa. Como se isso resolvesse alguma coisa a curto prazo, e fosse possível dar-lhes algum sentido e dinamismo, para lá dos salamaleques de calendário, ignorando ostensivamente Portugal.
Enfim, por agora, o melhor mesmo é fazermo-nos todos de cegos, surdos e mudos durante a quadra natalícia. Será para muitos, provavelmente, a única forma de conseguirem ultrapassar este período sem danos de maior à sua sanidade.
Numa sociedade tolhida por um nacionalismo totalitário assustador, uma visão paranóica da segurança e uma aproximação esquizofrénica à doença viral, é preciso que nos mantenhamos ao largo. Também ao largo da bufaria das capelinhas.
Um bom livro, um filme decente ou uma música reconfortante, nos intervalos dos passeios nos trilhos, são óptimas opções para estes dias de solidão e recolhimento.
Feliz Natal para todos os que o possam ter.
A notícia de que o Chefe do Executivo da RAEM não autorizou a prestação de depoimentos em juízo do seu antecessor, bem como do actual e anterior secretário para as Obras Públicas e Transportes, é mais uma machadada na credibilidade do sistema de justiça da RAEM e um prego no caixão da transparência e da luta anti-corrupção do Presidente Xi Jinping.
Dois antigos altos dirigentes das Obras Públicas estão a ser julgados depois de terem sido pronunciados pela prática de crimes de branqueamento de capitais, corrupção e associação criminosa. A natureza dos crimes e das imputações é de uma tal gravidade que teria evidentemente de ser investigada e clarificada até ao osso. Se múltiplas vezes, no decurso do julgamento, são imputadas responsabilidades ao anterior Chefe do Executivo e a outros nas decisões tomadas pelos arguidos no exercício de funções públicas, não se percebe de todo qual a razão para que fique tudo no limbo.
A decisão tomada por Ho Iat Seng de impedir os depoimentos dos visados não protege a RAEM, não dá àqueles a oportunidade de se defenderem de acusações eventualmente injustas que contra eles estejam a ser feitas pelos arguidos, além de que não protege o próprio Chefe do Executivo em funções e vai contra o interesse público na realização da justiça.
A luta contra a corrupção, contra o tráfico de influências e por uma maior transparência na realização dos negócios públicos não pode bastar-se com uma investigação superficial dos factos, limitando-se a apanhar alguns "ratos" que tiraram partido do sistema vigente para enriquecer ilegalmente, iludindo-se a opinião pública, deixando-se escapar o "polvo", e colocando a salvo outros envolvidos que tivessem responsabilidades públicas. Afinal, todos aqueles de quem os governados esperam que tenham mais probidade e seja maior o grau de exigência e responsabilização no exercício dos cargos para que são escolhidos e em quem todos confiam.
Não se percebe qual o receio da verdade material. Nem o que se teme quando se decide proibir a prestação dos depoimentos de quem é acusado publicamente de estar no topo da cadeia de comando das decisões ilegais que foram tomadas.
A verdade acabará por ser conhecida de todos. E nessa altura ninguém será poupado.
O anúncio feito pelas autoridades chinesas de abandono da política de tolerância zero, com o afastamento radical de medidas que ainda há dias eram consideradas essenciais, só foi possível devido à conjugação de duas ordens de razões.
Por um lado, a verificação de que essa política se revelava em cada dia que passava mais desajustada da realidade à medida que os casos aumentavam por todo o país, na ordem das dezenas de milhares, e a situação económica se agravava.
Depois, porque o povo se começou a manifestar nas ruas em múltiplas cidades contestando a política oficial, o regime de clausura que lhes foi imposto há quase três anos e o seu empobrecimento generalizado.
Ao contrário do que aconteceu em Junho de 1989, em que tudo se resumiu a um foco de revolta e contestação de jovens localizado e centrado na Praça da Paz Celestial, o que facilitou o envio de tropas e a "limpeza" que se seguiu, desta vez todos viram que a revolta popular contra a política de tolerância zero e os seus defensores se estendeu a dezenas de cidades, com milhares de pessoas nas ruas. A contestação foi generalizada e começou a assumir contornos violentos, como se viu pelas imagens que nos chegaram do que se passou em Guangzhou e noutros locais, com violência contra as próprias autoridades policiais.
Não fosse isso e não teria havido qualquer inflexão nas medidas. A contestação social generalizada continua a ser o pesadelo de qualquer autocracia.
Recorde-se que ainda há menos de dois meses, no XX Congresso do Partido Comunista Chinês, havia sido reafirmado que a política de tolerância zero seria para manter.
Também em Macau, na Assembleia Legislativa, o Chefe do Executivo manifestava há três semanas a continuação da política de tolerância zero dinâmica e que, ao contrário de Hong Kong, prosseguiriam em Macau as políticas determinadas pelos autoridades centrais.
Tão pouco tempo depois e a RAEM é obrigada a abrir. Era inevitável que o erro teria de ser corrigido. O que ainda há dias era verdade, científico e patriótico, para ser seguido de olhos fechados, afinal hoje já não convém. Num ápice tudo mudou.
A lição a retirar é a mesma de sempre: quando a inteligência, o bom senso e a justiça desaparecem das políticas governativas, para darem lugar ao seguidismo acrítico e à arbitrariedade, e aquelas apenas representam a medida da teimosia, constituindo um espelho da insensatez, do atavismo e do provincianismo, torna-se muito mais difícil dar resposta às necessidades da comunidade. E isto é válido para qualquer governante e qualquer regime independentemente da respectiva latitude.
A RAEM perdeu mais uma boa oportunidade de reconquistar a sua autonomia e mostrar o caminho a tempo e horas.
A derrota da política de tolerância zero é uma vitória da razão e da cidadania, uma derrota da arbitrariedade a coberto da lei.
Tivessem as medidas agora anunciadas, embora insuficientes, visto que as quarentenas para quem chega do estrangeiro continuam, sido tomadas há um ano, quando em todo o mundo se percebeu que o vírus tinha vindo para ficar e era preciso mudar de políticas para salvar a economia e o ganha-pão da maioria, e ter-se-ia encetado o caminho da mudança muito mais cedo, com muito menos prejuízos e poupando a todos os elevadíssimos custos sociais, económicos e financeiros que nos foram impostos.
É preciso voltar à vida rapidamente. Sem medo, não chorando sobre o tempo perdido. Quem não se vacinou que se vacine, que se proteja, e que acorde para a realidade. O mundo não pára, não espera por nós.
(créditos: The Macau News e IDM)
E lá se realizou mais uma edição da Maratona Internacional de Macau, que de internacional só tinha o nome face à ausência de atletas estrangeiros, tal como aconteceu na edição anterior.
Os mais bem preparados atletas do interior da China dominaram a competição, deixando aos locais os lugares secundários. O desinvestimento no desporto e a ausência de políticas também se mede por aqui, pela falta de competitividade e de resultados dos atletas locais, sujeitos há um ror de anos às mesmas políticas e aos mesmos dirigentes que a ninguém prestam contas.
Desportivamente, porém, a grande nota foi mesmo o facto de ser uma corrida caseira, limitação imposta pela política de tolerância zero dinâmica e as medidas de controlo da Covid-19.
Esta circunstância reflecte bem até onde vai o ridículo e falta de sentido das medidas. Os "patriotas" locais esforçaram-se por berrar a pedir o fecho das fronteiras à entrada de estrangeiros, com medo do vírus, mas agora o vírus chega sempre do interior do país. Desta vez foi uma atleta que correu infectada vinda da província de Guangdong.
Isto significa que não serviu para nada que se impedisse a entrada de estrangeiros, mesmo sãos, durante quase três anos, porque o vírus viajou na mesma para Macau e não precisou de fazer quarentena. Um senhor viajante.
Depois, o que aconteceu também prova que não serve para nada estarem a pedir-se testes a quem vem do interior da China, se logo no dia seguinte acusam positivo, porque afinal os contaminados podem circular livremente pelo Cotai, fazendo compras e comendo por aí sem necessidade de respeitarem as quarentenas impostas a quem chega do estrangeiro.
Para além disso, também não se percebe, de novo, qual a razão para se permitir a vinda de estrangeiros ao Grande Prémio de Macau, embora sujeitos a quarentena, para duas semanas depois, em relação à maratona, se voltar a impedir a sua participação com a desculpa da Covid-19.
Era preferível que todos pudessem entrar e sair livremente, e que todos fossem sujeitos a uma política coerente, sem discriminação por modalidades, nacionalidades ou etnias, uma política alinhada com a OMS e com o que se passa no resto do mundo, em vez desta farsa irracional, saloia e pouco científica.
