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ler

por Sérgio de Almeida Correia, em 02.12.22

Breve História da Democracia - John Keane - Compra Livros na Fnac.pt

"(...) a democracia posiciona-se contra todas as formas de húbris. Considera o poder concentrado cego e, consequentemente, perigoso; pressupõe que aos humanos não deve ser confiado um domínio incontido sobre os seus semelhantes, nem sobre os biomas que estes habitam" (p. 175)

 

O australiano John Keane resolveu escrever um livro que sendo simples, claro e acessível não deixa de ser rigoroso. Fê-lo com elegância e os seus vastos conhecimentos sobre a matéria que aborda, dando-nos uma visão global da evolução daquilo a que se convencionou chamar democracia desde as primeiras assembleias de que há notícia, na Síria-Mesopotâmia, cerca de 2500 a.C., até aos dias hoje.

Basicamente, dividiu a sua história em três grandes períodos que correspondem na sua óptica a diferentes modelos de democracia: democracia de assembleia, democracia representativa e aquilo a que chama de democracia monitorizada.

É esta última que pode suscitar mais controvérsia.

O autor interroga-se sobre o próprio da democracia liberal e não deixa de referir, enaltecendo, apesar de todos os seus defeitos, o exemplo indiano, quando afirma que a Índia constituirá o exemplo acabado de como milhões de pessoas pobres e analfabetas, "sobrecarregadas por uma miséria de proporções confrangedoras", "rejeitaram o preconceito de que um país tem de ser rico antes de ser democrático" (p. 143).

Apoiando-se no teólogo estado-unidense Reinhold Niebuhr, remete-nos para uma frase famosa deste ("A aptidão do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a tendência do homem para a injustiça torna a democracia necessária") que em seu entender terá estado na base de uma nova compreensão da democracia "como um contínuo escrutínio público, moderando e controlando o poder segundo padrões 'mais profundos' e mais universais do que os antigos princípios de eleições periódicas, governo pela maioria e soberania popular".

Segundo Keane, a democracia monitorizada "está associada às sociedades saturadas pelos meios multimédia – cujas estruturas de poder são acompanhadas e combatidas de forma permanente pelos cidadãos e seus representantes no âmbito dos ecossitemas dos meios digitais", numa espécie de "mundo de abundância comunicativa" que é estruturado por "dispositivos mediáticos que combinam o texto, o som e a imagem", permitindo uma "comunicação por vias de múltiplas plataformas de utilizadores, no âmbito de redes globais moduladas, acessíveis a muitas centenas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo"; afirmando-nos que "a democracia monitorizada e as redes mediáticas informatizadas são gémeas siamesas".  "Se a nova galáxia de abundância comunicativa implodisse subitamente, é provável que a democracia monitorizada não sobrevivesse" (p. 156).

A pandemia e as suas implicações, cada vez mais presentes pelo que se está a passar na China, a tal "democracia que funciona" e que os seus arautos propagandeavam, teve, e tem, implicações na distribuição de riqueza, no bem-estar e no emprego, sendo por isso mesmo questões políticas incontornáveis.

Com evidente oportunidade, cita James Mill e remete-nos para a lembrança de que "se o fim do Governo é produzir a maior felicidade do maior número, esse fim não pode ser alcançado fazendo o maior número de escravos" (p. 187).

Trata-se, afinal, como ele escreve, de "pensar a democracia como guardiã da diversidade do pensamento livre e defensora do poder publicamente responsabilizado", o que tornará a sua ética mais capaz, "mais universalmente tolerante das diferentes e conflituosas definições de democracia", capaz, por isso mesmo, de "respeitar a frágil complexidade dos nossos mundos humanos e não humanos" (p. 174).

Ideias interessantes, conceitos discutíveis, num livro que abre novas pistas de discussão e acaba por ser, nessa medida, intelectualmente estimulante.

