Voltar ao topo | Alojamento: Blogs do SAPO
Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(créditos: Macau Daily Times)
"(...) Sobre a matéria de facto, cumpre-me dizer que quando comecei a rabiscar estas linhas dei comigo a pensar que a literatura, como alguém disse, talvez seja a única arte em que se pode transgredir sem culpa. A única em que, recuperando o poliptoto que nos idos de 1968 se diz ter sido escrito nas paredes da Sorbonne, “il est interdit d’interdire”.
E em que quando se transgride, ainda assim, se distingue facilmente a boa da má prosa, a escrita banal da que tem o condão de nos transportar para uma realidade paralela que nos obriga a descolar, como se fôssemos à boleia de uma espécie de drone para uma outra dimensão do pensar, da estética, dos sentidos, da cor, do espaço, por vezes da própria história que nos está a ser contada.
“Nas esquinas do olhar”, mantendo o rumo inicialmente traçado pelo autor, a sua marca de água, a açorianeidade tingida de azul profundo, projecta-nos para um modo de ver distinto daquilo que nos comunicou n’ “A humidade dos dias” e em “Navegações e outras errâncias”.
O livro que o Luís Mesquita de Melo escreveu, secamente, à primeira vista é uma viagem. E que viagem.
Uma viagem que caminha entre a realidade e a ficção, tornando difícil a distinção entre ambas, não obstante o aviso que o autor faz ao leitor.
Uma viagem na qual o escritor, na evocação de seu pai, que nunca o leu, antes, porque hoje onde quer que esteja poderá fazê-lo e ficará agradado com o que seus olhos virem, assume a tripla condição de alquimista, autor modernista e autor de versos em prosa. Não necessariamente a de um poeta, apesar de tal como este, na pele do protagonista, também concorrer na frequência das leitarias e cafés de Lisboa.
Álvaro dos Reis, figura maior desta viagem, é um produto da alquimia do autor. Herança de um rico laboratório vivencial que conseguiu fundir numa única personagem o “dandy, burguês e blasé”, Álvaro de Campos, que escrevia por impulso – considerando não valer a pena ter ido ao Oriente e visto a Índia e a China, porque “[a] terra é semelhante e pequenina/ E há só uma maneira de viver” (Opiário), para no fim acabar refugiado no ópio –, com o viajante equilibrado, pacífico e harmonioso que era Ricardo Reis. Aquele que um dia decidiu, disse-nos nas Odes, seguir o seu destino, regar as suas plantas e amar as suas rosas, porque o resto, o que fica, “é a sombra/ De árvores alheias.”
“Nas esquinas do olhar” é uma história que começa e acaba nas ilhas. Ou, se quiserem, em muitas ilhas, ainda quando estas assumem forma continental, mas de onde, apesar disso, só se pode sair por mar em busca de uma nova vida.
Há nesta obra uma demarcação meticulosa do autor/narrador das suas personagens, enquanto minuciosamente as descreve.
Surge-nos, por um lado, uma mulher atraente, discreta, subtil, “impossívelmente bonita”. E do outro lado do mundo chega um Álvaro dos Reis com rugas que “lhe despontam nas esquinas do olhar”. Entre os dois interpõe-se um tipo horroroso, vindo de Fujian, que chega com uma pochete Luís Vuitton e comichões nas virilhas.
Álvaro, que fisicamente é “magricela e esbranquiçado, quase transparente a uma certa luz” (p. 21), causando até alguma repulsa a quem lê, contrapõe-se à jovem Thu. Esta, nem alta nem baixa, possuindo um “corpo perfeito e inquieto”, uma espécie de extraterrestre com uma pele que era “coral recém-nascido no mais puro dos oceanos”. Mulher de “curvas e contracurvas”, é marcada por um olhar “terno com traços de tinta-da-china alongados num sorriso sem trincheiras” (pp.23, 24), cujo áo dài (p. 25) encobria um “corpo esculpido por um cinzel divino” (p. 33).
É o autor quem o diz. Eu limito-me a apreciar a beleza das descrições.
E, pensando na sorte do magricela do Álvaro dos Reis, aqui, junto às águas barrentas e descoloridas que nos rodeiam, soterrado na insalubridade do ar, nos perigos do dengue e da escarlatina, nas salmonelas e gastroenterites colectivas, na confrontação com a realidade, quase sonhando, imagino o que será uma mulher com a beleza de Thu, com pele de coral recém-nascido, e tento adivinhar, sem sucesso, já que Álvaro dos Reis não quis partilhar esse segredo com os leitores, fugindo dessa confissão ao narrador, se na noite do Maxim’s o seu colo cheiraria ao azul atlântico do mar ou a Chanel número 5.
No caso de Thu, o leitor não se deixará iludir por tamanha beleza. Era mulher para pendurar o coração dos homens nos seus piercings quando a música parava, coisa que para os eleitos será bastante dolorosa àquela hora avançada no ambiente pesado de um cabaré como aquele que nos é desvendado pelo autor, de onde exalava, seja lá o que isso for, o “cheiro a donaire parisiense misturado com o cheiro de suor doce embebido em pau-de-sabão caseiro e flores nocturnas”. (pp. 26-29)
Psicologicamente, as personagens desvendam-se nos ambientes que quotidianamente frequentam, nas suas rotinas e nos seus sonhos.
Mais, diria, no confronto entre o dia e a noite. Entre a claridade matinal de Lisboa e a decrepitude do escritório do “Cavalo Branco” onde Álvaro dos Reis “aprendeu a escrever a incerteza da justiça com as palavras certas” (p. 41). Entre a alvura de Thu, que desaparece sob o peso dos néones coloridos, e a fealdade da clientela na noite do Maxim’s.
Mas é ali naquele lugar que se desinfectam as saudades e as tristezas (p. 26) e se vêem aportar homens como o chinês, com “os olhos rasgados de fúria” (p. 41) e tatuagens domesticadas (p. 75), a quem escorre a baba por uma boca de incisivos amarelecidos pelo tabaco e a abundância de chá oolong, ladeados, num quadro cru e quase roçando o asco, por uns caninos dourados (p. 42) que sobressaíam a cada palitar dos dentes, por vezes, recorrendo à “unha multifuncional do dedo mindinho” (pp. 50, 51).
Não vou aqui desvendar a trama. Não é isso o que se pretende. Tampouco irei retirar-vos o prazer da leitura.
O leitor é revisitado pel’ “A humidade dos dias”, que se lhe cola à pele por onde quer que se desloque, instalando-se logo com “a luz húmida da manhã” (p. 14) num carrossel que percorre todas as estações e está sempre presente ao longo do livro: “da confiança do final do Verão” (...) “à baixa pressão do Outono”, na sua “luz oblíqua”(p. 31); manifestando-se tanto nas “cores da Primavera na Avenida da Liberdade” (p. 28), como “na luz outonal de um farol que se perdeu no mar” ou nos “olhos legendados de Verões sem fim”(p. 15), cujos restos são sobrevoados por pássaros num voo sem destino (p. 157).
Ou, ainda, “nos dias frios e cristalinos do Inverno onde as noites são mais azuis” (p. 19), num suceder de imagens, estados, emoções e sensações pontuados pelas diferentes tonalidades da luz e de cores que só se conseguem ver na Europa ou na Ásia, como diz o narrador e acontece com Álvaro dos Reis, quando se vive para além do mar, “deixando atrás os olhos de quem quer viver”, e ver, “para além do mar” (p. 17).
Atrever-me-ia a dizer que os marcos que situam a história, tal como a viagem pelas estações do ano e pelos lugares de memória de Álvaro dos Reis, são os mesmos que atravessam toda a vida do narrador, igualmente protagonista e relator de uma história que se confunde com a personagem por si criada, e que numa imagem plena de simbolismo se desembaraça fisicamente da ilha, “sem data de regresso”, para depois ser temporariamente aprisionado pelos estudos antes de voltar a partir.
Reparar-se-á que a libertação é apenas física, o que torna irrelevante saber quando ocorrerá a viagem de volta. O autor será sempre, é, na sua psicologia um irremediável prisioneiro das ilhas e da estética que delas brota nas suas sete partidas do mundo.
Os lugares de memória, que passarão a ser os nossos, estão incrustados na história da viagem que encetou, qualquer que seja o espaço para onde o autor se movimente, fazendo como que haja uma espécie de transplantação do universo das ilhas para o continente, tão presente nas “fumarolas vulcânicas das castanhas assadas à beira da estrada” (p. 19) e nas, para si, ilhéu desterrado, longínquas “conversas continentais”. E esse movimento de vaivém da memória adquirirá sentido inverso no regresso de Álvaro dos Reis, no encontro do Peter, depois do amor ser enterrado vivo.
O percurso do estudante apartado de casa encerra um sentimento de orfandade, quase de perpétua solidão, representado na figura do “desalojado do Atlântico”, no “sem-abrigo do anticiclone” que se refugiava na escuridão das “sessões tardias do Quarteto”. Sessões que, recorde-se, fizeram as delícias de tantos graças à generosidade e à visão, fica a lembrança, do saudoso Pedro Bandeira Freire.
O narrador veste então a pele do protagonista que logo se confunde com este nas descrições taurinas da Boa-Hora, talvez em homenagem a Laborinho Lúcio e aos exemplos que dava aos seus alunos, ali bem perto, no Limoeiro, nas sessões do Centro de Estudos Judiciários.
Enfim, deixando para trás as “festas de Verão dos santos padroeiros” (p. 21), marcadas pela “roupa a cheirar a América” (idem), em espaços e detalhes a que, compreensivelmente, por eu não ser um Açoriano extraviado da minha geografia, sou estranho, tudo o que Luís Mesquita de Melo escreve vem com uma bússola pessoal que o situa, rodeia e acompanha qualquer que seja a geografia por onde navegue. E que acaba por se revelar nos cheiros e nas estações do ano, assim fazendo com que o leitor viaje entre as suas constelações, os seus espaços de memória, quase que diria, atrevo-me a dizê-lo, autobiográficos, como se quem lê acabasse por ser parte da própria trama.
Mas “Nas esquinas do olhar”, mais do que uma viagem ou um livro em forma de viagem, que isso já era “A humidade dos dias”, talvez involuntariamente, e aqui entramos na ausência de consenso, na provocação, encerra um verdadeiro livro de viagens, de um amante destas e dos grandes espaços.
À semelhança de Bernardo Soares, o autor apresenta-se com o seu Álvaro dos Reis como pertencendo, no que confesso também me revejo, “àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem” e que “não vêem só a multidão” (Livro do Desassossego, Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido...).
Essa é uma virtude atlântica irrepreensível que o autor cultiva e lhe dá horizonte, permitindo-lhe viajar, permanecer e mergulhar, com Álvaro dos Reis ou no lugar do narrador, mais do que nas esquinas do olhar, no interior do mundo que o rodeia.
E depois segue na peugada de Mark Twain (Innocent Abroads, 1869), por exemplo, aqui citado a partir de Theroux, quando este nos recorda que “a viagem é fatal para o preconceito, a intolerância, a estreiteza de espírito, e muitos dos nossos precisam urgentemente dela por causa dessas coisas. Visões largas, sadias e benevolentes de homens e coisas não se podem adquirir vegetando toda a vida num cantinho da Terra”. O autor e Álvaro dos Reis sabem isso.
Em certa medida é o que o Luís Mesquita de Melo escritor faz com este livro, fazendo finalmente viajar muitos leitores, não apenas os que nunca saíram do Faial, que não tendo nascido numa ilha, e ficado prisioneiros de uma qualquer açorianeidade mais ou menos longínqua, viveram na Ásia, fosse em Macau, em Hong Kong, no Vietname, sem nunca a terem conhecido. O autor retira-os do preconceito e oferece-lhes com este seu livro um bilhete que lhes dá acesso a um mundo, riquíssimo nas suas especificidades, que tendo estado ao seu lado nunca foi deles conhecido ou desvendado.
E quando nisto penso legitimamente me perguntarão o que se vê. E quem vejo?
Releia-se então “Le Voyage”, nas Flores do Mal, e aqui encontraremos a criança que amava mapas e selos, desejosa de conhecer um universo igual ao seu apetite.
Também Álvaro dos Reis se apresenta como os verdadeiros viajantes. É esse espírito que surge quando admite partir, ir à procura da sua América para o lado contrário, para oriente, indo para a grande China como um livro em branco (p. 55), na busca de Macau, ante o “assombro da lonjura” (p. 49), “da quinta dimensão da lonjura” (p. 57), “a razão para dizer adeus”.
E é ele quem nos diz, ao contrário do vulgar turista, que “a viagem nunca acaba, só os viajantes se perdem, atirados para fora da estrada, quando morrem ou quando desistem” (p. 49). E não há que temer a partida, pois que quem fica é que se lembra, toda a vida/ Das saudades de quem parte/ E dos olhos de quem morre.
Ele, autor, ou o seu Álvaro dos Reis, poderia ser um deles, um dos que, como R. L. Stevenson, não viajava para ir a parte nenhuma, mas para ir, viajando pela viagem.
