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olimpo

por Sérgio de Almeida Correia, em 04.07.24

Sébastien Le Fol.jpg

La grande difficulté de nos dirigeants réside dans la prise de décision. (…) Le pouvoir est rarement capable de faire ce qu’il sait qui faudrait faire. D’où cette tentation de l’autoritarisme que l’on voir poindre, autre face de cette impuissance. L’art politique ne peut se contenter de manier l’illusion, et la communication ne peut tenir lieu de politique. La théâtralisation a ses limites.” Sébastien Le Fol, Les Lieux du Pouvoir – Une histoire secrète et intime de la politique, Préface.

 

Para o fim guardei o melhor bocado – um bom livro é muito mais do que um simples conjunto de folhas encadernadas – de mais uma das minhas peregrinações à belíssima região do Sarthe. E este é bem mais do que um livro. É uma obra de arte. Tanto numa perspectiva política como sociológica e literária.

Tudo começou, de acordo com o relato de Sébastien Le Fol, por ocasião do quarto centenário do Castelo de Versalhes, em 2023. O castelo continua a ser um instrumento de poder, usado em ocasiões solenes para impressionar os altos dignitários estrangeiros que visitam França. Mais do que um simples monumento é também, como ele escreve, símbolo e instrumento de poder. Que, todavia, ao longo dos anos foi perdendo para outros locais essa ligação umbilical ao mando, embora o país no seu funcionamento institucional e na sua organização social continue a reter muito de monárquico. A “liturgia real continua a impregnar os ritos republicanos” num país em que “o Estado precedeu a nação”, diz ele, o que não deixará de ser discutível.

E socorrendo-se do extraordinário trabalho de direcção do historiador Pierre Nora, na monumental obra Les Lieux de Mémoire, editado pela Gallimard, entre 1984 e 1992, em três tomos (La République, La Nation, Les France) e que no total soma, creio, mais de meia-dúzia de volumes onde são passados em revista, a partir da topografia, dos monumentos, dos símbolos, a memória histórica e colectiva, que será aquilo que garante a continuidade através dos tempos e estabelece a ligação entre o passado e o presente e nos permite compreender hoje o tempo que vivemos, Sébastien Le Fol resolveu seleccionar um conjunto de lugares onde se inscreve o exercício e a representação da política francesa, a sua geografia subliminar, para fazer um estudo sobre a geografia do poder republicano, sobre os “altos lugares da sacralidade institucional”, levando em consideração, como afirma, a evolução galopante dos costumes, a tirania do imediato, a ausência ou o recuo de uma perspectiva crítica destes novos tempos.

Esse estudo, que também se inspirou na herança de Marc Bloch, outra das referências, realizou-se ao jeito de vinte e um ensaios escritos pelas melhores, digo eu, “plumes familières des arcanes du pouvoir”: historiadores, jornalistas, “antigos conselheiros do príncipe”, espectadores comprometidos que fazendo um trabalho de entomologista foram capazes de manter um olhar crítico, lúcido, e ao mesmo tempo humorístico e irónico sobre a comédia do poder e a ritualização republicana.

Solemn de Royer, do Le Monde, escreve sobre o Eliseu, Emmanuel Hecht sobre o Quay D’Orsay, Tugdual Denis sobre Matignon, Jean Guisnel sobre o subterrâneo Posto de Comando Júpiter, símbolo da independência nacional e onde se encontra o botão vermelho da potência nuclear. O próprio Sebastien Le Fol apresenta um ensaio sobre a tribuna do 14 de Julho, especialmente interessante com o Tour na estrada, a aproximação da segunda volta das eleições legislativas e a próxima celebração da tomada da Bastilha.

Mas também há ensaios sobre a tribuna do Stade de France, em Saint-Denis, de Florence Barraco, sobre o Forte de Brégançon, de onde emergiu a figura bronzeada de Chirac, naquele momento encarnando o corpo físico do poder republicano em calções de banho, e Souzy-la-Briche, ou “Souzy-la-Sécrète”, este último escrito por Laureline Dupont, sobre o refúgio onde entre 1982 e 1995 Miterrand levou a sua vida secreta com Anne Pingeot, a jovem que conheceu quando ela tinha 14 anos, depois seduzida aos 20, e de cuja união nasceu a filha Mazarine, em 1974, apenas reconhecida pelo pai dez anos depois.  

Sobre o avião de onde a França continua a ser governada durante as viagens presidenciais debruça-se Nathalie Schuck.