Olhando para tudo isto, em especial para os custos impostos, designadamente os desportivos – ainda há tempos um deputado sublinhava na Assembleia Legislativa as falhas da participação de Macau em provas internacionais –, e para as exigências impostas em relação a residentes que não viajaram para o exterior, mas que para participarem em eventos locais têm de apresentar testes com resultado negativo, sob pena de exclusão, fica-se sem perceber qual a lógica destas medidas.
Andamos nisto há praticamente três anos. Vamos passar mais um Natal com limitações de viagem, com zonas vermelhas, amarelas, algumas de cor de burro quando foge, não se podendo sequer participar em provas em Hong Kong (ninguém vai a HK correr num sábado ou domingo para depois ficar mais de uma semana "internado" e com código vermelho como se fosse um leproso na Idade Média) e verifica-se que a política de tolerância zero só serviu para esconder o problema real, disfarçando as infecções internas, endurecer o controlo policial sobre gente pacífica e agravar as condições de vida da maioria da população.
Esta manhã, a Agência Xinhua informou que a Comissão Nacional de Saúde da RPC registou no domingo mais 4247 casos de "transmissão local confirmada", o que não deixa de ser uma vergonha com custos pesadíssimos para a maioria da população e para quem tinha anunciado a derrota do vírus.
Estamos a pagar os custos da tolerância zero. Resta saber durante quanto tempo mais.
Amanhã, a conta-gotas, por força do descontentamento popular, tal como está a acontecer no interior da China, poder-se-ão ir alterando as medidas, para se salvar a face e se evitarem as pouco prováveis manifestações nas ruas, que nunca seriam autorizadas pela PSP com o aval do secretário para a Segurança, ou as folhas de papel em branco, mas os verdadeiros responsáveis pela tragédia política, económica e social que todos estamos a viver na RAEM continuarão por aí, e por ali, escondidos, sem que nada lhes aconteça, sem prestarem contas à população. Insensíveis ao sofrimento alheio e aos custos da sua teimosia insensata e irresponsável.
(créditos: Carmo Correia/Lusa)
Mais um mês e estaremos a completar três anos sobre o início da pandemia. A esperança de um rápido regresso à normalidade desapareceu com a sucessão dos anos. E com a partida da esperança foram também muitos sonhos, promessas, encontros e reencontros que nunca mais terão lugar. Vidas que nos fugiram, sorrisos que se evanesceram para nunca mais voltarem, beijos e abraços que jamais serão dados.
A tudo isso se somou, aqui onde estamos, o aproveitamento da situação para tratar de inventariar e catalogar cidadãos pacíficos como potenciais criminosos, portadores e disseminadores de um vírus terrível, uma nova peste que se queria à força que fosse estrangeira e que, afinal, surgiu, percorreu mundo e sempre esteve entre nós. No meio de nós, não distinguindo etnia, nacionalidades ou preferências de género.
Andou disfarçado e escondido, sob a ilusão da tolerância zero, para agora reaparecer em força, invadindo o interior do país, provocando agitação, desconforto, mobilizando os censores, passeando-se por aí, colocando à prova a nossa paciência ao mesmo tempo que expunha a falência das políticas, o fracasso do processo de vacinação, enfim, a ausência de humanidade e racionalidade nas escolhas e no modo como durante estes anos se lidou com a situação.
Três anos de empobrecimento contínuo a todos os níveis: económico, financeiro, social, psicológico, educativo, desportivo, gastronómico, cultural, laboral, empresarial. Custos que serão pagos por mais do que uma geração, embora haja quem não se importe, persista na ignorância, resista à ciência, despreze a integridade e prefira resignar-se à prisão, à solidão e à pobreza enquanto busca razões para a sua própria insensatez.
E quando o silêncio de tudo toma conta, lá surge a notícia envergonhada no jornal, na televisão, nas redes. Um dia é um, no outro dia é outro. É a mulher que "cai" do nono andar, é o desgraçado que é atingido pelo corpo desamparado que se estatela; é o septuagenário que o filho encontra "pendurado" ao chegar a casa.
A escuridão da vida pública é o caminho mais célere para a injustiça. Para a estupidez. E o filme está para continuar até que um campónio convoque um concílio para se debruçar sobre o futuro da humanidade. Enquanto isso, do lado de fora do palácio, escarafunchar-se-á a narina e testar-se-á o cachorro. Até jorrar o sangue.
A contemplação da regressão não é opção; é antes sinal de grave maleita.
Não há nada que perdoe tanto talento junto.