Ou, ainda como escreveu Baudelaire, aquele viajante que parte para partir, com o coração leve como se fosse um balão, que nunca se afasta do seu destino, e que sem saber porquê diz sempre “Vamos!”
Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent
Pour partir; cœurs légers, semblables aux ballons,
De leur fatalité jamais ils ne s'écartent,
Et, sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!
E à semelhança do que nos deixou Rimbaud, em “Bateau Ivre”, depois cantado e por tantos amado na voz única de Leo Ferré, também o Álvaro dos Reis protagonista, ou o Luís Mesquita de Melo autor, viajante, velejador, mergulhou nas águas do Poema do Mar, conheceu “os céus crivados de clarões, as trombas,/ Ressacas e marés”, viu o entardecer, viu “[a] Aurora em explosão como um bando de pombas”, e algumas vezes viu “o que o homem quis ver”.
Sem remorso digo que quase todos os espaços que o autor descreve, em Lisboa, em Macau, quando se refere ao jetfoil Horta, que a tantos de nós transportou, ou quando evoca a velha e terna Saigão, recuperada no Continental, na Ópera, no Rex, no Majestic, coloca-nos em mundos que são, nos foram ou se tornam, para quem não os conheceu, infinitamente familiares.
Alguns tê-los-ão percorrido antes, outros irão percorrê-los na leitura. E sem o sabermos estaremos juntos caminhando, porventura em noites iguais, numa solidão acompanhada na exacta medida da proporção dos nossos dramas e dos nossos sonhos.
E hoje, graças às esquinas do seu olhar, estamos a revivê-los. Tanto nessas imagens como na evocação de Duras, na lindíssima imagem dos amantes percorrendo as ruas sinuosas, connosco leitores, passageiros da Vespa que nos leva por uma imaginária Salerno oriental e ao longo da esmagadora costa amalfitana.
As descrições de uma Macau e de espaços e figuras que desapareceram, caso do polícia sinaleiro no cruzamento da Praia Grande com a Almeida Ribeiro, ao lado de outros que teimosamente sobrevivem, como o Hotel Metrópole, com a chinesa que “cantava afinada dentro de um cheongsam com cores a mais e sílabas a menos” (p. 77), não podia faltar.
Enfim, o leitor é colocado perante lugares, na maioria perdidos no tempo, perenes na lembrança, que terão sido em algum dia familiares a muitos dos que nas décadas de oitenta e de noventa do século XX aqui desembarcaram.
Na memória permanecerão como metas de encontro, boémia, encantamento, paixão, partilha e saudável perdição. Numa noite que era, di-lo o narrador com a autoridade de quem por ela deambulou à boleia de Álvaro dos Reis, não do autor, uma “espécie de caleidoscópio, a cheirar a jogo, sexo e improviso” (p. 76). Ao que me limitaria a acrescentar, por experiência própria, o cheiro a mofo e a tabaco ordinário que se desprendia das alcatifas húmidas, dos veludos coçados e queimados por pontas de cigarro, por vezes pegajosos, tudo agora recuperado e para sempre gravado na escrita apurada e actual do Luís Mesquita de Melo.
Memória que, como a vaga que entra por terra, percorre uma Hong Kong já afundada ao largo do porto de Vitória, e que nesse tempo era “uma janela para o azul” (p. 81), entretanto levada nas asas dos aviões que sobreviveram ao rendilhado que precedia as aterragens de Kai Tak, na solitária herança deixada pelas longas noites de Suzy Wong ou de um qualquer Joe Bananas.
É essa memória que, não obstante a distância, logo faz o autor regressar à imagem de sua casa, único refúgio de onde brota essa belíssima “claridade líquida que encharca os olhos de insularidade viciante”. E prazer.
Tudo por oposição à falta de dimensão atlântica e de cor desta espécie de mar pastoso e cada vez mais fechado que nos rodeia e que propiciou, de tão lamacento, o aparecimento dessa fauna, espelhada na genuína figura do chinês com sangue incolor que geria o apartamento da Areia Preta, numa feliz súmula de agiota, cabeça-de-cobra, bate-fichas e proxeneta, com os “dedos amarelados do tabaco e as unhas esverdeadas dos feltros das mesas de jogo” (p. 136).
Retrato que é também a recuperação de algumas figuras características que por aqui ganharam importância, enriquecendo na exploração de lupanares e cantinas oleosas e malcheirosas, e que por aí, em menor número, é certo, ainda pululam, à civil, quais anões, participando mascarados em regulares desfiles patrióticos, dando cabo de todo o coral, incluindo do mais vetusto, traficando as Thu desta vida e corrompendo sempre que possível quem se atravesse no seu caminho.
De uma forma ou de outra, o autor desdobra-se em vários eus. No ilhéu que parte e no que fica, no contador de histórias, no fadista, no viajante, no músico com quem partilha gins tónicos, atingindo o seu epicentro nas descrições do velejador experiente que na profusão de termos e imagens náuticas sofre com o “gemer constante das escotas nos molinetes de bronze”, assistindo ao “lamuriar do casco que vai estalando os ossos a cada solavanco” (p. 148), num léxico diarístico muito especial e já presente em escritos anteriores, verdadeira expressão do poeta discreto e tímido, refugiado no seu caderno, vagueando por uma prosa rica na sua simplicidade e roupagem – “prosa transatlântica”, chamaram-lhe – , e que a espaços se acomoda nos trechos de poemas que intercalam a narrativa e que o autor vai buscar a Álvaro de Campos, a Pessoa, a Pedro Támen, a O’Neil. Mas também a outros menos convencionais como Ary dos Santos, acima citado, Homem de Mello e Jorge Palma, porventura em resultado dos seus próprios estados de alma.
Indispensável é uma nota ao excelente diário de bordo, espécie de filme autónomo enxertado na narrativa.
*
E lavrado que está este sumário dos factos e dos argumentos, gostaria de aqui deixar algumas notas finais, isto é, as conclusões, ónus que me foi imposto quando aceitei o convite. Até porque sem conclusões uma peça fica sempre amputada.
Espero, todavia, que a sua brevidade não as torne deficientes ou obscuras, o que seria sempre penoso para quem me trouxe e, em especial, para vós que tendes a bondade de estoicamente me escutar até aqui.
Faço-o, todavia, com a advertência de que não irei completá-las em momento posterior. Nessa altura, o Luís Mesquita de Melo prosador, contista, poeta, viajante, que sabe que os aguaceiros têm horas, era capaz de atirar borda fora este seu leitor sem esperar por o ver encharcado.
Escrever, como o autor bem sabe, não é fácil e exige o domínio da arte.
