Voltar ao topo | Alojamento: Blogs do SAPO
Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(créditos: daqui)
A justificação dada à comunicação social pelo responsável da Assembleia de Apuramento Geral das eleições legislativas para impedir a verificação pública dos votos nulos realtivos às eleições do passado domingo, 14 de Setembro, é no mínimo incompreensível.
A Comissão Eleitoral até podia impedir essa verificação, mudando a prática seguida nos anos anteriores, visto que nada na lei obriga a que os votos nulos sejam mostrados à comunicação social. Estes devem ser verificados nos termos do art.º 119.º da Lei n.º 3/2001(Regime Eleitoral da Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 8/2024, integralmente republicada por Despacho do Chefe do Executivo n.º 94/2024, em 03/06/2024. E nada mais.
Quer isto dizer que após terminadas as operações de escrutínio, os "candidatos, os mandatários de candidatura ou os delegados têm o direito de examinar, em seguida, os lotes dos boletins de voto separados, sem alterar a sua composição, e de suscitar dúvidas ou deduzir reclamações quanto à contagem ou quanto à qualificação dada ao voto de qualquer boletim, que devem fazer perante o presidente e, neste último caso, se não forem atendidas, os reclamantes têm o direito de, juntamente com o presidente, rubricar no verso do boletim de voto em causa".
Embora sem obrigação de amostragem dos votos nulos à comunicação social, é certo que numa sociedade aberta essa até me parece uma prática salutar para que não restem dúvidas sobre a sua qualificação e uma maior transparência do processo eleitoral.
Que se impedisse que esses votos fossem fotografados, em especial para se evitar a divulgação daqueles que contivessem insultos ou palavrões, também não me pareceria mal, ainda que se fosse contra uma "tradição" de anteriores apuramentos eleitorais. Desde que houvesse fundamento legal, obviamente.
Mas a proibição pura e simples cai sempre muito mal. Em especial quando a justificação apresentada não tem suporte jurídico e a invocação do dever de sigilo me parece descabida.
Sigilo de quê, perguntar-se-á, se ninguém sabe quais foram os eleitores que anularam os seus votos? Ao contrário do que se disse, a votação não deixou de cumprir o dever de sigilo. Além do mais, o dever de sigilo aqui não está em causa porque já estamos no âmbito de uma operação de contagem e qualificação dos votos. Os votos não têm nome, número de telefone, morada, número do BIR, fotografia, assinatura. O que é que se quer proteger? Ou retirar ao escrutínio público? Não faz sentido invocar o sigilo.
Não se esqueça, por outro lado, que o dever de sigilo não só não é absoluto como se desdobra em duas dimensões: (i) primeira, ninguém é obrigado a revelar o seu voto, antes ou depois; (ii) segundo, nada na lei impede um eleitor de revelar em quem votou mesmo no próprio dia das eleições, desde que esteja a mais de 100 metros do edifício onde esteja localizada a assembleia de voto. É o que resulta em termos inequívocos no art.º 100.º da referida lei.
Parece-me, pois, que o princípio continua a ser o oposto, o da transparência. Ou deveria ser, que é aquele, estou certo, que a maioria dos residentes defende.
O problema está em que todo este processo, penso eu, está ainda condicionado por algumas mentalidades que, apesar de toda a sua abertura, voluntarismo e adequação ao segundo sistema, admitamos, foram formatadas numa cultura de opacidade, temor, subserviência a quem quer que mande e dite as ordens, com manifesta falta de flexibilidade na hora de encarar e resolver problemas quando estes se colocam.
O resultado acaba por ser transportado para decisões, com as quais não foram anteriormente confrontadas, que apenas se apoiam em argumentos de autoridade, sendo por isso reveladoras de insegurança e que, não raro, radicam no domínio do arbítrio. E quando são pedidas explicações muitas vezes refugiam-se no silêncio.
É sempre a aposta no grande salto em frente, com ou sem suporte legal. Se não houver norma atira-se qualquer coisa, invoca-se um princípio qualquer. Os residentes engolem tudo, pensam. E não há mais perguntas.
Seria interessante saber por que razão os votos julgados inicialmente nulos foram depois repescados para que se pudesse perceber qual o critério que esteve na base dessa decisão. Se houve critério, e acreditamos que sim.