(foto daqui, do Macau Daily Times)
Numa terra onde os arguidos em processos criminais normalmente escusam-se a falar e a esclarecer, preferindo a opção pelo direito ao silêncio, registam-se as declarações prestadas em juízo pelo anterior director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes.
Que tenha rejeitado as imputações de culpabilidade que lhe foram feitas pelo Ministério Público, e se tenha declarado inocente da prática dos crimes por que vem acusado, não é nada que se estranhe.
Importante é, todavia, o facto de se ter declarado inocente apontando responsabilidades, quanto às decisões tomadas e a todos os atropelos verificados no projecto de Alto de Coloane, a Chui Sai On e ao actual Secretário para as Obras Públicas, acusando o primeiro de ter dado as ordens para o reinício das obras e "coordenado pessoalmente" o processo, com instruções específicas para que andasse depressa, logo no primeiro dia no cargo.
É público que a escolha do ex-director das Obras Públicas foi uma opção pessoal de Raimundo do Rosário, secundada pelo anterior Chefe do Executivo. Na altura em que essa decisão foi tomada, o próprio Chui Sai On justificou a escolha dizendo que Li Canfeng foi escolhido depois de avaliadas "a sua disciplina, as suas habilitações e a sua experiência", critérios que foram tidos em consideração. Chui Sai On ainda acrescentou que Li Canfeng foi nomeado pelo secretário em consideração a tais critérios, e que embora tivesse sido testemunha no processo de corrupção que envolveu o ex-secretário Ao Man Long "nunca foi arguido". Saiu, pois, em sua defesa.
Recorde-se que no processo de Ao Man Long, a então testemunha evidenciara preocupantes sinais de falta de memória. Agora vê-se que recuperou. Eu congratulo-me com isso. Ainda bem que assim foi. Urge tirar partido desse facto antes que o arguido volte a ter falhas de memória, apurando-se com urgência todas as responsabilidades.
A prudência, e tudo o que aconteceu naquele processo que ditou a prisão do antigo secretário, aconselharia a que quem directa ou indirectamente tivesse estado envolvido naquela pouca vergonha nunca mais pusesse os pés na Administração Pública e no Governo da RAEM, ou que para este trabalhasse, fosse como dirigente, a apresentar projectos ou a fiscalizar obras. Mas não foi isso que se viu. Fizeram-se ouvidos moucos a todas as suspeições e críticas.
Para quem está de fora, olhando para os factos conhecidos, os "artistas" – alguns que antes eram amigos dos arguidos e disso se ufanavam continuam inexplicavelmente na sombra – e as noticias publicadas ao longo dos anos, verifica-se que corresponde tudo ao mesmo padrão de actuação, aos mesmos esquemas, que acabavam sempre com o enriquecimento de uns quantos figurantes, respectivas famílias e amigos. Sempre os mesmos.
Seria por isso importante que perante a gravidade das acusações feitas – até porque poderá haver gente de boa fé envolvida na lama contra a sua vontade, por temer represálias, e que tem o direito de ver o seu bom nome protegido, seja o secretário ou o contínuo, o caso Sun City ainda não acabou e os negócios desta empresa cruzaram-se múltiplas vezes com a acção governativa e diversos departamentos, evidenciando-se ao longo dos anos ligações múltiplas e extensas ao poder político –, se investigasse tudo até ao fundo.
Isso também poderá ajudar a avivar a memória de mais algumas pessoas, evitando-se que pelo meio haja quem procure atalhar a que se saiba o que não é conveniente, para alguns, para assim se impedir que a verdade a que todos os residentes têm direito não seja integralmente conhecida.
O Ministério Público tem a obrigação de investigar tudo, a começar pelas denúncias feitas em juízo, mandando extrair certidões e iniciando novos processos, mesmo que isso envolva anteriores administrações ou gente ainda em funções, apurando-se eventuais pressões ilegais ou enriquecimentos injustificados dos próprios, das respectivas famílias e dos seus amigos e parceiros de negócios.
O combate à corrupção tem de ser integral e não pode proteger ninguém. Muito menos quem no passado tiver praticado actos com contornos criminais que provocaram, a diversos níveis, o empobrecimento da RAEM.
Macau e as suas gentes já foram demasiadamente prejudicadas. É urgente esclarecer.
Seria importante perceber quais os critérios do Governo de Macau e dos Serviços de Saúde em matéria de controlo dos riscos epidémicos porque há cada vez mais gente que não consegue entender a razão para que sejam tomadas decisões díspares num curto espaço de tempo.
