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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(créditos: Getty Images/Lonely Planet)
Certamente que não passaram despercebidos, até porque mereceram a devida atenção da comunicação social, e ainda merecem, tanto a decisão do Tribunal de Segunda Instância, quanto ao chamado caso das Obras Públicas, como o julgamento, ainda em curso, de um procurador-adjunto do Ministério Público.
Não me vou aqui pronunciar sobre nenhum dos casos, até porque o primeiro ainda não transitou em julgado e o segundo vai fazendo o seu caminho. Deixemos, pois, que prossigam sem sobressaltos enquanto não chega o trânsito em julgado de um e se espera que seja proferida decisão no outro.
Quero, porém, desde já sublinhar a disparidade de julgamentos e da forma de condução das audiências na primeira e na segunda instância. Em qualquer um dos casos há lições a tirar por quem selecciona, forma, fiscaliza e gere os senhores juízes. E também pela opinião pública que de fora assiste.
Se é verdade, e eu não duvido, que os tribunais superiores existem para rever, confirmar e corrigir as decisões dos tribunais inferiores, parece-me pouco razoável que haja uma divergência tão grande na apreciação dos factos e na aplicação do direito entre a primeira e a segunda instância. Em especial se os crimes mais graves pelos quais os arguidos foram acusados e condenados acabam por cair na segunda instância como caem as folhas das árvores no Outono, não havendo quem evite a sua acumulação no chão antes de serem varridas e restituídas ao lugar de onde saíram.
E se a queda desses crimes for acompanhada, em relação aos factos que o tribunal de recurso deu como provados, de uma redução substancial das penas aplicadas na primeira instância, já que é disso que se trata quando se reduzem penas a metade, um terço ou um quarto, quando não na totalidade, porque se entendeu que nem sequer houve crime, isso significa que há qualquer coisa que está mal.
Depois, em relação ao julgamento em curso no TSI, também é curioso verificar a diferença de comportamentos e atitudes por parte de quem ali julga face ao que tem acontecido nos julgamentos realizados no TJB em matéria criminal.
Em relação ao julgamento que está a decorrer em primeira instância no TSI não se ouviram, até agora, de que eu tenha conhecimento ou que chegassem aos jornais, queixas de teor idêntico ou similar ao que se disse em relação ao julgamento das Obras Públicas e noutros anteriormente realizados também no TJB em primeira instância.
Fosse em relação ao número de advogados presentes e susceptibilidade de intervenção, fosse quanto à latitude de que gozam algumas testemunhas nos depoimentos que prestam.
E se num lado os advogados se queixavam, tendo havido mesmo quem lamentasse ter sido ameaçado de ficar sem a palavra ou de ser corrido, no outro lado parecem desempenhar o seu papel sem constrangimentos e dentro das regras que decorrem da lei. Ninguém deixa de fazer o que tem a fazer, ninguém se sente enxofrado, diminuído ou ofendido.
Fico satisfeito por saber que a realidade não pode ser vista a preto e branco, embora não veja qualquer vantagem quando em causa está a realização e a aplicação da Justiça. E, bem ao invés, vejo muito dano quando há diferenças tão gritantes entre as duas instâncias, não obstante a sua proximidade e ser a mesma a cor das becas.
Admito que há situações onde alguém veja azul escuro, e outros vislumbrem, e garantam ser, verde escuro. Há sempre gente teimosa, daltónica ou simplesmente obtusa. Mas é para mim de todo impensável que haja quem, de boa-fé, na apreciação dos factos e na aplicação da lei tome o vermelho vivo por branco imaculado ou bege.
É que quando isso acontece num sistema de justiça é difícil perceber que sistema é esse, e onde começa e acaba o princípio "um país, dois sistemas".
Sem um sistema de justiça fiável e confiável não há atracção para recrutar candidatos ao Prémio Nobel para irem morar para Hengqin, investimento produtivo em dólares ou euros, ou qualquer estímulo à diversificação económica.
E com um sistema de justiça que é, por natureza e atavismo, moroso, burocratizado e caro, e que além do mais seja injusto e incapaz de incutir segurança e respeito, dentro e fora de casa, por muito patriótico que seja, só os jogadores estão dispostos a correr riscos.
E destes, estou certo, não será o Templo do Céu.
Vi e ouvi a entrevista dada por Rui Rio a Clara de Sousa no Jornal da Noite da SIC.
Devo dizer que nunca tive particular simpatia pelo estilo do personagem, em especial, porque o seu discurso e a sua postura casaram sempre muito mal com algumas das escolhas que patrocinou e promoveu enquanto presidente do PSD, revelando uma tremenda falta de coerência que rapidamente o desacreditou e contribuiu para degradar ainda mais o lodaçal da política nacional.
Mas importa agora também dizer que Rui Rio tem razão quando se queixa do modo de actuação da PJ e do MP, quando se queixa deste modelo de investigação-espectáculo em que os nossos órgãos de política e investigação criminal se especializaram de há uns anos a esta parte com o patrocínio de uma certa comunicação social que adora, e só está bem, exactamente a chafurdar nesse mesmo lodaçal e num jornalismo feito de casos, de intrigalhada e de meias-verdades que se alimenta da ignorância, da boçalidade e da mediocridade instaladas.
E também tem razão quando refere que foi cometido um crime de violação do segredo de justiça, mais um, digo eu, dos muitos que têm sido cometidos sem que se acabe de vez com um segredo de justiça que só serve esse mesmo jornalismo e um justicialismo de labregos promovidos que tanto tem contribuído para ajudar a acelerar a degradação da democracia, contribuindo para o achincalhamento da actividade política e das instituições políticas e judiciais.
Assistindo-lhe igualmente razão quando pergunta porquê que esta operação só afecta o PSD e porquê que só abrange o período em que ele foi dirigente entre 2018 e 2021.
E Rio volta, ainda, a ter razão quando diz que "isto não é um país que se apresente", embora todos os portugueses saibam que já não é país que se apresente em relação ao que estamos a falar, e também em relação às práticas dos partidos, à selecção das elites políticas, à ética política e de governo há muitas décadas.
Dito isto, vamos então olhar para a indignação de Rui Rio quanto aos argumentos que apresenta quanto ao que está em causa no processo que conduziu às buscas. E em relação a esta, Rui Rio espalhou-se ao comprido.
Não é aceitável para ninguém de bom senso e com um mínimo de preocupação com o abandalhamento da vida política a que temos assistido, com a chegada de tanto (sim, são muitos, demasiados) corrupto aos partidos, às bancadas do parlamento, às autarquias, aos governos, ouvir Rui Rio dizer sobre o que está verdadeiramente em causa – desvio de dinheiros públicos para financiar à revelia do estipulado na lei os partidos políticos – que tudo isto é "ridículo" porque "isto de que estamos a falar é uma prática transversal aos partidos desde sempre" e que "nos anos 80 já era assim".
E aqui Rio esteve muito mal, revelando bem a essência dos políticos que têm dirigido Portugal nos últimos, pelo menos, 40 anos. Porque não só não serve de argumento o facto de ser uma prática transversal, como é deveras grave, a serem verdadeiras as suspeitas que se use dinheiro do Estado, como refere o Expresso, para pagar a pelo menos 11 funcionários do partido, "sendo que um deles até já se tinha reformado"!
Porque se era assim, não devia ser.
E é nisto, nestas pequenas-grandes coisas, que se revela a bandalheira em que se tornou a vida política nacional, transformada no lodaçal de que há pouco falava.
Porque sendo Rio um homem sério, e eu não duvido que o seja, como muitos mais que estiveram à frente dos partidos também o serão, não se compreende que tendo tido a possibilidade de corrigir práticas de discutível legalidade, para não dizer manifestamente ilegais e inaceitáveis em qualquer Estado de direito, numa república que se preze e numa democracia que funcione com decência, que não tomasse a iniciativa de colocar um travão nessa bandalheira, nessa promiscuidade de funções e de dinheiros em que se perdem os partidos. Então lá porque é prática os outros roubarem ou serem corruptos também temos de ser como eles? E temos de ficar calados, aproveitando uma situação ilegal para também enriquecermos ou pouparmos uns cobres?
Infelizmente, a condescendência e a tolerância com as más práticas consistentes (e não apenas na política), o silêncio, a falta de iniciativa sobre estas matérias, no sentido de aumentar verdadeiramente a transparência e evitar que esta se transforme num mero cumprimento de formalidades sem sentido para fazer de conta que é tudo sério, a falta de vontade para trazer mais seriedade à actividade política, de dignificá-la naquilo que verdadeiramente importa, tem constituído comportamento aceite e transversal a todos os partidos.
Não é por isso de estranhar que alguns peçam descaradamente dinheiro no exercício de funções políticas, que sendo membros dos governos da República arranjem todas as moscambilhas e mais algumas para ganharem dinheiro por debaixo da mesa, outros para despacharem ou atrasarem processos, trocarem favores, tornarem-se dirigentes desportivos, empreiteiros de sucesso, empresários ou ex-régulos de diferentes tabancas que são condecorados em Belém e apresentados como exemplos nacionais até que se perceba que andaram a vida toda a roubar o Estado, as empresas e os portugueses, ou que deixaram que se roubasse e nada fizeram porque isso era normal, porque sempre foi assim.
Se as leis estão mal, a começar pelas do segredo de justiça e do financiamento partidário, mudem-nas; se tudo o que existe é hipócrita e sem sentido tenham a coragem de dizê-lo. Tomem a iniciativa, façam quando têm possibilidade de fazer. Sejam coerentes, e deixem de se comportar como pantomineiros fala-baratos que depois se queixam como virgens ofendidas do que viram fazer e deixar que se fizesse quando o lodaçal lhes entra pela casa adentro.
P.S. Alguém sabe se João Gomes Cravinho ainda é ministro? Há coisas que não são do foro da justiça, são do foro da ética e da decência, caso o primeiro-ministro ande distraído com a nova época da bola.
À medida que avança o julgamento do caso de corrupção que sentou no banco dos réus dois ex-directores dos Serviços dos Solos, Obras Públicas e Transportes, nota-se o incómodo das instituições e dos seus titulares. Dir-se-ia mesmo que nesta terra quando as coisas não encaixam no guião se torna mais difícil acomodar os factos à realidade que se quer ver vingar.
Se já em Dezembro passado o Chefe do Executivo não autorizou a prestação de depoimentos por parte do seu antecessor e do Secretário para as Obras Públicas, o que não deixa de ser lamentável quando em causa está apurar a verdade dos factos e perceber quem está a mentir e até onde vai o manto diáfano da alta corrupção, agora foi a Assembleia Legislativa a obstaculizar ao depoimento do deputado Vong Hin Fai, a que se seguirá previsivelmente igual decisão quanto aos deputados Chui Sai Cheong e Chui Sai Peng.
Não deixa de ser curioso que haja tanta gente da mesma família a ser referida por vários intervenientes num único processo, de arguidos a testemunhas, e não haja um esforço mínimo de se apurar a razão ou sem razão da invocação, tantas vezes, desses nomes – que não são pessoas quaisquer –, preferindo-se deixar tudo na opacidade.
Seria, aliás, necessário esclarecer, posto que isso foi também referido na sessão de ontem do julgamento, que história é essa das listas VIP para aquisição de fracções autónomas com 40% de desconto que eram aprovadas pelo arguido Ng lap Seng.
Recorde-se que este arguido, anteriormente ligado a diversos projectos imobiliários de grande envergadura, parceiro de negócios de alguns outros "tubarões" de Macau, financiador da Fundação Mário Soares, esteve preso durante largo tempo nos Estados Unidos da América exactamente por razões que se prendem com práticas corruptivas.
Saber até onde chegam as suas ramificações, até onde vão os tentáculos do polvo e dos seus parceiros de negócios, quais as razões para a existência dessa lista VIP, quem lá estava e porquê, é assunto de manifesto interesse público.
Qualquer residente de Macau gostaria de ter adquirido, de forma limpa, um apartamento, ou vários, no edifício Windsor Arch com um desconto de 40% e isenção do pagamento de condomínios.
O escandaloso património imobiliário que algumas pessoas "amassaram" em Macau nas últimas décadas devia merecer outra atenção de quem tem por obrigação combater a corrupção, defender a legalidade, o bom nome das instituições e fazer justiça. Já bastou o que se passou no tempo da administração portuguesa com alguns "servidores" públicos.
O que se está a passar agora ultrapassa todos os limites, e é muito mau para quem vê o seu nome referido nos julgamentos em curso e não tem oportunidade de se defender. Mas é também mau para os arguidos e para as testemunhas, perante os quais parece que alguns partem do pressuposto de que nunca falam verdade; como ainda é mau para a justiça que se quer fazer e que se pretende que seja acima de tudo independente, transparente, imparcial e justa, mas é particularmente mau para a dignidade das instituições e o bom nome da RAEM, dos seus dirigentes e da República Popular da China que é quem tem, em última análise, a maior responsabilidade sobre os escândalos de Macau que envolvem dirigentes políticos e altos funcionários da Administração.
Não se percebem quais os receios do Chefe do Executivo e da Assembleia Legislativa para se impedirem os depoimentos dos visados.
Isto está tudo a cheirar demasiado mal há muito tempo e não é só por causa da ausência de uma política ambiental séria e da falta de tratamento adequado dos resíduos líquidos e sólidos.
De um charco saem todos enlameados. Os limpos, os sujos e as instituições.
(foto daqui, do Macau Daily Times)
Numa terra onde os arguidos em processos criminais normalmente escusam-se a falar e a esclarecer, preferindo a opção pelo direito ao silêncio, registam-se as declarações prestadas em juízo pelo anterior director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes.
Que tenha rejeitado as imputações de culpabilidade que lhe foram feitas pelo Ministério Público, e se tenha declarado inocente da prática dos crimes por que vem acusado, não é nada que se estranhe.
Importante é, todavia, o facto de se ter declarado inocente apontando responsabilidades, quanto às decisões tomadas e a todos os atropelos verificados no projecto de Alto de Coloane, a Chui Sai On e ao actual Secretário para as Obras Públicas, acusando o primeiro de ter dado as ordens para o reinício das obras e "coordenado pessoalmente" o processo, com instruções específicas para que andasse depressa, logo no primeiro dia no cargo.
É público que a escolha do ex-director das Obras Públicas foi uma opção pessoal de Raimundo do Rosário, secundada pelo anterior Chefe do Executivo. Na altura em que essa decisão foi tomada, o próprio Chui Sai On justificou a escolha dizendo que Li Canfeng foi escolhido depois de avaliadas "a sua disciplina, as suas habilitações e a sua experiência", critérios que foram tidos em consideração. Chui Sai On ainda acrescentou que Li Canfeng foi nomeado pelo secretário em consideração a tais critérios, e que embora tivesse sido testemunha no processo de corrupção que envolveu o ex-secretário Ao Man Long "nunca foi arguido". Saiu, pois, em sua defesa.
Recorde-se que no processo de Ao Man Long, a então testemunha evidenciara preocupantes sinais de falta de memória. Agora vê-se que recuperou. Eu congratulo-me com isso. Ainda bem que assim foi. Urge tirar partido desse facto antes que o arguido volte a ter falhas de memória, apurando-se com urgência todas as responsabilidades.
A prudência, e tudo o que aconteceu naquele processo que ditou a prisão do antigo secretário, aconselharia a que quem directa ou indirectamente tivesse estado envolvido naquela pouca vergonha nunca mais pusesse os pés na Administração Pública e no Governo da RAEM, ou que para este trabalhasse, fosse como dirigente, a apresentar projectos ou a fiscalizar obras. Mas não foi isso que se viu. Fizeram-se ouvidos moucos a todas as suspeições e críticas.
Para quem está de fora, olhando para os factos conhecidos, os "artistas" – alguns que antes eram amigos dos arguidos e disso se ufanavam continuam inexplicavelmente na sombra – e as noticias publicadas ao longo dos anos, verifica-se que corresponde tudo ao mesmo padrão de actuação, aos mesmos esquemas, que acabavam sempre com o enriquecimento de uns quantos figurantes, respectivas famílias e amigos. Sempre os mesmos.
Seria por isso importante que perante a gravidade das acusações feitas – até porque poderá haver gente de boa fé envolvida na lama contra a sua vontade, por temer represálias, e que tem o direito de ver o seu bom nome protegido, seja o secretário ou o contínuo, o caso Sun City ainda não acabou e os negócios desta empresa cruzaram-se múltiplas vezes com a acção governativa e diversos departamentos, evidenciando-se ao longo dos anos ligações múltiplas e extensas ao poder político –, se investigasse tudo até ao fundo.
Isso também poderá ajudar a avivar a memória de mais algumas pessoas, evitando-se que pelo meio haja quem procure atalhar a que se saiba o que não é conveniente, para alguns, para assim se impedir que a verdade a que todos os residentes têm direito não seja integralmente conhecida.
O Ministério Público tem a obrigação de investigar tudo, a começar pelas denúncias feitas em juízo, mandando extrair certidões e iniciando novos processos, mesmo que isso envolva anteriores administrações ou gente ainda em funções, apurando-se eventuais pressões ilegais ou enriquecimentos injustificados dos próprios, das respectivas famílias e dos seus amigos e parceiros de negócios.
O combate à corrupção tem de ser integral e não pode proteger ninguém. Muito menos quem no passado tiver praticado actos com contornos criminais que provocaram, a diversos níveis, o empobrecimento da RAEM.
Macau e as suas gentes já foram demasiadamente prejudicadas. É urgente esclarecer.
Que a língua portuguesa e o seu uso têm sofrido tratos de polé nos tribunais e em diversas entidades que compõem a Administração Pública da RAEM é um facto. Os exemplos sucedem-se diariamente e não é por haver quem diga que há cada vez mais gente a aprender português que esta língua vê protegido o seu estatuto.
Apesar disso, há ainda quem consiga chamar à razão um ou outro decisor.
O mal, como bem se sabe, normalmente não está no cumprimento da regra. Desde que a regra seja igual para todos. O problema reside antes na falta de uniformidade na sua aplicação, quando não na ausência total de critério.
É indiscutível que, teoricamente, no papel, existem na RAEM duas línguas oficiais. Na prática só existe uma: a língua chinesa. Não está por isso em causa que o aplicador escolha aquela que melhor domina. A compreensão do destinatário é que poderá ficar em palpos-de-aranha quando seja confrontado com uma decisão que lhe diga respeito num idioma que não domina e ao qual deve obedecer ou dar resposta. E se esse destinatário tem uma missão que lhe foi atribuída por lei e é socialmente reconhecida como relevante, o mínimo a esperar seria que lhe fosse facilitada a vida para que terceiros, o visado e a própria justiça, não saíssem prejudicados.
Ainda há dias, em 13 de Maio pp., ficámos a saber que um advogado viu rejeitado um seu pedido de extensão do prazo de recurso, que havia formulado em razão de lhe haver sido notificada uma decisão judicial com noventa e nove (99) páginas em língua chinesa, num processo cuja audiência decorreu toda em português, e quando assim não foi houve tradução simultânea, e em que todos os articulados foram apresentados em português, com o despacho saneador redigido em língua portuguesa, língua em que também decorreram as conversas entre os magistrados e os advogados, até porque todos são fluentes em português e os advogados das três partes só nesta língua se expressam. O normal seria que a sentença fosse proferida em português. Não foi assim, ponto final. Adiante.
Duas semanas volvidas, um outro advogado, num outro processo, conseguiu uma extensão de dez dias no prazo para apresentação das respectivas alegações de recurso. Porquê? O tribunal entendeu dever ser aqui sensível ao argumento de que a sentença, cujo número de páginas desconheço, foi proferida apenas em chinês e o advogado do arguido teria direito a esse prazo extra para aceder à tradução e manifestar a sua posição, bem cumprindo o seu papel.
A lei é à partida igual para todos. