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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Pego esta manhã na edição do South China Morning Post. Leio o que escreve Shi Jiangtao na página 2. Ainda mais desenvolvidamente na edição online do jornal.
Na imprensa de Macau, nos dias de hoje, seria impensável a publicação desse artigo na imprensa de língua portuguesa. O director, o editor ou chefe de redacção do jornal seria imediatamente chamado à atenção. O articulista seria vetado em futuras edições e muito provavelmente seriam dadas ordens internas nesse sentido.
Apesar de tudo ainda há esta diferença entre Hong Kong e Macau. É a diferença entre uma cidade e uma paróquia.
Ali ainda é possível ousar pensar em chinês e escrever livremente em inglês, sem grandes constrangimentos ou com o risco de logo a seguir se perder o emprego, o cliente ou a coluna no jornal.
Uma pessoa não pode ser punida por pensar livremente e dizer o que pensa. Nem criticada ou rotulada por isso.
É preciso olhar para os factos com olhos de ver.
As pessoas sabem que a sua felicidade não depende dos subsídios à imprensa nem de convites para excursões turísticas. Não é por isso que são menos patriotas. E sabem isso.
(créditos: Felix Wong/SCMP)
O encerramento do Apple Daily, um jornal tablóide de Hong Kong fundado por Jimmy Lai em 1995, que hoje ocorreu com a publicação da sua última edição impressa marca o fim de uma era.
O Apple Daily nunca foi uma referência em termos de jornalismo sério, isento e de qualidade, tendo sido muitos os seus alvos ao longo dos anos. Nem por isso deixou de ser um dos jornais mais lidos e vendidos por todas as histórias que publicava, da política ao social.
O reforço da componente policial e autoritária do regime, imposta a partir de 2017, e que previsível e inevitavelmente transbordaria para Hong Kong e Macau, tornaria difícil outro desfecho, o qual terá sido apressado pelos acontecimentos dos últimos anos e a mais do que humilhante derrota eleitoral sofrida pelas forças pró-Pequim nas últimas eleições locais de Hong Kong.
Muitos dirão que o fecho do jornal, praticamente coincidindo com o momento, dentro de dias, em que se celebrará o centenário do PCC, é um serviço à pátria, a Hong Kong e ao jornalismo.
Esta posição talvez também explique o facto do artigo do South China Morning Post – uma sombra da referência que foi –, que noticia o que se passou durante a noite estar incluído numa secção denominada "Law and Crime".
Duvido, no entanto, que seja esse o correcto diapasão.
Nas sociedades onde se pratica o melhor jornalismo e se consegue aceder à melhor informação, também existem problemas de segurança interna e há múltiplos pasquins e tablóides, não me parecendo que seja pela via da proibição, do bullying, da auto-censura e da censura explícita ou da perseguição organizada à sombra do aparelho coercivo que se melhorará a consciência e a confiança das gentes nas instituições, na informação que lhes é disponibilizada e num jornalismo informado e informativo.
Quando o poder político e judicial não conseguem combater os eventuais abusos da liberdade de imprensa, ou os excessos de alguma má informação e propaganda que, a seu ver, seja perniciosa para a comunidade, recorrendo aos meios ao seu dispor num Estado de Direito, e necessitam de criar leis de excepção e de entrar pelos caminhos da repressão policial pura e dura, da censura e do encerramento de órgãos de informação como justificação para as suas "cruzadas de defesa da lei e da legalidade", é sinal de que estão profundamente doentes.
Não acredito que as multidões de hongkongers que durante horas a fio, ainda durante a noite, fizeram fila para poderem adquirir um último exemplar do jornal, como antes desenvolveram campanhas de apoio quando as suas contas foram congeladas, fossem todos leitores ou assinantes do Apple Daily. Longe disso.
Essas pessoas quiseram apenas dar o sinal de que não será pela via da censura, do silenciamento e do encerramento de órgãos de imprensa, da prisão dos seus proprietários e responsáveis, que conseguirão matar o "vírus" da liberdade de imprensa e as suas múltiplas variantes.