O Luís Mesquita de Melo sabe que isso é fundamental. E assume-o, qual Álvaro de Campos, quando nos diz que “escrever é uma espécie de cavalgada a galope procurando palavras escondidas ao acaso pelo deserto” (p.30). Escrever é “a procura incessante da escrita” (pp.55, 56).
Mostrou, antes e de novo neste livro, qual Ricardo Reis, que sabe manejar essa arte com a destreza e a elegância com que o bom esgrimista usa o sabre, o florete ou a espada.
Isso dá-lhe uma responsabilidade acrescida em tudo aquilo que escreve.
Um escritor, ao construir a obra, molda o seu estilo; este passará a ser a sua marca distintiva, uma espécie de tatuagem eterna. Irá transportá-la consigo ao longo da vida.
O leitor, e aqui não fala o amigo nem o advogado que patrocina o prosador, é o primeiro a identificar o estilo do escritor. Dos que têm estilo, evidentemente. E o que aqui está connosco tem estilo próprio, já evidenciado nos livros anteriores.
“Nas esquinas do olhar” é uma extensão do que vem de trás. Lê-se com curiosidade e gosto porque o autor sabe que é a escrita, e neste caso a boa escrita, que procura o escritor (p. 56), e que de qualquer lado se pode ver o Universo, desde que para tal se tenha engenho e nos saibamos colocar na pele do outro. E isso é algo que não depende da altura de cada um.
O Luís Mesquita de Melo é na sua escrita um pouco como aquele a quem Baudelaire perguntava no poema:
"‘Eh! qu'aimes-tu donc, extraordinaire étranger?
- J'aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... là-bas... les merveilleux nuages!" (L’étranger, Petits poèmes en prose, 1869)
Com este pequeno romance, o Luís Mesquita de Melo entra por direito próprio, ao invés de outros que para aí publicam sem que percebamos por que raio escrevem, ou versejam com erros, na galeria dos escritores que sabem escrever, dos escritores que sabem português. E esta é uma bênção para nós, portugueses, que o lemos.
Como amigo desejo ao Luís escritor que tenha sucesso. Que venda muitos livros.
Como leitor sou bem mais exigente. Quero que o Luís continue a escrever, sem alinhar em modas, por natureza efémeras, nem enfileirar na escrita por atrevimentos woke ou neo-realistas que só banalizam, quando não raro descontextualizam a beleza da escrita, danificando a língua e a fragilidade do coral recém-nascido.
Que o Luís faça como na canção de outro Açoriano, como o Tiago Bettencourt: se o vento empurrar suas velas de algodão, ele que se deixe levar acertando a direcção. E se o vento o impelir para bem longe da razão, que aprenda a seguir acertando a direcção, acertando a direcção.
Escrever, creio, é uma acção que deve ser empreendida, inclusive no sonho, com olhos de ver. Para que a escrita seja o reflexo do que os outros não vêem, e do que o escritor vê e quer que os outros consigam vislumbrar. E compreender. Aí se revela o seu verdadeiro desafio, a beleza e a perenidade da boa escrita. E a boa escrita, a boa literatura, como ele bem sabe, para onde quer que o vento nos leve, é intemporal.
E para isso basta que o Luís Mesquita de Melo mantenha presente o que de mais importante nos ensinou esse outro eu que de nós se emancipou e por aí andou, e ainda anda, guardando sonhos e alimentando rebanhos de tresmalhados sob o nome de Alberto Caeiro, bastando-lhe jogar na estrofe com que termino com o ver e o escrever:
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.
Vai por aí, Luís. Há sempre um livro em branco à espera do futuro."
Macau, 14 de Dezembro de 2024
“La grande difficulté de nos dirigeants réside dans la prise de décision. (…) Le pouvoir est rarement capable de faire ce qu’il sait qui faudrait faire. D’où cette tentation de l’autoritarisme que l’on voir poindre, autre face de cette impuissance. L’art politique ne peut se contenter de manier l’illusion, et la communication ne peut tenir lieu de politique. La théâtralisation a ses limites.” Sébastien Le Fol, Les Lieux du Pouvoir – Une histoire secrète et intime de la politique, Préface.
Para o fim guardei o melhor bocado – um bom livro é muito mais do que um simples conjunto de folhas encadernadas – de mais uma das minhas peregrinações à belíssima região do Sarthe. E este é bem mais do que um livro. É uma obra de arte. Tanto numa perspectiva política como sociológica e literária.
Tudo começou, de acordo com o relato de Sébastien Le Fol, por ocasião do quarto centenário do Castelo de Versalhes, em 2023. O castelo continua a ser um instrumento de poder, usado em ocasiões solenes para impressionar os altos dignitários estrangeiros que visitam França. Mais do que um simples monumento é também, como ele escreve, símbolo e instrumento de poder. Que, todavia, ao longo dos anos foi perdendo para outros locais essa ligação umbilical ao mando, embora o país no seu funcionamento institucional e na sua organização social continue a reter muito de monárquico. A “liturgia real continua a impregnar os ritos republicanos” num país em que “o Estado precedeu a nação”, diz ele, o que não deixará de ser discutível.
E socorrendo-se do extraordinário trabalho de direcção do historiador Pierre Nora, na monumental obra Les Lieux de Mémoire, editado pela Gallimard, entre 1984 e 1992, em três tomos (La République, La Nation, Les France) e que no total soma, creio, mais de meia-dúzia de volumes onde são passados em revista, a partir da topografia, dos monumentos, dos símbolos, a memória histórica e colectiva, que será aquilo que garante a continuidade através dos tempos e estabelece a ligação entre o passado e o presente e nos permite compreender hoje o tempo que vivemos, Sébastien Le Fol resolveu seleccionar um conjunto de lugares onde se inscreve o exercício e a representação da política francesa, a sua geografia subliminar, para fazer um estudo sobre a geografia do poder republicano, sobre os “altos lugares da sacralidade institucional”, levando em consideração, como afirma, a evolução galopante dos costumes, a tirania do imediato, a ausência ou o recuo de uma perspectiva crítica destes novos tempos.
Esse estudo, que também se inspirou na herança de Marc Bloch, outra das referências, realizou-se ao jeito de vinte e um ensaios escritos pelas melhores, digo eu, “plumes familières des arcanes du pouvoir”: historiadores, jornalistas, “antigos conselheiros do príncipe”, espectadores comprometidos que fazendo um trabalho de entomologista foram capazes de manter um olhar crítico, lúcido, e ao mesmo tempo humorístico e irónico sobre a comédia do poder e a ritualização republicana.