Outros consagrados mergulham sobre o Louvre (Adrien Goetz), o bairro de Saint-Germain-des-Prés (Marie-Laure Delorme), a Brasserie Lipp (Nicolas d’Estienne d’Orves), que a política também se faz com os estômagos bem aconchegados, os clubes – Le Siècle, Le Jockey e mais alguns –, que no Ancien Régime serviram como laboratórios de ideias revolucionárias, aqui apresentados pela pena do escritor e crítico literário Louis-Henri de La Rochefoucault; ainda sobre a incontornável ENA (Maria-Amélie Lombard-Latune), os meandros de Bruxelas (Luc de Barochez); enfim, sem esquecer o hospital militar de Val-de-Grâce (Élise Karlin), Notre-Dame (Jérome Cordelier), La cour d’honneur des Invalides (Sylvain Fort), as caçadas presidenciais em Ramboilluet e nos milhares de hectares do santuário de Chambord, apesar de todos os ventos que sopram. Afinal, como conclui Bruno de Cessole, porque “les regimes et les présidents passent, les chasses perdurent”, enquanto nos traz à memória o príncipe de Salina n’O Leopardo.

Pela módica quantia de 22, a editora Perrin e Sébastien Le Fol colocaram cá fora um livro que é uma verdadeira bíblia dos lugares da aristocracia do poder republicano em França.

Um tratado de história contemporânea que desvenda mistérios e segredos das mulheres e dos homens que governaram, e governam, um país e uma nação com os quais Portugal e os portugueses têm profundas ligações, tanto em bons como em maus momentos, para além dos futebolísticos, e que apesar de todas as revoluções, sobressaltos e confusões mais recentes continua a exercer um apelo irresistível sobre quem queira entender os meandros da política, os dias que correm, e não apenas em França, os espíritos que hoje nos governam, e, já agora, subir um pouco acima da linha de água da mediocridade em que estamos atolados, e cultivar-se.

Esta é a minha sugestão de leitura obrigatória para este Verão. Para todos.

Mais, é verdade, para quem ainda se preocupa com a nossa vida pública, com a que está para lá das primeiras páginas dos jornais, dos dramalhões dos penaltis do Euro, das lágrimas do CR7, dos desvarios de Belém e do dr. Nuno, e se interessa pela forma como o poder político é exercido.

Também para aquela petulante magistratura de vão de escada que faz as delícias dos tablóides; a que não aprendeu antes, nem em casa, nem na escola nem na vida, que considera que um político ser convidado para um almoço de trinta guinéus é um forte indício de ser corrupto.

Recomenda-se, em especial, a sua leitura à nossa elite política.

Pelo menos aos que dentro desta saibam ler, tenham um nível de literacia política aceitável para os lugares que ocupam e, já que não está traduzido para português, por agora, que possuam um domínio razoável da língua francesa.

Se for esse o caso, como a mim sempre acontece quando leio alguém ou algo que me enriqueça o espírito e a mente, certamente que aprenderão, já nem digo muitas, algumas coisas. Coisas que um dia, quem sabe, poderão vir a ser úteis para todos nós.

Em português, evidentemente. Que aqui ninguém os quer ouvir a perorar em francês, nem precisa de vê-los a comer um veadinho na Lipp, ou a visitar o Lasserre ou o Laurent. Para isso já nos bastou o dr. Mário. Que percebia dessas coisas.

E também, ultimamente, um certo filósofo de alumínio.

Ah!, e já me esquecia, imperdoável, o sempre patusco e bem-humorado do Isaltino.

Boa leitura.

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fábulas

por Sérgio de Almeida Correia, em 01.07.24

Duhamel 0107 2024.jpg

Há dias tinha-vos referido que iria aqui trazer mais dois livros recentes que me chegaram às mãos. Hoje falar-vos-ei do segundo.

É de novo sobre os meandros do poder político numa França que ontem teve a primeira volta da suas inesperadas eleições legislativas, convocadas em consequência do terramoto político das eleições europeias de há um mês.

Ainda ninguém sabe o que se irá passar, que ilações irá o Presidente retirar dos resultados de ontem, e daqueles que forem conhecidos dentro de mais alguns dias em função das segundas-voltas. Nem o que daqui para a frente se irá passar naquela "monarquia republicana", tendo em vista as próximas eleições presidenciais, o crescimento da extrema-direita lepenista e os números já conhecidos, de onde ressalta a notável taxa de afluência às urnas, superior a 66 %, e que desde 1997 não atingia valores tão elevados, no que não poderá deixar de ser lido como um sinal da preocupação e do interesse com que os franceses olham para o futuro.   

Trata-se de um ensaio, ou novela ensaística, como admite o autor, de 1959 até 2023, sobre o relacionamento entre presidentes da República e primeiros-ministros em França. Uma espécie da história da coabitação dos casais executivos desde o nascimento da V República. Da relação entre De Gaulle e Michel Debré ao convívio entre Macron e Élisabeth Borne.

O autor, Patrice Duhamel, inspirou-se em Jean de La Fontaine e numa das suas fábulas, em razão de um diálogo entre Macron e Fabrice Lucchini por ocasião do quarto centenário do autor das histórias, para passá-las em revista e escolher uma fábula correspondente à relação pessoal e política entre os membros de cada um desses casais.

Oito presidentes, vinte e quatro primeiros-ministros que o autor conheceu e com quem conviveu nas mais diversas circunstâncias, em momentos mais oficiais, outros mais privados, e nos quais encontrou motivos para recordar as suas memórias e relatar episódios dignos de significado e dimensão política. De desencontros, inimizades, desconfianças, desilusões; de relações que se anteviam à partida cordiais e sem levantar grandes ondas, entretanto degeneradas em conflitos pessoais, mas igualmente de comédias, de relações de agilidade, de doçura, por vezes mesmo de amizade e empatia, e de laços sólidos e complementares, que a vida, e a política em particular, não se faz só de dramas.

No total são catorze capítulos numa escrita clara, elegante, pontuada pelo humor, recheada de episódios insólitos vividos por alguém que foi jornalista especializado em assuntos políticos, editor-chefe, director geral da Radio France e depois da France Télevisions, e que sozinho ou em co-autoria escreveu algumas das mais curiosas páginas sobre o que se passa no Eliseu e na vida política do seu país.

O livro de Duhamel, "Le Chat et Le Renard - Presidents er Premier ministres: deux ou trois choses que je sais d'eux..." foi editado pelas Éditions de l'Observatoire, tem cerca de 300 páginas e esta segunda edição datada de Fevereiro de 2024 custou-me 23 Euros, numa livraria do Centro Comercial do Quartier des Jacobins, em Le Mans.

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naufrágios

por Sérgio de Almeida Correia, em 24.06.24

N Schuck.jpg

[À] force d’excès de transparence, de mandats rabotés, de rémunérations plafonnées et de prérogatives réduites, on ne trouvera bientôt en politique que des moines soldats prêts a tout à sacrificier pour le bien public ou des personnalités narcissiques en quête effrénée de pouvoir et reconnaissance.

Le centriste Hervé Marseille, président de l’Union des démocrates et indépendants (UDI) et pillier du Sénat, qui traine ses guêtres en politique depuis quatre décennies, caricature à peine : « Ce n’est plus la politique pour les nuls, c’est la politique par les nuls! »”.

 

Porque o tempo não é elástico e há razões que me ultrapassam, não pude aqui deixar um comentário, pequeno que fosse, ao que aconteceu nas eleições europeias, tanto em matéria de candidaturas como de resultados. Em todo o caso, não me passou despercebida a forma tão pouco razoável como Pedro Nuno Santos e o PS violaram o contrato com o eleitorado que nas legislativas de 10 de Março havia votado no partido, convencido de que Marta Temido, Francisco Assis e Ana Catarina Mendes iriam respeitar e cumprir o mandato para que haviam sido eleitos.

Se a ideia era candidatá-los nas eleições europeias, então para quê fazê-los eleger para a Assembleia da República? Para depois se fazerem substituir por nulidades que ninguém conhece? Como é possível gente séria e decente estar na política e prestar-se a isto?

Bem se pode vociferar contra o populismo e o cavalgar extremista das múltiplas ondas que vêm e vão, que será muito difícil, enquanto as actuais circunstâncias de exercício da política se mantiverem entre nós, conseguir quanto se perceba a razão que alguns têm. E recordo-me aqui de um dos últimos escritos da Ana Sá Lopes, do muito que o Pacheco Pereira, o António Barreto, o Manuel Carvalho e também a Maria João Marques, entre outros, que também têm escrito e analisado o estado de indigência política e cívica em que nos encontramos. De tal modo que já nem o Presidente da República ou a magistratura escapam ao escrutínio dilacerante da opinião popular, não pública, que faz as delícias do jornalismo trash.

 O livro que aqui vos trago – Les Naufrageurs – acabou de sair e faz parte de um conjunto de três que recentemente adquiri. Dos outros falarei a seu tempo. Foi escrito por uma conceituada jornalista e grande repórter do Point – Nathalie Schuck – que se deu ao trabalho de procurar investigar as causas deste estado de deserção cívica em que caiu a classe política francesa, dando a palavra, como ela escreve, aos “premiers acteurs de cette machine qui s’est dangereusement grippée: les responsables politiques”.

E nesse exercício, realizado numa França cada vez mais turbulenta e que vai de novo para eleições dentro de muito pouco tempo, escutou primeiros-ministros, uns mais recentes outros mais antigos, os conselheiros e pesos-pesados dos governos de Chirac, Sarkozy, Hollande e Macron, bem como presidentes de câmara, responsáveis partidários, aspirantes ao Eliseu, altos funcionários, membros do Conselho Constitucional e do Conselho de Estado.

Tem a chancela das Éditions Robert Laffont, custou-me 19 Euros e acabou de chegar às livrarias francesas.

Não perderão nada em lê-lo, creio, independentemente do posicionamento político-ideológico que cada um assuma.

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ler

por Sérgio de Almeida Correia, em 02.12.22

Breve História da Democracia - John Keane - Compra Livros na Fnac.pt

"(...) a democracia posiciona-se contra todas as formas de húbris. Considera o poder concentrado cego e, consequentemente, perigoso; pressupõe que aos humanos não deve ser confiado um domínio incontido sobre os seus semelhantes, nem sobre os biomas que estes habitam" (p. 175)

 

O australiano John Keane resolveu escrever um livro que sendo simples, claro e acessível não deixa de ser rigoroso. Fê-lo com elegância e os seus vastos conhecimentos sobre a matéria que aborda, dando-nos uma visão global da evolução daquilo a que se convencionou chamar democracia desde as primeiras assembleias de que há notícia, na Síria-Mesopotâmia, cerca de 2500 a.C., até aos dias hoje.

Basicamente, dividiu a sua história em três grandes períodos que correspondem na sua óptica a diferentes modelos de democracia: democracia de assembleia, democracia representativa e aquilo a que chama de democracia monitorizada.

É esta última que pode suscitar mais controvérsia.

O autor interroga-se sobre o próprio da democracia liberal e não deixa de referir, enaltecendo, apesar de todos os seus defeitos, o exemplo indiano, quando afirma que a Índia constituirá o exemplo acabado de como milhões de pessoas pobres e analfabetas, "sobrecarregadas por uma miséria de proporções confrangedoras", "rejeitaram o preconceito de que um país tem de ser rico antes de ser democrático" (p. 143).

Apoiando-se no teólogo estado-unidense Reinhold Niebuhr, remete-nos para uma frase famosa deste ("A aptidão do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a tendência do homem para a injustiça torna a democracia necessária") que em seu entender terá estado na base de uma nova compreensão da democracia "como um contínuo escrutínio público, moderando e controlando o poder segundo padrões 'mais profundos' e mais universais do que os antigos princípios de eleições periódicas, governo pela maioria e soberania popular".

Segundo Keane, a democracia monitorizada "está associada às sociedades saturadas pelos meios multimédia – cujas estruturas de poder são acompanhadas e combatidas de forma permanente pelos cidadãos e seus representantes no âmbito dos ecossitemas dos meios digitais", numa espécie de "mundo de abundância comunicativa" que é estruturado por "dispositivos mediáticos que combinam o texto, o som e a imagem", permitindo uma "comunicação por vias de múltiplas plataformas de utilizadores, no âmbito de redes globais moduladas, acessíveis a muitas centenas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo"; afirmando-nos que "a democracia monitorizada e as redes mediáticas informatizadas são gémeas siamesas".  "Se a nova galáxia de abundância comunicativa implodisse subitamente, é provável que a democracia monitorizada não sobrevivesse" (p. 156).

A pandemia e as suas implicações, cada vez mais presentes pelo que se está a passar na China, a tal "democracia que funciona" e que os seus arautos propagandeavam, teve, e tem, implicações na distribuição de riqueza, no bem-estar e no emprego, sendo por isso mesmo questões políticas incontornáveis.

Com evidente oportunidade, cita James Mill e remete-nos para a lembrança de que "se o fim do Governo é produzir a maior felicidade do maior número, esse fim não pode ser alcançado fazendo o maior número de escravos" (p. 187).

Trata-se, afinal, como ele escreve, de "pensar a democracia como guardiã da diversidade do pensamento livre e defensora do poder publicamente responsabilizado", o que tornará a sua ética mais capaz, "mais universalmente tolerante das diferentes e conflituosas definições de democracia", capaz, por isso mesmo, de "respeitar a frágil complexidade dos nossos mundos humanos e não humanos" (p. 174).

Ideias interessantes, conceitos discutíveis, num livro que abre novas pistas de discussão e acaba por ser, nessa medida, intelectualmente estimulante.

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leituras

por Sérgio de Almeida Correia, em 21.01.19

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"Somos a nossa memória, começou por dizer, a memória determina o que sentimos, o que sabemos, o que imaginamos, o que intuímos, somos a nossa memória e quando lhe perdemos o acesso, mergulhamos num vazio inimaginável, sem acesso à memória não poderemos saber dos valores morais que nos guiam, dos amores e dos medos, das ambições, dos erros e fracassos, tornamo-nos tão imprevisíveis e misteriosos como qualquer recém-nascido, mas enquanto o recém-nascido é um desmemoriado programado para criar memória, para se tornar um adulto autónomo e independente, estes desmemoriados estão impedidos de criar e guardar memórias, estão impedidos de tornar a ser, de mentis, do latim, mente vazia, podemos dizer sem exagero que se assiste à construção do nada, percebe?" (Dulce Maria Cardoso, Eliete, Tinta-da-China, Lisboa, 2018, pp. 244/245)

 

Parti para a sua leitura sem saber o que iria encontrar, embora pensasse que de uma consagrada como Dulce Maria Cardoso, vencedora de inúmeros prémios, traduzida e publicada em duas dezenas de países, nunca se pode esperar pouco. E não me enganei.

Não sei se existe aquilo a que já alguém chamou uma "escrita no feminino", expressão que considero detestável mas que entendo como querendo referir-se a uma escrita feita por mulheres e que por isso mesmo carregaria um estilo muito próprio, com preocupações que não seriam as decorrentes de um texto sobre o mesmo tema escrito por homens.

Pensei nisso várias vezes ao longo da leitura desta "Parte I A Vida Normal". A vida de uma mulher escrita por outra mulher, num período histórico muito próprio, percorrendo momentos pré e pós-revolucionários, a revolução social operada em Portugal e o universo muito particular e espacialmente localizado de Cascais e da linha do Estoril, percorrendo a emancipação profissional e sexual da mulher, os dramas da família e do casamento, a partida, a separação, a ausência, a dor, o esquecimento, o nascimento, a velhice e a morte. Um olhar que até no julgamento que faz de Jorge se torna cruel de tão cristalino. 

Está lá tudo numa narrativa consistente, com uma escrita poderosa, que flui e nos agarra ao longo das quase três centenas de páginas, antes de um final que será tudo menos expectável. A linguagem é desprovida de ornamentos, forte, por vezes mesmo agreste, rude, apesar de perfeitamente enquadrada nas cenas descritas, nas deambulacões da personagem principal. 

Costumo dizer que os melhores livros são os que me surpreendem pela qualidade da escrita do seu autor e pela projecção da narrativa. Quando um livro me faz esquecer as suas páginas ao longo da leitura, para me fazer saltar as suas próprias barreiras e é capaz de me levar para uma outra dimensão do pensamento e da palavra, com a mesma simplicidade com que me transporta ao longo dos seus parágrafos, quase como que projectando as suas diversas histórias numa só, e misturando as nossas com as do texto, é sinal de que está muito para lá daquilo que é o romance ou a novela convencional, fazendo esquecer a obra em que todos os cânones se revêem, são respeitados, onde tudo surge muito limpinho, muito formal, muito compenetrado e insípido.

O sal da escrita de Dulce Maria Cardoso está na luz que projecta, no modo como ilumina ao leitor o trajecto de Eliete e o faz dele participar, muitas vezes sem que seja possível para quem lê aperceber-se logo das opções tomadas pela autora e da multiplicidade de sentimentos que assolam vidas aparentemente simples e normais. Como que a dizer-nos que não existem vidas simples nem normais. Há apenas vidas. Cada uma tem a sua cor. O segredo está em saber colocá-las todas nas páginas de um livro, sem cansar e enriquecendo-nos a memória.

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biblioteca

por Sérgio de Almeida Correia, em 09.09.16

unirecs.jpg

Gosto de livros. Aliás, vivo no meio de livros e sem livros não sei o que seria. Gosto de sentir a sua textura, o seu cheiro, gosto de ler e virar as páginas, e depois voltar atrás e reler de novo, apreciando cada letra, cada palavra, cada sílaba, cada virgula. E depois também gosto de manuseá-los, de agarrar as suas lombadas como se fossem uma mulher por quem eu estivesse apaixonado, de com os meus dedos percorrer os detalhes da encadernação, as suas curvas, de apreciar as capas, de procurar as datas de edição e de impressão, a tipografia, o local de edição, todos os detalhes e pormenores. Os livros são vida, experiências, prazer, sentimentos, um fluir ininterrupto de emoções, por vezes de angústias. Os livros que lemos, o que com eles aprendemos, são o que faz de nós o que somos. Como somos. Os livros são um dos espelhos da alma de cada um. Por isso há alguns que têm almas de papel. Também há alguns sem alma, como os que nunca leram, os que não sabem ler, os que nunca aprenderam a ler e a apreciar a leitura. E há os que não podem ler, os que perderam a visão gostando de ler, e que ficaram reduzidos ao desgosto de terem de ficar com o que leram. Até morrerem.

Se eu pudesse tinha todos os livros do mundo. Os bons. Os que nos ensinam alguma coisa, os que nos ensinam a ler e a escrever, a construir frases que façam sentido, com as letras todas. Sem dar erros. Às vezes tenho dificuldade em guardá-los. Lá em casa gostariam que eu não tivesse mais livros, mas eu descubro  sempre lugar para mais um. Gostava de ter uma Marmeleira em Macau. E outra em Cascais. O meu problema é que não tenho dinheiro para ter uma Marmeleira repleta de estantes e de livros. Mas também não vou deixar de gostar de livros. Nem de os ter. E por causa dos livros dou comigo a escrever sobre livros quando o que eu queria era falar-vos sobre uma biblioteca. Não é bem a mesma coisa embora vivam juntos numa espécie de união de facto que dá ares de amizade colorida quando os vemos alinhados nas prateleiras das estantes. Por vezes, parece-me mais um concubinato quando encontro o Herberto junto às memórias da Maria Filomena Mónica. Há sempre alguém que vai buscar um livro à estante e depois não o devolve aos respectivos parceiros. Mudam-no de casa e aí é que começam as chatices. Até que damos com aquele ou aquela que procuramos já enturmado em casa alheia, na prateleira do lado, entre a Duras e a Sagan com aquele álbum magnífico dos dez anos da morte do Senna por cima. A empregada que pouco lê já aprendeu a respeitá-los. Pode limpar o pó, só que no fim têm de ficar todos no mesmo sítio para não haver borrasca. E nada de tirar do seu interior os papelinhos amarelos com as minhas anotações, e os bilhetes dos concertos e das corridas que vão servindo de marcadores. Porque nunca há marcadores que cheguem. Livros e bibliotecas são companheiros inseparáveis. Também gosto muito de bibliotecas.

Porque aí há quem por mim tome conta dos livros, os arrume e os conserve, apesar de odiar as burocracias de algumas bibliotecas. Isso e os leitores que escrevem a caneta esferográfica nos livros, que os riscam com tinta e dobram as páginas para não se esquecerem onde ficaram. Esses leitores não gostam de livros, nem de bibliotecas. Eu gostava muito da biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Ficava no meio do parque, no meio do verde, e às vezes até conseguia dali ouvir o mar. Tenho saudades dessa biblioteca onde ia todas as semanas, às vezes dias, pequena, aconchegante, com uma lareira para os dias de Inverno. E agora que estou longe de Cascais vieram falar-me numa biblioteca em Macau, no antigo tribunal de comarca, aproveitando-o e reconvertendo-o para ali ser feita uma boa biblioteca. Eu acho uma óptima ideia. Os chineses e eu temos isso em comum. Gostamos de livros e de bibliotecas. Já vi excelentes bibliotecas na China. E sem formalismos, sem burocracias. A nova Biblioteca de Cantão é moderníssima, cheia de luz, num local fantástico, mesmo junto à Ópera.