Poderão adormecê-lo temporariamente, escondê-lo mesmo, é certo, mas aquele continuará a medrar na clandestinidade da consciência e da casa de cada um, transmitindo-se aos seus filhos. Como uma espécie de formiga-branca que vai corroendo por dentro os alicerces do aparelho repressivo. Sem que os amanuenses se apercebam. Sem se dar por nada.
(versão original do texto em língua inglesa publicado pelo Macau Daily Times, em 01/08/2017)
SOBRE O DIREITO À INFORMAÇÃO
“Where there is lack of institutions for managing information and the political will to make information available, information professionals are unlikely to have a conducive environment in which to practice their skills. Well established institutions would stimulate the use of information and facilitate the acquisition of skills required to use information to advantage. It takes time to uproot the culture of impunity and non-accountability. This requires long term investment and commitment to promote a culture that appreciates information and makes it readily available to citizens.” (Svärd, 2017)
1. A opinião pública de Macau foi há dias confrontada com a notícia de proibição de entrada na RAEM de quatro jornalistas de Hong Kong (HK). De acordo com os relatos conhecidos, aqueles pretendiam fazer a cobertura das devastadoras consequências do tufão Hato. Na sequência desse impedimento de entrada a quem legitimamente pretendia exercer a sua profissão, diversas associações de profissionais de imprensa, de Macau e de Hong Kong, lavraram o seu protesto.
2. As notificações de proibição de entrada dos lesados remetem para a sua base razões de segurança pública. Instado a esclarecer essas razões, o Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, veio dizer em conferência de imprensa, em resumo, o seguinte: (1) os casos são confidenciais e não podem ser divulgadas as respectivas razões; e (2) que não se trata de um caso de perseguição profissional visto que as autoridades não estão concentradas numa só profissão. Ao mesmo tempo, o coordenador do Centro de Operações da Protecção Civil de Macau revelou que, "em princípio", é proibida a entrada às pessoas que "possam causar perigo à ordem pública e à ordem da sociedade" [HojeMacau, 28/08/2017, p. 5], e que o "Governo e o pessoal militarizado respeitam imenso a liberdade de imprensa", tanto assim que "temos quase todos os dias conferências de imprensa" [Ponto Final, 28/08/2017, p. 4).
3. O número de casos de proibição de entrada em Macau tem vindo a aumentar, continuando a não ser perceptível a que título e por ordem expressa de quem é que isso é feito, havendo situações de quem já depois de estar cá dentro seja convidado a sair. Tratando-se nalguns casos, além do mais, de cidadãos chineses, embora procedentes de uma outra RAE da China, importa perguntar:
(a) se essa proibição de entrada e (b) o não esclarecimento das suas razões, por motivos de confidencialidade, é compatível com texto e o espírito da Lei Básica de Macau (LB). Isto é, se respeita a liberdade de imprensa, o direito à informação e os direitos e deveres fundamentais dos residentes.
4. No seu art.º 18.º, a Lei Básica (LB) determina que para além dela própria, as leis em vigor na RAEM são as previamente vigentes, conforme o art.º 8.º, e as produzidas pelo órgão legislativo próprio. Das leis nacionais da RPC só são aplicáveis em Macau as constantes do Anexo III da LB, sendo que nenhuma destas versa sobre a matéria que aqui se trata.
5. Convirá ter igualmente presente que a LB consagra a liberdade de expressão e de imprensa dos residentes, garante a aplicabilidade na RAEM das disposições do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e que os não residentes gozam em igual medida de todos os direitos e liberdades atribuídos e garantidos aos residentes (cfr. art.ºs 27.º, 40.º e 43.º da LB).
6. Por seu turno, o Chefe do Executivo (CE) tem entre as suas competências a obrigação de fazer cumprir a LB e as outras leis aplicáveis na RAEM, bem como "cumprir as directrizes emanadas do Governo Popular Central em relação às matérias previstas na LB" (cfr. art.º 50.º).
7. Do conjunto de leis vigentes em Macau subordinadas à LB e que se prendem com as questões acima equacionadas, há ainda que levar em consideração a Lei de Imprensa (Lei n.º 7/90/M), tendo em atenção, igualmente, os despachos do CE atinentes ao exercício da liberdade de imprensa e ao direito à informação.
8. Pode-se então começar por dizer que a LB, embora dispondo de forma expressa e inequívoca sobre a liberdade de imprensa, não consagra qualquer direito à informação. Este surge, porém, referido em termos que não oferecem dúvidas no art.º 3.º da Lei de Imprensa, desdobrando-se num direito "de informar", "de se informar" e "de ser informado", o que inclui "a liberdade de acesso às fontes de informação".
9. Esta formulação está de acordo com o que os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira esclarecem quando, em anotação ao art.º 37.º da Constituição portuguesa, ensinam que o “primeiro [direito de informar] consiste (...) na liberdade de transmitir ou comunicar informações a outrem, de as difundir sem impedimentos; mas pode também revestir uma forma positiva, enquanto direito a informar, ou seja, direito a meios para informar".
10. Por sua vez, o direito de se informar "consiste, designadamente, na liberdade de recolha de informação, de procura de fontes de informação, isto é, no direito de não ser impedido de se informar (...).
11. Quanto ao direito a ser informado aqueles autores referem ser esta "a versão positiva do direito de se informar, consistindo num direito a ser mantido adequadamente e verdadeiramente informado" tanto pelos meios de comunicação como pelos poderes públicos (CRP Anotada, Vol. I, 4.ª edição, 2007, p. 573).
12. Constituindo uma "manifestação da liberdade de expressão do pensamento", o direito à informação foi igualmente acolhido pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em vigor na RAEM, no sentido de englobar as liberdades "de procurar, receber e expandir informações"(art.º 19.º, n.º 2), não obstante possa ser restringido por razões de "salvaguarda da segurança nacional e da ordem pública".
13. O Chefe do Executivo da RAEM, no preâmbulo do Despacho CE 145/2002, considerou a "comunicação social indispensável ao exercício dos direitos fundamentais numa sociedade democrática e pluralista", sublinhando o papel insubstituível da imprensa no "desenvolvimento da sociedade e na promoção da harmonia social", razão pela qual se preocupou em "reforçar a independência do direito à informação face aos poderes político e económico".
14. Neste contexto legislativo, afigura-se, à partida, de todo incompreensível a decisão de impedimento de entrada na RAEM dos jornalistas de HK, na medida em que parece violar de forma flagrante o que se encontra postulado, surgindo por isso mesmo como incompatível face ao texto e ao espírito da LB e demais leis vigentes.
15. Respondida que está, parcialmente, a primeira questão que acima se colocou, importa agora verificar, antes da emissão de um juízo conclusivo, se é admissível o não esclarecimento das razões da proibição por motivos de confidencialidade.
16. Quanto a este ponto, as notificações feitas aos visados referiram apenas razões de segurança interna, o que só por si se mostra claramente insuficiente para a compreensão da motivação do poder político-administrativo na emissão da decisão. É certo que o PIDCP prevê a restrição do direito à informação por razões de salvaguarda da segurança nacional e da ordem pública, mas este ponto podia e devia desde logo ter sido esclarecido pelo Secretário para a Segurança.
17. Para a opinião pública de Macau e para os visados, jornalistas profissionais em missão de serviço, tanto quanto se saiba sem cadastro criminal que fosse impeditivo da sua entrada e do exercício da profissão, pois que de outro modo as autoridades públicas não deixariam de ter prestado essa informação, afigura-se estranho que razões recomendariam uma atitude tão drástica.
18. Não se vê em quê que um jornalista em missão ou um fotógrafo de HK, cidadão chinês, iria colocar em causa a segurança da RAEM só por estar a tirar fotografias ao lixo acumulado nas ruas, às árvores tombadas ou às infra-estruturas públicas de livre acesso que desvendaram todas as suas deficiências de projecção, construção e fiscalização, procurando falar com a população e com os responsáveis políticos e/ou administrativos para obter esclarecimentos. O que se decidiu, e pela forma como o foi, colocou em xeque todo o trabalho que se tem feito na RAEM em matéria de defesa do segundo sistema e esquece o preço elevado que até agora foi pago pelos contribuintes sob a forma de subsídios governamentais, à imprensa em língua chinesa e portuguesa, para defesa da liberdade de imprensa e do direito à informação.
19. Na linha do que escrevem os constitucionalistas acima referidos, na falta de uma cláusula de restrição dos direitos em causa, seria importante que estes fossem harmonizados e "sujeitos a operações metódicas de balanceamento ou de ponderação" com os outros bens e direitos potencialmente conflituantes, e que o sucedido fosse prontamente esclarecido aos visados e à opinião pública, sem subterfúgios formais, para que a decisão de impedimento não fosse vista como um acto excessivo perante as circunstâncias do caso concreto, e por isso mesmo infundado, perfeitamente arbitrário e abusivo.
20. Se considerarmos, na linha de J. C. Vieira de Andrade, que a liberdade de imprensa – e o direito à informação como um dos seus corolários – faz parte do núcleo de direitos subjectivos fundamentais garantidos pela LB, então as coisas não podem passar-se como se passaram. Muito menos voltarem a repetir-se no futuro, ademais sendo os visados residentes de uma RAE vizinha, que constitui parte integrante da RPC, também subordinados ao rule of law e beneficiando das garantias do segundo sistema, incluindo de liberdade de imprensa e de acesso às fontes.
21. Mais do que um direito, a liberdade de imprensa é "um complexo ou constelação de direitos e liberdades" (G. Canotilho, V. Moreira), um "direito de defesa perante os poderes públicos" e uma "garantia constitucional da livre formação da opinião pública".
22. Não basta apontar meras razões de confidencialidade, que se desconhecem e não são minimamente fundamentadas, como é ainda insuficiente, e talvez mais grave, afirmar que outras classes profissionais e outras pessoas estão em mira sem que se saiba porquê. Que fizeram estes cidadão de tão grave de tão grave, que razões são essas, ainda por cima quando se sabe que na RAEM "não se aplicam o sistema e as políticas socialistas" (art.º 5.º da LB), que de acordo com o art.º 31.º "da Constituição da República Popular da China (...) os sistemas de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos seus residentes (...)" (art.º 31.º) baseiam-se única e exclusivamente na LB e estes são extensivos às "pessoas que não sejam residentes de Macau", mas que encontrando-se na RAEM "gozam, em conformidade com a lei, dos direitos e liberdades dos residentes"(cfr. art.º 43.º)?
23. Admito que haja um excesso de voluntarismo por parte das autoridades públicas, em especial em razão de nem todos terem tido a mesma formação e o ambiente em que foram educados não se reger pelos mesmos padrões de liberdade e dúvida. Mas havendo boas intenções, e eu admito que as há tendo em vista o bem da RAEM e o progresso da RPC, o excesso de voluntarismo pode ser refreado, os erros corrigidos, como manda a boa ética confuciana, e as instituições, as leis e os procedimentos melhorados.
24. O que não é admissível é que no "segundo sistema" haja algumas entidades que se comportem como se estivessem no quadro do "primeiro sistema", ignorando as diferenças entre um e do outro, deixando ficar mal na fotografia e na imagem que se transmite para o exterior a RAEM e as suas instituições, pensando que o simples "quero, posso e mando" é suficiente para ignorar exigências de transparência e de escrutínio legítimo dos actos discricionários do poder.
25. O respeito pelo exercício da liberdade de imprensa, o legítimo direito de acesso às fontes e a garantia do direito à informação, nas suas diversas vertentes, não se faz com a convocação de conferências de imprensa onde nada de substancial se esclarece, com decisões obscuras ou pedidos de desculpa, para logo depois se seguir em frente, espezinhando-se direitos fundamentais garantidos pela RPC e pela LB, os quais fazem parte do património cultural, jurídico e civilizacional da RAEM.