Em 30 de Outubro pp., detectada que foi a existência de um caso de Covid-19 numa trabalhadora de um casino e seus filhos, as autoridades determinaram de imediato o encerramento do casino, o sequestro dos hóspedes do hotel e frequentadores do casino durante vários dias no seu interior, o cancelamento do último dia da Festa da Lusofonia, bem como de diversas outras actividades desportivas e culturais, obrigando-se toda a gente na cidade a fazer testes durante vários dias.
Pouco mais de duas semanas volvidas, em plena semana de Grande Prémio e com um festival gastronómico a decorrer na cidade em barracas ao ar livre, em situações em tudo idênticas às verificadas na Festa da Lusofonia, mas com muito mais gente, e durante mais dias, há uma turista vinda do interior da China, em 14 de Novembro, que se hospeda no Hotel Harbourview e que quatro dias depois de se andar a passear pela cidade testa positivo. Uma outra pessoa, também vinda do outro lado, instalou-se no edifício "The Residencia Macau", na Areia Preta.
E que dizem os Serviços de Saúde? Que o risco para a comunidade é baixo, não se mostrando necessário realizar testes em massa, e podendo, naturalmente, o Grande Prémio e o Festival de Gastronomia, que trouxeram à cidade uns milhares de visitantes, prosseguir sem limitações, ainda que ninguém tivesse de apresentar testes de ácido nucleico negativos para se sentar nas bancadas ou conviver à volta de uns petiscos.
A mim não me pareceu mal que as actividades programadas continuassem a decorrer durante o passado fim-de-semana, uma vez que entendo que a situação devia ser gerida de outro modo e que Macau, não sendo propriamente uma aldeia nos confins do mundo entregue a um chefe tribal, já há muito devia ter regressado a uma vida normal.
Uma coisa é os visitantes de um conhecido restaurante da cidade não compreenderem a razão para deixarem de ter guardanapos decentes às refeições. Este é apenas um problema deles e de quem gere os custos insignificantes dos guardanapos, e que só tem repercussões no bem-estar dos comensais e na imagem e nível do estabelecimento. Um problema privado de caserna.
Outra coisa é todos os residentes perceberem quais são os critérios que guiam as autoridades sanitárias, para além obviamente dos políticos, para que em situações em tudo aparentemente idênticas haja diferentes decisões. Aqui, contrariamente ao exemplo anterior, os custos são elevadíssimos, dizem respeito a toda a população e têm graves consequências na saúde e bem-estar dos residentes e das empresas. Um sério problema público.
Não se percebem as exigências absurdas, e com custos elevados, para algumas situações que à partida não oferecem qualquer risco visível – outro caso de absoluta desproporcionalidade foram as limitações impostas à publicidade, aos advogados e ao exercício de direitos de defesa de arguidos num julgamento que está a decorrer invocando-se razões sanitárias –, e outras em que, pese embora estejam envolvidas milhares de pessoas que nem sequer residem em Macau, trazendo o vírus do exterior e circulando livremente pela cidade, se relaxem as medidas.
Todos nós percebemos que há cada vez mais discriminação em relação aos estrangeiros e não falantes de mandarim, embora também não compreendamos, mas ao menos que se conheçam, as razões em matéria de saúde.
Em Macau nunca houve qualquer problema em matéria de segurança, fosse antes ou depois da aprovação da Lei n.º 2/2009 (Lei Relativa à Segurança do Estado). Esta lei nunca foi aplicada.
Recentemente, algumas sumidades criaram a ideia da necessidade da sua revisão e alteração para fazer face a umas ameaças que nunca ninguém disse claramente quais eram. Mas ontem, na Assembleia Legislativa, de acordo com o relato da imprensa, o Chefe do Executivo disse que "[Em 2022] foi, de forma abrangente e eficaz, prevenida a interferência e a destruição de Macau por forças externas e elementos relacionados com o terrorismo".
Não sabemos que interferência e destruição seriam essas, que forças externas estariam tão interessadas em ocupar o Clube Militar, apropriarem-se do nosso minchi e da água do Lilau, em especial sabendo-se que devido às restrições pandémicas continuamos praticamente fechados ao exterior, o que, todavia, não invalida que fiquemos satisfeitos e sumamente agradecidos, enquanto residentes, por termos sido protegidos, por mim falo, dessas ameaças.