Eu gostava de ter uma biblioteca no velho tribunal. Conservando o velho edifício onde no começo da minha vida profissional fiz tantos julgamentos. E até inquirições em processos disciplinares de que fui instrutor. Tinha vinte e cinco anos. Transformar aquele edifício numa biblioteca a sério, com salas sem humidade, com muita luz, com uma temperatura agradável, com livros sem bolor nem cheiro a mofo, com adequada insonorização, sem cheiro a comidas nem falatório, e voltar a vê-lo cheio de gente e de silêncio, cheio de livros, de secretárias de madeira, confortáveis, com prateleiras de onde exalasse o cheiro do papel, a cor das lombadas. Quem me dera.

E ter a biblioteca ali mesmo no centro da cidade, com estacionamentos e transportes à porta para que ninguém tivesse  que se preocupar com o parquímetro ou as multas. Com salas amplas, cantos simpáticos, com gabinetes para investigação e pessoal limpo, de mãos finas, educado, simpático, atencioso, culto, que soubesse cuidar dos livros e dos leitores e fosse capaz de distinguir um Kafka de um Bolaño, um Borges de um Eça. E com muitos livros de Ciência Política para eu não ter de estar sempre a comprá-los pela Internet, gastando rios de dinheiro, sem saber quando chegam, nem se chegam, e se no final será necessário ir outra vez ao banco trocar o cartão de crédito. Uma biblioteca ali, no centro da cidade, era o melhor que nos podia acontecer. Se em vez de outro "Papapun" cheio de tralha, e de gajas e gajos aos encontrões com sacos enormes, cheios de fatos de treino e de roupas horríveis, ou de mais uma cantina medíocre de onde exalam cheiros pestilentos e sai uma comida mal confeccionada,  tivéssemos ali uma biblioteca decente, bonita, arejada e cheia de livros, isso seria um milagre.

O Governo da RAEM tem feito muitos disparates. Todos os dias deparo-me com mais um, mas agora têm razão. Uma biblioteca no centro da cidade é um sinal de civilização, uma mensagem para os ignorantes, um recado para a população. Um cidadão que lê é um cidadão esclarecido, um cidadão informado. E se for um jogador poderá sempre aprender a ler Dostoievski, que também tem histórias de fortunas e de risco, com hotéis, mulheres, amor e dívidas.

Eu gostava de ter uma biblioteca no antigo tribunal. De poder vê-lo cheio de livros e de leitores. Depois da Rota das Letras por lá passar, uma biblioteca ali seria honrar a memória do espaço. Dar-lhe um futuro digno, um futuro civilizado, um futuro promissor. Ao edifício mas também à população de Macau. Felizes os povos que podem aprender a ler, a gostar de livros e ainda por cima com a sorte de possuir uma biblioteca mesmo ao lado, com os livros todos à mão, vinte e quatro horas por dia, como se fosse um verdadeiro casino de livros. Hoje sai um, amanhã outro, e no fim todos têm uma fortuna. No que leram, no que aprenderam, no que sonharam. Seria a nossa salvação, a nossa garantia de futuro, o nosso seguro de vida contra a ignorância, contra a estupidez dos governantes e a prepotência do poder.

Está na hora dos cidadãos de Macau lutarem pelo seu futuro com inteligência. Se começassem por lutar por ter uma biblioteca na zona mais nobre da cidade estariam a fazer um favor a si próprios. Os seus filhos e netos hão-de agradecer-lhes. Eu quero uma biblioteca no antigo tribunal. Cheia de livros. E vou lutar por ela e por eles. Começo hoje. Quem quiser que venha comigo.

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livros

por Sérgio de Almeida Correia, em 08.12.15

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Enfim, o silêncio e a paz. A liberdade.

A luz tímida que vai entrando pelo Outono enquanto o verde, lá fora, do outro lado dos vidros, deixa-me de tempos a tempos perder o olhar. Breves murmúrios de um espírito que vai-e-vem, para logo de seguida se reunir ao corpo. Voltar aos meus livros é regressar a um mundo que nunca acaba. Sentir a energia para recomeçar o que se atrasou, pegar no que ficou para trás, reiniciar a aventura num outro cenário. Um livro pode fazer a alegria de muita gente, um monte de bons livros faz a diferença entre uma vida banal e a realização de um sonho. O sonho marca a distância que separa a felicidade das agruras da vida. Um livro projecta-o. É apenas uma questão de escolha. 

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