Solemn de Royer, do Le Monde, escreve sobre o Eliseu, Emmanuel Hecht sobre o Quay D’Orsay, Tugdual Denis sobre Matignon, Jean Guisnel sobre o subterrâneo Posto de Comando Júpiter, símbolo da independência nacional e onde se encontra o botão vermelho da potência nuclear. O próprio Sebastien Le Fol apresenta um ensaio sobre a tribuna do 14 de Julho, especialmente interessante com o Tour na estrada, a aproximação da segunda volta das eleições legislativas e a próxima celebração da tomada da Bastilha.
Mas também há ensaios sobre a tribuna do Stade de France, em Saint-Denis, de Florence Barraco, sobre o Forte de Brégançon, de onde emergiu a figura bronzeada de Chirac, naquele momento encarnando o corpo físico do poder republicano em calções de banho, e Souzy-la-Briche, ou “Souzy-la-Sécrète”, este último escrito por Laureline Dupont, sobre o refúgio onde entre 1982 e 1995 Miterrand levou a sua vida secreta com Anne Pingeot, a jovem que conheceu quando ela tinha 14 anos, depois seduzida aos 20, e de cuja união nasceu a filha Mazarine, em 1974, apenas reconhecida pelo pai dez anos depois.
Sobre o avião de onde a França continua a ser governada durante as viagens presidenciais debruça-se Nathalie Schuck.
Outros consagrados mergulham sobre o Louvre (Adrien Goetz), o bairro de Saint-Germain-des-Prés (Marie-Laure Delorme), a Brasserie Lipp (Nicolas d’Estienne d’Orves), que a política também se faz com os estômagos bem aconchegados, os clubes – Le Siècle, Le Jockey e mais alguns –, que no Ancien Régime serviram como laboratórios de ideias revolucionárias, aqui apresentados pela pena do escritor e crítico literário Louis-Henri de La Rochefoucault; ainda sobre a incontornável ENA (Maria-Amélie Lombard-Latune), os meandros de Bruxelas (Luc de Barochez); enfim, sem esquecer o hospital militar de Val-de-Grâce (Élise Karlin), Notre-Dame (Jérome Cordelier), La cour d’honneur des Invalides (Sylvain Fort), as caçadas presidenciais em Ramboilluet e nos milhares de hectares do santuário de Chambord, apesar de todos os ventos que sopram. Afinal, como conclui Bruno de Cessole, porque “les regimes et les présidents passent, les chasses perdurent”, enquanto nos traz à memória o príncipe de Salina n’O Leopardo.
Pela módica quantia de € 22, a editora Perrin e Sébastien Le Fol colocaram cá fora um livro que é uma verdadeira bíblia dos lugares da aristocracia do poder republicano em França.
Um tratado de história contemporânea que desvenda mistérios e segredos das mulheres e dos homens que governaram, e governam, um país e uma nação com os quais Portugal e os portugueses têm profundas ligações, tanto em bons como em maus momentos, para além dos futebolísticos, e que apesar de todas as revoluções, sobressaltos e confusões mais recentes continua a exercer um apelo irresistível sobre quem queira entender os meandros da política, os dias que correm, e não apenas em França, os espíritos que hoje nos governam, e, já agora, subir um pouco acima da linha de água da mediocridade em que estamos atolados, e cultivar-se.
Esta é a minha sugestão de leitura obrigatória para este Verão. Para todos.
Mais, é verdade, para quem ainda se preocupa com a nossa vida pública, com a que está para lá das primeiras páginas dos jornais, dos dramalhões dos penaltis do Euro, das lágrimas do CR7, dos desvarios de Belém e do dr. Nuno, e se interessa pela forma como o poder político é exercido.
Também para aquela petulante magistratura de vão de escada que faz as delícias dos tablóides; a que não aprendeu antes, nem em casa, nem na escola nem na vida, que considera que um político ser convidado para um almoço de trinta guinéus é um forte indício de ser corrupto.
Recomenda-se, em especial, a sua leitura à nossa elite política.
Pelo menos aos que dentro desta saibam ler, tenham um nível de literacia política aceitável para os lugares que ocupam e, já que não está traduzido para português, por agora, que possuam um domínio razoável da língua francesa.
Se for esse o caso, como a mim sempre acontece quando leio alguém ou algo que me enriqueça o espírito e a mente, certamente que aprenderão, já nem digo muitas, algumas coisas. Coisas que um dia, quem sabe, poderão vir a ser úteis para todos nós.
Em português, evidentemente. Que aqui ninguém os quer ouvir a perorar em francês, nem precisa de vê-los a comer um veadinho na Lipp, ou a visitar o Lasserre ou o Laurent. Para isso já nos bastou o dr. Mário. Que percebia dessas coisas.
E também, ultimamente, um certo filósofo de alumínio.
Ah!, e já me esquecia, imperdoável, o sempre patusco e bem-humorado do Isaltino.
Boa leitura.
Há dias tinha-vos referido que iria aqui trazer mais dois livros recentes que me chegaram às mãos. Hoje falar-vos-ei do segundo.
É de novo sobre os meandros do poder político numa França que ontem teve a primeira volta da suas inesperadas eleições legislativas, convocadas em consequência do terramoto político das eleições europeias de há um mês.
Ainda ninguém sabe o que se irá passar, que ilações irá o Presidente retirar dos resultados de ontem, e daqueles que forem conhecidos dentro de mais alguns dias em função das segundas-voltas. Nem o que daqui para a frente se irá passar naquela "monarquia republicana", tendo em vista as próximas eleições presidenciais, o crescimento da extrema-direita lepenista e os números já conhecidos, de onde ressalta a notável taxa de afluência às urnas, superior a 66 %, e que desde 1997 não atingia valores tão elevados, no que não poderá deixar de ser lido como um sinal da preocupação e do interesse com que os franceses olham para o futuro.
Trata-se de um ensaio, ou novela ensaística, como admite o autor, de 1959 até 2023, sobre o relacionamento entre presidentes da República e primeiros-ministros em França. Uma espécie da história da coabitação dos casais executivos desde o nascimento da V República. Da relação entre De Gaulle e Michel Debré ao convívio entre Macron e Élisabeth Borne.
O autor, Patrice Duhamel, inspirou-se em Jean de La Fontaine e numa das suas fábulas, em razão de um diálogo entre Macron e Fabrice Lucchini por ocasião do quarto centenário do autor das histórias, para passá-las em revista e escolher uma fábula correspondente à relação pessoal e política entre os membros de cada um desses casais.
Oito presidentes, vinte e quatro primeiros-ministros que o autor conheceu e com quem conviveu nas mais diversas circunstâncias, em momentos mais oficiais, outros mais privados, e nos quais encontrou motivos para recordar as suas memórias e relatar episódios dignos de significado e dimensão política. De desencontros, inimizades, desconfianças, desilusões; de relações que se anteviam à partida cordiais e sem levantar grandes ondas, entretanto degeneradas em conflitos pessoais, mas igualmente de comédias, de relações de agilidade, de doçura, por vezes mesmo de amizade e empatia, e de laços sólidos e complementares, que a vida, e a política em particular, não se faz só de dramas.
No total são catorze capítulos numa escrita clara, elegante, pontuada pelo humor, recheada de episódios insólitos vividos por alguém que foi jornalista especializado em assuntos políticos, editor-chefe, director geral da Radio France e depois da France Télevisions, e que sozinho ou em co-autoria escreveu algumas das mais curiosas páginas sobre o que se passa no Eliseu e na vida política do seu país.
O livro de Duhamel, "Le Chat et Le Renard - Presidents er Premier ministres: deux ou trois choses que je sais d'eux..." foi editado pelas Éditions de l'Observatoire, tem cerca de 300 páginas e esta segunda edição datada de Fevereiro de 2024 custou-me 23 Euros, numa livraria do Centro Comercial do Quartier des Jacobins, em Le Mans.
“[À] force d’excès de transparence, de mandats rabotés, de rémunérations plafonnées et de prérogatives réduites, on ne trouvera bientôt en politique que des moines soldats prêts a tout à sacrificier pour le bien public ou des personnalités narcissiques en quête effrénée de pouvoir et reconnaissance.
Le centriste Hervé Marseille, président de l’Union des démocrates et indépendants (UDI) et pillier du Sénat, qui traine ses guêtres en politique depuis quatre décennies, caricature à peine : « Ce n’est plus la politique pour les nuls, c’est la politique par les nuls! »”.
Porque o tempo não é elástico e há razões que me ultrapassam, não pude aqui deixar um comentário, pequeno que fosse, ao que aconteceu nas eleições europeias, tanto em matéria de candidaturas como de resultados. Em todo o caso, não me passou despercebida a forma tão pouco razoável como Pedro Nuno Santos e o PS violaram o contrato com o eleitorado que nas legislativas de 10 de Março havia votado no partido, convencido de que Marta Temido, Francisco Assis e Ana Catarina Mendes iriam respeitar e cumprir o mandato para que haviam sido eleitos.
Se a ideia era candidatá-los nas eleições europeias, então para quê fazê-los eleger para a Assembleia da República? Para depois se fazerem substituir por nulidades que ninguém conhece? Como é possível gente séria e decente estar na política e prestar-se a isto?
Bem se pode vociferar contra o populismo e o cavalgar extremista das múltiplas ondas que vêm e vão, que será muito difícil, enquanto as actuais circunstâncias de exercício da política se mantiverem entre nós, conseguir quanto se perceba a razão que alguns têm. E recordo-me aqui de um dos últimos escritos da Ana Sá Lopes, do muito que o Pacheco Pereira, o António Barreto, o Manuel Carvalho e também a Maria João Marques, entre outros, que também têm escrito e analisado o estado de indigência política e cívica em que nos encontramos. De tal modo que já nem o Presidente da República ou a magistratura escapam ao escrutínio dilacerante da opinião popular, não pública, que faz as delícias do jornalismo trash.
O livro que aqui vos trago – Les Naufrageurs – acabou de sair e faz parte de um conjunto de três que recentemente adquiri. Dos outros falarei a seu tempo. Foi escrito por uma conceituada jornalista e grande repórter do Point – Nathalie Schuck – que se deu ao trabalho de procurar investigar as causas deste estado de deserção cívica em que caiu a classe política francesa, dando a palavra, como ela escreve, aos “premiers acteurs de cette machine qui s’est dangereusement grippée: les responsables politiques”.
E nesse exercício, realizado numa França cada vez mais turbulenta e que vai de novo para eleições dentro de muito pouco tempo, escutou primeiros-ministros, uns mais recentes outros mais antigos, os conselheiros e pesos-pesados dos governos de Chirac, Sarkozy, Hollande e Macron, bem como presidentes de câmara, responsáveis partidários, aspirantes ao Eliseu, altos funcionários, membros do Conselho Constitucional e do Conselho de Estado.
Tem a chancela das Éditions Robert Laffont, custou-me 19 Euros e acabou de chegar às livrarias francesas.
Não perderão nada em lê-lo, creio, independentemente do posicionamento político-ideológico que cada um assuma.
"(...) a democracia posiciona-se contra todas as formas de húbris. Considera o poder concentrado cego e, consequentemente, perigoso; pressupõe que aos humanos não deve ser confiado um domínio incontido sobre os seus semelhantes, nem sobre os biomas que estes habitam" (p. 175)
O australiano John Keane resolveu escrever um livro que sendo simples, claro e acessível não deixa de ser rigoroso. Fê-lo com elegância e os seus vastos conhecimentos sobre a matéria que aborda, dando-nos uma visão global da evolução daquilo a que se convencionou chamar democracia desde as primeiras assembleias de que há notícia, na Síria-Mesopotâmia, cerca de 2500 a.C., até aos dias hoje.
Basicamente, dividiu a sua história em três grandes períodos que correspondem na sua óptica a diferentes modelos de democracia: democracia de assembleia, democracia representativa e aquilo a que chama de democracia monitorizada.
É esta última que pode suscitar mais controvérsia.
O autor interroga-se sobre o próprio da democracia liberal e não deixa de referir, enaltecendo, apesar de todos os seus defeitos, o exemplo indiano, quando afirma que a Índia constituirá o exemplo acabado de como milhões de pessoas pobres e analfabetas, "sobrecarregadas por uma miséria de proporções confrangedoras", "rejeitaram o preconceito de que um país tem de ser rico antes de ser democrático" (p. 143).
Apoiando-se no teólogo estado-unidense Reinhold Niebuhr, remete-nos para uma frase famosa deste ("A aptidão do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a tendência do homem para a injustiça torna a democracia necessária") que em seu entender terá estado na base de uma nova compreensão da democracia "como um contínuo escrutínio público, moderando e controlando o poder segundo padrões 'mais profundos' e mais universais do que os antigos princípios de eleições periódicas, governo pela maioria e soberania popular".
Segundo Keane, a democracia monitorizada "está associada às sociedades saturadas pelos meios multimédia – cujas estruturas de poder são acompanhadas e combatidas de forma permanente pelos cidadãos e seus representantes no âmbito dos ecossitemas dos meios digitais", numa espécie de "mundo de abundância comunicativa" que é estruturado por "dispositivos mediáticos que combinam o texto, o som e a imagem", permitindo uma "comunicação por vias de múltiplas plataformas de utilizadores, no âmbito de redes globais moduladas, acessíveis a muitas centenas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo"; afirmando-nos que "a democracia monitorizada e as redes mediáticas informatizadas são gémeas siamesas". "Se a nova galáxia de abundância comunicativa implodisse subitamente, é provável que a democracia monitorizada não sobrevivesse" (p. 156).
A pandemia e as suas implicações, cada vez mais presentes pelo que se está a passar na China, a tal "democracia que funciona" e que os seus arautos propagandeavam, teve, e tem, implicações na distribuição de riqueza, no bem-estar e no emprego, sendo por isso mesmo questões políticas incontornáveis.
Com evidente oportunidade, cita James Mill e remete-nos para a lembrança de que "se o fim do Governo é produzir a maior felicidade do maior número, esse fim não pode ser alcançado fazendo o maior número de escravos" (p. 187).
Trata-se, afinal, como ele escreve, de "pensar a democracia como guardiã da diversidade do pensamento livre e defensora do poder publicamente responsabilizado", o que tornará a sua ética mais capaz, "mais universalmente tolerante das diferentes e conflituosas definições de democracia", capaz, por isso mesmo, de "respeitar a frágil complexidade dos nossos mundos humanos e não humanos" (p. 174).
Ideias interessantes, conceitos discutíveis, num livro que abre novas pistas de discussão e acaba por ser, nessa medida, intelectualmente estimulante.
"Somos a nossa memória, começou por dizer, a memória determina o que sentimos, o que sabemos, o que imaginamos, o que intuímos, somos a nossa memória e quando lhe perdemos o acesso, mergulhamos num vazio inimaginável, sem acesso à memória não poderemos saber dos valores morais que nos guiam, dos amores e dos medos, das ambições, dos erros e fracassos, tornamo-nos tão imprevisíveis e misteriosos como qualquer recém-nascido, mas enquanto o recém-nascido é um desmemoriado programado para criar memória, para se tornar um adulto autónomo e independente, estes desmemoriados estão impedidos de criar e guardar memórias, estão impedidos de tornar a ser, de mentis, do latim, mente vazia, podemos dizer sem exagero que se assiste à construção do nada, percebe?" (Dulce Maria Cardoso, Eliete, Tinta-da-China, Lisboa, 2018, pp. 244/245)
Parti para a sua leitura sem saber o que iria encontrar, embora pensasse que de uma consagrada como Dulce Maria Cardoso, vencedora de inúmeros prémios, traduzida e publicada em duas dezenas de países, nunca se pode esperar pouco. E não me enganei.
Não sei se existe aquilo a que já alguém chamou uma "escrita no feminino", expressão que considero detestável mas que entendo como querendo referir-se a uma escrita feita por mulheres e que por isso mesmo carregaria um estilo muito próprio, com preocupações que não seriam as decorrentes de um texto sobre o mesmo tema escrito por homens.
Pensei nisso várias vezes ao longo da leitura desta "Parte I A Vida Normal". A vida de uma mulher escrita por outra mulher, num período histórico muito próprio, percorrendo momentos pré e pós-revolucionários, a revolução social operada em Portugal e o universo muito particular e espacialmente localizado de Cascais e da linha do Estoril, percorrendo a emancipação profissional e sexual da mulher, os dramas da família e do casamento, a partida, a separação, a ausência, a dor, o esquecimento, o nascimento, a velhice e a morte. Um olhar que até no julgamento que faz de Jorge se torna cruel de tão cristalino.
Está lá tudo numa narrativa consistente, com uma escrita poderosa, que flui e nos agarra ao longo das quase três centenas de páginas, antes de um final que será tudo menos expectável. A linguagem é desprovida de ornamentos, forte, por vezes mesmo agreste, rude, apesar de perfeitamente enquadrada nas cenas descritas, nas deambulacões da personagem principal.
Costumo dizer que os melhores livros são os que me surpreendem pela qualidade da escrita do seu autor e pela projecção da narrativa. Quando um livro me faz esquecer as suas páginas ao longo da leitura, para me fazer saltar as suas próprias barreiras e é capaz de me levar para uma outra dimensão do pensamento e da palavra, com a mesma simplicidade com que me transporta ao longo dos seus parágrafos, quase como que projectando as suas diversas histórias numa só, e misturando as nossas com as do texto, é sinal de que está muito para lá daquilo que é o romance ou a novela convencional, fazendo esquecer a obra em que todos os cânones se revêem, são respeitados, onde tudo surge muito limpinho, muito formal, muito compenetrado e insípido.
O sal da escrita de Dulce Maria Cardoso está na luz que projecta, no modo como ilumina ao leitor o trajecto de Eliete e o faz dele participar, muitas vezes sem que seja possível para quem lê aperceber-se logo das opções tomadas pela autora e da multiplicidade de sentimentos que assolam vidas aparentemente simples e normais. Como que a dizer-nos que não existem vidas simples nem normais. Há apenas vidas. Cada uma tem a sua cor. O segredo está em saber colocá-las todas nas páginas de um livro, sem cansar e enriquecendo-nos a memória.
Gosto de livros. Aliás, vivo no meio de livros e sem livros não sei o que seria. Gosto de sentir a sua textura, o seu cheiro, gosto de ler e virar as páginas, e depois voltar atrás e reler de novo, apreciando cada letra, cada palavra, cada sílaba, cada virgula. E depois também gosto de manuseá-los, de agarrar as suas lombadas como se fossem uma mulher por quem eu estivesse apaixonado, de com os meus dedos percorrer os detalhes da encadernação, as suas curvas, de apreciar as capas, de procurar as datas de edição e de impressão, a tipografia, o local de edição, todos os detalhes e pormenores. Os livros são vida, experiências, prazer, sentimentos, um fluir ininterrupto de emoções, por vezes de angústias. Os livros que lemos, o que com eles aprendemos, são o que faz de nós o que somos. Como somos. Os livros são um dos espelhos da alma de cada um. Por isso há alguns que têm almas de papel. Também há alguns sem alma, como os que nunca leram, os que não sabem ler, os que nunca aprenderam a ler e a apreciar a leitura. E há os que não podem ler, os que perderam a visão gostando de ler, e que ficaram reduzidos ao desgosto de terem de ficar com o que leram. Até morrerem.
Se eu pudesse tinha todos os livros do mundo. Os bons. Os que nos ensinam alguma coisa, os que nos ensinam a ler e a escrever, a construir frases que façam sentido, com as letras todas. Sem dar erros. Às vezes tenho dificuldade em guardá-los. Lá em casa gostariam que eu não tivesse mais livros, mas eu descubro sempre lugar para mais um. Gostava de ter uma Marmeleira em Macau. E outra em Cascais. O meu problema é que não tenho dinheiro para ter uma Marmeleira repleta de estantes e de livros. Mas também não vou deixar de gostar de livros. Nem de os ter. E por causa dos livros dou comigo a escrever sobre livros quando o que eu queria era falar-vos sobre uma biblioteca. Não é bem a mesma coisa embora vivam juntos numa espécie de união de facto que dá ares de amizade colorida quando os vemos alinhados nas prateleiras das estantes. Por vezes, parece-me mais um concubinato quando encontro o Herberto junto às memórias da Maria Filomena Mónica. Há sempre alguém que vai buscar um livro à estante e depois não o devolve aos respectivos parceiros. Mudam-no de casa e aí é que começam as chatices. Até que damos com aquele ou aquela que procuramos já enturmado em casa alheia, na prateleira do lado, entre a Duras e a Sagan com aquele álbum magnífico dos dez anos da morte do Senna por cima. A empregada que pouco lê já aprendeu a respeitá-los. Pode limpar o pó, só que no fim têm de ficar todos no mesmo sítio para não haver borrasca. E nada de tirar do seu interior os papelinhos amarelos com as minhas anotações, e os bilhetes dos concertos e das corridas que vão servindo de marcadores. Porque nunca há marcadores que cheguem. Livros e bibliotecas são companheiros inseparáveis. Também gosto muito de bibliotecas.
Porque aí há quem por mim tome conta dos livros, os arrume e os conserve, apesar de odiar as burocracias de algumas bibliotecas. Isso e os leitores que escrevem a caneta esferográfica nos livros, que os riscam com tinta e dobram as páginas para não se esquecerem onde ficaram. Esses leitores não gostam de livros, nem de bibliotecas. Eu gostava muito da biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Ficava no meio do parque, no meio do verde, e às vezes até conseguia dali ouvir o mar. Tenho saudades dessa biblioteca onde ia todas as semanas, às vezes dias, pequena, aconchegante, com uma lareira para os dias de Inverno. E agora que estou longe de Cascais vieram falar-me numa biblioteca em Macau, no antigo tribunal de comarca, aproveitando-o e reconvertendo-o para ali ser feita uma boa biblioteca. Eu acho uma óptima ideia. Os chineses e eu temos isso em comum. Gostamos de livros e de bibliotecas. Já vi excelentes bibliotecas na China. E sem formalismos, sem burocracias. A nova Biblioteca de Cantão é moderníssima, cheia de luz, num local fantástico, mesmo junto à Ópera.
Eu gostava de ter uma biblioteca no velho tribunal. Conservando o velho edifício onde no começo da minha vida profissional fiz tantos julgamentos. E até inquirições em processos disciplinares de que fui instrutor. Tinha vinte e cinco anos. Transformar aquele edifício numa biblioteca a sério, com salas sem humidade, com muita luz, com uma temperatura agradável, com livros sem bolor nem cheiro a mofo, com adequada insonorização, sem cheiro a comidas nem falatório, e voltar a vê-lo cheio de gente e de silêncio, cheio de livros, de secretárias de madeira, confortáveis, com prateleiras de onde exalasse o cheiro do papel, a cor das lombadas. Quem me dera.
E ter a biblioteca ali mesmo no centro da cidade, com estacionamentos e transportes à porta para que ninguém tivesse que se preocupar com o parquímetro ou as multas. Com salas amplas, cantos simpáticos, com gabinetes para investigação e pessoal limpo, de mãos finas, educado, simpático, atencioso, culto, que soubesse cuidar dos livros e dos leitores e fosse capaz de distinguir um Kafka de um Bolaño, um Borges de um Eça. E com muitos livros de Ciência Política para eu não ter de estar sempre a comprá-los pela Internet, gastando rios de dinheiro, sem saber quando chegam, nem se chegam, e se no final será necessário ir outra vez ao banco trocar o cartão de crédito. Uma biblioteca ali, no centro da cidade, era o melhor que nos podia acontecer. Se em vez de outro "Papapun" cheio de tralha, e de gajas e gajos aos encontrões com sacos enormes, cheios de fatos de treino e de roupas horríveis, ou de mais uma cantina medíocre de onde exalam cheiros pestilentos e sai uma comida mal confeccionada, tivéssemos ali uma biblioteca decente, bonita, arejada e cheia de livros, isso seria um milagre.
O Governo da RAEM tem feito muitos disparates. Todos os dias deparo-me com mais um, mas agora têm razão. Uma biblioteca no centro da cidade é um sinal de civilização, uma mensagem para os ignorantes, um recado para a população. Um cidadão que lê é um cidadão esclarecido, um cidadão informado. E se for um jogador poderá sempre aprender a ler Dostoievski, que também tem histórias de fortunas e de risco, com hotéis, mulheres, amor e dívidas.
Eu gostava de ter uma biblioteca no antigo tribunal. De poder vê-lo cheio de livros e de leitores. Depois da Rota das Letras por lá passar, uma biblioteca ali seria honrar a memória do espaço. Dar-lhe um futuro digno, um futuro civilizado, um futuro promissor. Ao edifício mas também à população de Macau. Felizes os povos que podem aprender a ler, a gostar de livros e ainda por cima com a sorte de possuir uma biblioteca mesmo ao lado, com os livros todos à mão, vinte e quatro horas por dia, como se fosse um verdadeiro casino de livros. Hoje sai um, amanhã outro, e no fim todos têm uma fortuna. No que leram, no que aprenderam, no que sonharam. Seria a nossa salvação, a nossa garantia de futuro, o nosso seguro de vida contra a ignorância, contra a estupidez dos governantes e a prepotência do poder.
Está na hora dos cidadãos de Macau lutarem pelo seu futuro com inteligência. Se começassem por lutar por ter uma biblioteca na zona mais nobre da cidade estariam a fazer um favor a si próprios. Os seus filhos e netos hão-de agradecer-lhes. Eu quero uma biblioteca no antigo tribunal. Cheia de livros. E vou lutar por ela e por eles. Começo hoje. Quem quiser que venha comigo.
Enfim, o silêncio e a paz. A liberdade.
A luz tímida que vai entrando pelo Outono enquanto o verde, lá fora, do outro lado dos vidros, deixa-me de tempos a tempos perder o olhar. Breves murmúrios de um espírito que vai-e-vem, para logo de seguida se reunir ao corpo. Voltar aos meus livros é regressar a um mundo que nunca acaba. Sentir a energia para recomeçar o que se atrasou, pegar no que ficou para trás, reiniciar a aventura num outro cenário. Um livro pode fazer a alegria de muita gente, um monte de bons livros faz a diferença entre uma vida banal e a realização de um sonho. O sonho marca a distância que separa a felicidade das agruras da vida. Um livro projecta-o. É apenas uma questão de escolha.