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leituras

por Sérgio de Almeida Correia, em 21.01.19

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"Somos a nossa memória, começou por dizer, a memória determina o que sentimos, o que sabemos, o que imaginamos, o que intuímos, somos a nossa memória e quando lhe perdemos o acesso, mergulhamos num vazio inimaginável, sem acesso à memória não poderemos saber dos valores morais que nos guiam, dos amores e dos medos, das ambições, dos erros e fracassos, tornamo-nos tão imprevisíveis e misteriosos como qualquer recém-nascido, mas enquanto o recém-nascido é um desmemoriado programado para criar memória, para se tornar um adulto autónomo e independente, estes desmemoriados estão impedidos de criar e guardar memórias, estão impedidos de tornar a ser, de mentis, do latim, mente vazia, podemos dizer sem exagero que se assiste à construção do nada, percebe?" (Dulce Maria Cardoso, Eliete, Tinta-da-China, Lisboa, 2018, pp. 244/245)

 

Parti para a sua leitura sem saber o que iria encontrar, embora pensasse que de uma consagrada como Dulce Maria Cardoso, vencedora de inúmeros prémios, traduzida e publicada em duas dezenas de países, nunca se pode esperar pouco. E não me enganei.

Não sei se existe aquilo a que já alguém chamou uma "escrita no feminino", expressão que considero detestável mas que entendo como querendo referir-se a uma escrita feita por mulheres e que por isso mesmo carregaria um estilo muito próprio, com preocupações que não seriam as decorrentes de um texto sobre o mesmo tema escrito por homens.

Pensei nisso várias vezes ao longo da leitura desta "Parte I A Vida Normal". A vida de uma mulher escrita por outra mulher, num período histórico muito próprio, percorrendo momentos pré e pós-revolucionários, a revolução social operada em Portugal e o universo muito particular e espacialmente localizado de Cascais e da linha do Estoril, percorrendo a emancipação profissional e sexual da mulher, os dramas da família e do casamento, a partida, a separação, a ausência, a dor, o esquecimento, o nascimento, a velhice e a morte. Um olhar que até no julgamento que faz de Jorge se torna cruel de tão cristalino. 

Está lá tudo numa narrativa consistente, com uma escrita poderosa, que flui e nos agarra ao longo das quase três centenas de páginas, antes de um final que será tudo menos expectável. A linguagem é desprovida de ornamentos, forte, por vezes mesmo agreste, rude, apesar de perfeitamente enquadrada nas cenas descritas, nas deambulacões da personagem principal. 

Costumo dizer que os melhores livros são os que me surpreendem pela qualidade da escrita do seu autor e pela projecção da narrativa. Quando um livro me faz esquecer as suas páginas ao longo da leitura, para me fazer saltar as suas próprias barreiras e é capaz de me levar para uma outra dimensão do pensamento e da palavra, com a mesma simplicidade com que me transporta ao longo dos seus parágrafos, quase como que projectando as suas diversas histórias numa só, e misturando as nossas com as do texto, é sinal de que está muito para lá daquilo que é o romance ou a novela convencional, fazendo esquecer a obra em que todos os cânones se revêem, são respeitados, onde tudo surge muito limpinho, muito formal, muito compenetrado e insípido.

O sal da escrita de Dulce Maria Cardoso está na luz que projecta, no modo como ilumina ao leitor o trajecto de Eliete e o faz dele participar, muitas vezes sem que seja possível para quem lê aperceber-se logo das opções tomadas pela autora e da multiplicidade de sentimentos que assolam vidas aparentemente simples e normais. Como que a dizer-nos que não existem vidas simples nem normais. Há apenas vidas. Cada uma tem a sua cor. O segredo está em saber colocá-las todas nas páginas de um livro, sem cansar e enriquecendo-nos a memória.