Em Hong Kong, onde não havia legislação que desse cumprimento ao artigo 23 da Lei Básica, Pequim encarregou-se de aprovar a legislação necessária, substituindo-se ao Legislative Council, e acabou com as manifestações, com os pró-democratas, correu com os arruaceiros, com os cortes de estrada, com o sistema eleitoral anti-patriótico e colocou travão à destruição de propriedade pública. Agora, felizmente, é só progresso e prosperidade.
Ontem, curiosamente, aqui na provincía ao lado de Macau e de Hong Kong, onde existe uma lei de segurança nacional em vigor há vários anos, onde o acesso à Internet é limitado, onde as redes sociais são censuradas, onde existe um sistema socialista, onde não há forças externas, onde impera a tolerância zero e a liberdade de imprensa é, diria, a suficiente para a prosperidade e felicidade do povo, ficámos a saber que os casos de Covid-19 continuam a ser aos milhares – quando se estão quase a perfazer 3 (três) anos sobre os primeiros registos do vírus – e que as pessoas violaram as regras do confinamento imposto pelas autoridades, foram para as ruas, destruíram propriedade pública, manifestaram-se, provocaram distúrbios, viraram um carro da polícia, enfim, fizeram tudo o que não era natural fazerem numa "democracia que funciona" com boas leis, com boa governança e tolerância zero.
Não se compreende a sua insatisfação e tão despropositada reacção estando as autoridades a protegê-las.
Em que ficamos? Então para que servem as leis numa "democracia que funciona"?
Na passada sexta-feira, 11 de Novembro, as autoridades da RPC anunciaram a redução das suas quarentenas para observação médica para um período de cinco dias mais três, sendo os primeiros em hotel.
Como seria de esperar, logo o Governo da RAEM e os Serviços de Saúde de Macau, que, ao contrário do que acontece com os seus homólogos de Hong Kong, seguem acriticamente tudo o que seja feito do outro lado da Porta do Cerco, sem ao menos curarem da respectiva utilidade para Macau, copiaram a decisão do Governo Central e reduziram as quarentenas em Macau, para quem chega de Hong Kong, de Taiwan ou do estrangeiro dos anteriores sete dias mais três (7+3) para cinco dias mais três (5+3).
Aparentemente tratar-se-ia de uma redução. Na prática não é, e isto foi desde logo notado pelo Macau Daily Times e por todas as pessoas que não embarcam na conversa para tontos das autoridades locais. A redução é afinal um aumento de quarentena de 7 para 8 dias.
Na verdade, se antes uma pessoa estava em quarentena sete dias e depois saía, poderia fazê-lo com código amarelo, o que sendo limitativo da sua liberdade de deslocação e para poder levar uma via normal, pelo menos permitir-lhe-ia deslocar-se livremente durante os três dias seguintes sem necessidade de ficar confinado às paredes de uma casa.
Agora, com a tal "redução", as pessoas saem com código vermelho, são obrigadas a ficar em casa, só podem sair para irem fazer testes nos três dias seguintes, os táxis podem recusar-se a transportá-las, não podem andar de transportes públicos, não conseguem sequer ir às compras, caso não tenham nada em casa, e as próprias habitações devem cumprir regras especiais se as pessoas não viverem sozinhas. O único benefício será uma redução do custo do hotel para quem tem de pagá-lo. Mas se houver uma única dessas pessoas que nos três dias seguintes à saída do hotel testar positivo, todos os que o rodeiam, e que vivam na mesma casa e no mesmo prédio, estarão em risco. Os transtornos serão superiores aos benefícios.
É óbvio que esta "redução" não tem qualquer impacto para o turismo, para a melhoria da economia da RAEM ou para a vida das pessoas, servindo apenas a propaganda oficial e para enganar os tolos para quem os SSM continuam a falar nas conferências de imprensa.
Nunca se tinha visto nada assim.
Ontem, o Diário de Notícias referia que em Portugal, país onde toda a gente sabe que a democracia tem imensos problemas, não sendo tão boa como a "nossa", "a taxa de desemprego foi estimada em 5,8%".
Aqui, na nossa avançada "democracia", graças à magnífica governança e à política de tolerância zero dinâmica, a taxa de desemprego no final do terceiro trimestre já era de 5,5%.
E para termos um Natal diferente ainda vieram os senhores deputados manifestar-se preocupados com as "perdas milionárias no Fundo de Segurança Social, Fundo de Pensões e Reserva Financeira" e a queda nesta última de quase 13 mil milhões de patacas, só no mês de Agosto.
As perspectivas podem não ser risonhas, mas vermelhas são com toda a certeza.