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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
O desaparecimento, ausência, rapto, fuga não esclarecida, chame-se-lhe o que se quiser, de Lee Bo dura há quase duas semanas e continua a fazer manchetes. Famoso por editar e vender livros críticos para com o regime chinês, o facto é que decorrido todo este tempo continuam a faltar as explicações para o que aconteceu. O livreiro e editor Lee Bo não morria de amores pela "democracia" vigente do outro lado, sendo conhecidas desde há muito as suas posições críticas para com o governo chinês e as políticas de Pequim em matéria de liberdades e direitos humanos. Dizer que foi raptado parece à partida uma explicação demasiado simplista. Numa entrevista relativamente recente o visado dera a entender que não se preocupava com o que lhe pudesse suceder porque em Hong Kong (HK) se sentia confortável e não fazia tenções de viajar para o lado de lá da fronteira que separa HK de Shenzhen. O mistério parece insolúvel, não havendo quem do lado da RPC preste os esclarecimentos necessários sobre o que possa ter sucedido.
As declarações prestadas pelas autoridades de HK, para além de não fugirem à subserviência habitual, deixam no ar a ideia de que nem tudo o que pode ser feito para desvendar o imbróglio está a ser conduzido. Escasseiam as informações e a confusão tornou-se maior quando a mulher do ausente, depois de ter participado o desaparecimento do marido às autoridades, foi ela própria desistir da participação apresentada alegando que um amigo do marido recebera um fax e lhe telefonara a esclarecer que estava tudo bem. A explicação soou a falso e evidentemente que qualquer outra pessoa colocada na situação da mulher de Lee não ficaria satisfeita com o telefonema recebido. Lee Bo também não era polícia nem investigador criminal não se percebendo a que propósito iria prestar apoio às autoridades chinesas numa investigação sobre a qual a RPC nada diz.
Em Taiwan, a Central News Agency publicou a carta que se supõe ter sido manuscrita por Lee e enviada por fax para a Causeway Bay Books, onde o livreiro pede aos trabalhadores que continuem a laborar normalmente. Mais estranho é que tivesse telefonado para a mulher e lhe tivesse falado em mandarim quando na antiga colónia britânica a comunicação se faz normalmente em cantonense e fosse neste dialecto que normalmente se entendesse com ela. Por agora há apenas uma certeza: Lee não saiu de HK pelos postos fronteiriços oficiais.
Este dado não tem passado despercebido e quaisquer que sejam as razões para o que está a acontecer mereceu ontem, finalmente, uma tomada de posição mais firme durante a cerimónia de abertura do ano judicial de HK por parte de Rimsky Yuen Kwok-keung, o Secretário para a Justiça, quando afirmou que não seriam toleradas investigações não autorizadas nem prisões ilegais, e que as preocupações da sociedade são totalmente compreensíveis e devem ser tratadas adequadamente.
Também o principal magistrado, o Chief Justice Geoffrey Ma Tao-li, recordou a protecção constitucional de que gozam os direitos e as liberdades dos cidadãos de HK através da sua mini-constituicão. No domingo, 3500 pessoas marcharam pelas ruas da ilha em protesto contra o desaparecimento de Lee e dos outros associados exigindo a sua "libertação", a despeito de um vídeo que aparentemente foi enviado por aquele à sua mulher pedindo às pessoas que mantivessem a calma e não se manifestassem.
Quaisquer que sejam as razões para o que se está a passar, os dias passam sem que o mistério se desvende e a população seja tranquilizada, numa altura em que se aproxima rapidamente 16 de Janeiro, data em que terão lugar as eleições em Taiwan para escolha do Presidente, do vice-Presidente e de 113 deputados. Como estas coisas andam todas interligadas, esta manhã, o editorial do influente South China Morning Post voltava a colocar o dedo na ferida e de forma contundente afirmava que as autoridades dos dois lados da fronteira "não fazem nada para manter a confiança no princípio "um país, dois sistemas" que é o fundamento da governação de Hong Kong", logo acrescentando que "o público precisa de respostas e garantias de autoridades credíveis", pois que continua a aguardar por "explicações convincentes" para o desaparecimento de Lee e dos outros, um após outro, desde há um ano.
Contrastando com a atenção e preocupação da população de HK sobre o desaparecimento de Lee Bo, mas dando mostras do seu apreço pela herança portuguesa nessa matéria, em Macau, a cultura cívica dos seus cidadãos continua a manifestar a habitual indiferença e alheamento sobre a sorte dos vizinhos. Porventura por isso é que também nenhum corajoso condecorado com a Torre e Espada tenha até agora dito qualquer coisa sobre o silêncio de Pequim e o que se está a passar. Compreende-se que depois da prontidão manifestada para condenar os milhares de cidadãos de HK que saíram à rua com o movimento "Occupy Central", que clamavam por democracia, nesta altura, para alguns, os euros ou os dólares acabem por falar mais alto. Livros, editores, combate político, democracia e direitos humanos nunca foram coisas que dessem dinheiro. A não ser para esses mesmos alguns.