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biblioteca

por Sérgio de Almeida Correia, em 09.09.16

unirecs.jpg

Gosto de livros. Aliás, vivo no meio de livros e sem livros não sei o que seria. Gosto de sentir a sua textura, o seu cheiro, gosto de ler e virar as páginas, e depois voltar atrás e reler de novo, apreciando cada letra, cada palavra, cada sílaba, cada virgula. E depois também gosto de manuseá-los, de agarrar as suas lombadas como se fossem uma mulher por quem eu estivesse apaixonado, de com os meus dedos percorrer os detalhes da encadernação, as suas curvas, de apreciar as capas, de procurar as datas de edição e de impressão, a tipografia, o local de edição, todos os detalhes e pormenores. Os livros são vida, experiências, prazer, sentimentos, um fluir ininterrupto de emoções, por vezes de angústias. Os livros que lemos, o que com eles aprendemos, são o que faz de nós o que somos. Como somos. Os livros são um dos espelhos da alma de cada um. Por isso há alguns que têm almas de papel. Também há alguns sem alma, como os que nunca leram, os que não sabem ler, os que nunca aprenderam a ler e a apreciar a leitura. E há os que não podem ler, os que perderam a visão gostando de ler, e que ficaram reduzidos ao desgosto de terem de ficar com o que leram. Até morrerem.

Se eu pudesse tinha todos os livros do mundo. Os bons. Os que nos ensinam alguma coisa, os que nos ensinam a ler e a escrever, a construir frases que façam sentido, com as letras todas. Sem dar erros. Às vezes tenho dificuldade em guardá-los. Lá em casa gostariam que eu não tivesse mais livros, mas eu descubro  sempre lugar para mais um. Gostava de ter uma Marmeleira em Macau. E outra em Cascais. O meu problema é que não tenho dinheiro para ter uma Marmeleira repleta de estantes e de livros. Mas também não vou deixar de gostar de livros. Nem de os ter. E por causa dos livros dou comigo a escrever sobre livros quando o que eu queria era falar-vos sobre uma biblioteca. Não é bem a mesma coisa embora vivam juntos numa espécie de união de facto que dá ares de amizade colorida quando os vemos alinhados nas prateleiras das estantes. Por vezes, parece-me mais um concubinato quando encontro o Herberto junto às memórias da Maria Filomena Mónica. Há sempre alguém que vai buscar um livro à estante e depois não o devolve aos respectivos parceiros. Mudam-no de casa e aí é que começam as chatices. Até que damos com aquele ou aquela que procuramos já enturmado em casa alheia, na prateleira do lado, entre a Duras e a Sagan com aquele álbum magnífico dos dez anos da morte do Senna por cima. A empregada que pouco lê já aprendeu a respeitá-los. Pode limpar o pó, só que no fim têm de ficar todos no mesmo sítio para não haver borrasca. E nada de tirar do seu interior os papelinhos amarelos com as minhas anotações, e os bilhetes dos concertos e das corridas que vão servindo de marcadores. Porque nunca há marcadores que cheguem. Livros e bibliotecas são companheiros inseparáveis. Também gosto muito de bibliotecas.

Porque aí há quem por mim tome conta dos livros, os arrume e os conserve, apesar de odiar as burocracias de algumas bibliotecas. Isso e os leitores que escrevem a caneta esferográfica nos livros, que os riscam com tinta e dobram as páginas para não se esquecerem onde ficaram. Esses leitores não gostam de livros, nem de bibliotecas. Eu gostava muito da biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Ficava no meio do parque, no meio do verde, e às vezes até conseguia dali ouvir o mar. Tenho saudades dessa biblioteca onde ia todas as semanas, às vezes dias, pequena, aconchegante, com uma lareira para os dias de Inverno. E agora que estou longe de Cascais vieram falar-me numa biblioteca em Macau, no antigo tribunal de comarca, aproveitando-o e reconvertendo-o para ali ser feita uma boa biblioteca. Eu acho uma óptima ideia. Os chineses e eu temos isso em comum. Gostamos de livros e de bibliotecas. Já vi excelentes bibliotecas na China. E sem formalismos, sem burocracias. A nova Biblioteca de Cantão é moderníssima, cheia de luz, num local fantástico, mesmo junto à Ópera.

Eu gostava de ter uma biblioteca no velho tribunal. Conservando o velho edifício onde no começo da minha vida profissional fiz tantos julgamentos. E até inquirições em processos disciplinares de que fui instrutor. Tinha vinte e cinco anos. Transformar aquele edifício numa biblioteca a sério, com salas sem humidade, com muita luz, com uma temperatura agradável, com livros sem bolor nem cheiro a mofo, com adequada insonorização, sem cheiro a comidas nem falatório, e voltar a vê-lo cheio de gente e de silêncio, cheio de livros, de secretárias de madeira, confortáveis, com prateleiras de onde exalasse o cheiro do papel, a cor das lombadas. Quem me dera.

E ter a biblioteca ali mesmo no centro da cidade, com estacionamentos e transportes à porta para que ninguém tivesse  que se preocupar com o parquímetro ou as multas. Com salas amplas, cantos simpáticos, com gabinetes para investigação e pessoal limpo, de mãos finas, educado, simpático, atencioso, culto, que soubesse cuidar dos livros e dos leitores e fosse capaz de distinguir um Kafka de um Bolaño, um Borges de um Eça. E com muitos livros de Ciência Política para eu não ter de estar sempre a comprá-los pela Internet, gastando rios de dinheiro, sem saber quando chegam, nem se chegam, e se no final será necessário ir outra vez ao banco trocar o cartão de crédito. Uma biblioteca ali, no centro da cidade, era o melhor que nos podia acontecer. Se em vez de outro "Papapun" cheio de tralha, e de gajas e gajos aos encontrões com sacos enormes, cheios de fatos de treino e de roupas horríveis, ou de mais uma cantina medíocre de onde exalam cheiros pestilentos e sai uma comida mal confeccionada,  tivéssemos ali uma biblioteca decente, bonita, arejada e cheia de livros, isso seria um milagre.

O Governo da RAEM tem feito muitos disparates. Todos os dias deparo-me com mais um, mas agora têm razão. Uma biblioteca no centro da cidade é um sinal de civilização, uma mensagem para os ignorantes, um recado para a população. Um cidadão que lê é um cidadão esclarecido, um cidadão informado. E se for um jogador poderá sempre aprender a ler Dostoievski, que também tem histórias de fortunas e de risco, com hotéis, mulheres, amor e dívidas.

Eu gostava de ter uma biblioteca no antigo tribunal. De poder vê-lo cheio de livros e de leitores. Depois da Rota das Letras por lá passar, uma biblioteca ali seria honrar a memória do espaço. Dar-lhe um futuro digno, um futuro civilizado, um futuro promissor. Ao edifício mas também à população de Macau. Felizes os povos que podem aprender a ler, a gostar de livros e ainda por cima com a sorte de possuir uma biblioteca mesmo ao lado, com os livros todos à mão, vinte e quatro horas por dia, como se fosse um verdadeiro casino de livros. Hoje sai um, amanhã outro, e no fim todos têm uma fortuna. No que leram, no que aprenderam, no que sonharam. Seria a nossa salvação, a nossa garantia de futuro, o nosso seguro de vida contra a ignorância, contra a estupidez dos governantes e a prepotência do poder.

Está na hora dos cidadãos de Macau lutarem pelo seu futuro com inteligência. Se começassem por lutar por ter uma biblioteca na zona mais nobre da cidade estariam a fazer um favor a si próprios. Os seus filhos e netos hão-de agradecer-lhes. Eu quero uma biblioteca no antigo tribunal. Cheia de livros. E vou lutar por ela e por eles. Começo hoje. Quem quiser que venha comigo.

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livros

por Sérgio de Almeida Correia, em 08.12.15

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Enfim, o silêncio e a paz. A liberdade.

A luz tímida que vai entrando pelo Outono enquanto o verde, lá fora, do outro lado dos vidros, deixa-me de tempos a tempos perder o olhar. Breves murmúrios de um espírito que vai-e-vem, para logo de seguida se reunir ao corpo. Voltar aos meus livros é regressar a um mundo que nunca acaba. Sentir a energia para recomeçar o que se atrasou, pegar no que ficou para trás, reiniciar a aventura num outro cenário. Um livro pode fazer a alegria de muita gente, um monte de bons livros faz a diferença entre uma vida banal e a realização de um sonho. O sonho marca a distância que separa a felicidade das agruras da vida. Um livro projecta-o. É apenas uma questão de escolha. 

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