Sem isso estar-se-á a abrir a porta, uma vez mais, a que amanhã, não a uma dezena e meia mas a milhares, votos nulos possam vir a ser considerados válidos por alta recriação do mandante e assentimento servil dos candidatos, mandatários e delegados das listas que assistem.
Note-se, ainda, que em 30 de Julho pp., na sequência da conferência de imprensa do dia anterior, os jornais referiam que a CAEAL dizia que não via qualquer sinal de uma elevada taxa de abstenção nas eleições que se aproximavam (vd. Macau Daily Times – CAEAL sees no signs of lower voter turnout for Sept. 14 election, p. 4 – e Ponto Final – CAEAL recebeu 18 queixas de propaganda eleitoral, p. 3). O resultado foi o que se viu.
Seria interessante, por isso mesmo, tanto mais que "há muitos factores", que ainda não foram esclarecidos, depois de todo o excelente trabalho realizado, da alteração das leis eleitorais, da exclusão de candidatos e de listas, para se garantir que Macau seria governada por patriotas e se reforçar o princípio "um país, dois sistemas", alguém responsável desse a cara e viesse justificar a terceira taxa de participação mais baixa de sempre (mesmo com a eliminação de 4500 eleitores dos cadernos eleitorais), assim como o elevadíssimo número de votos brancos e nulos.
Desta vez não havia pandemia, não havia mosquitos, os transportes eram à borla, houve imensa informação, criminalizou-se o apelo à abstenção e ao voto nulo e em branco, instaram-se as concessionárias e empresas a facilitarem a saída dos seus trabalhadores para votarem, apelou-se aos funcionários públicos, em suma, houve uma campanha como nunca antes se viu.
E no fim, num ambiente "justo, imparcial e íntegro", disso ninguém duvide, com um ambiente eleitoral melhorado e a participação incentivada, com mais oitenta câmaras de voto, quem ganhou o sufrágio directo foi a Nova Esperança e o José Pereira Coutinho. Não sei se era isto que esperavam, mas ao vencedor são devidos parabéns. E aos vencidos está reservada a glória.
Recorde-se que com a revisão da lei eleitoral se pretendia, de acordo com os termos da consulta pública, entre outros objectivos e melhorias, o "aperfeiçoamento do mecanismo de apreciação da qualificação dos candidatos a deputados da Assembleia Legislativa" e o "combate ao incitamento público ao acto de não votar, votar em branco ou nulo".
Perante este cenário, e com os resultados alcançados, é de perguntar o que falhou na participação? O que falhou na revisão das leis eleitorais? Por que razão aumentaram tantos os votos nulos e brancos? Não havia alternativas suficientes? A população não confiou nos candidatos aprovados e apresentados a concurso? Falhou o mecanismo de apreciação dos candidatos? Os qualificados não eram suficientemente bons? Os esclarecimentos da CAEAL aos eleitores foram insuficientes? Quais serão os próximos passos para melhorar a participação e reduzir os votos nulos e brancos? Prevêem-se novas alterações legislativas? Vão tornar o voto obrigatório? Vamos ter em futuras eleições um sistema de lista única sem possibilidade de uso de qualquer carimbo, caneta ou de recurso ao voto em branco, como se fez na Associação dos Advogados de Macau? E isso será "democrático"?
Durante os últimos meses não me pronunciei sobre estas questões. Aguardei para ver. É este o momento para voltar a pensar em voz alta. Sem tibiezas. Com a lealdade de sempre para com quem governa e os residentes. Com frontalidade. Sem enterrar a cabeça na areia, não fazendo de conta que nada aconteceu, sem folclore, porque aquela também não é a forma de se melhorar o que quer que seja na RAEM.
Dito isto, como residente, estudioso destas questões e cidadão interessado, gostaria de conhecer as explicações oficiais dos talentos que engendraram estas soluções. E ver quais as respostas para os problemas equacionados.
Para que todos possamos, em conjunto, continuar a aprofundar o princípio "um país, dois sistemas", com toda a transparência, até ao final do período de transição previsto na Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre o Futuro de Macau, assinada em 13 Abril de 1987, e depositada pela República Popular da China junto das Nações Unidas. Estamos todos no mesmo barco.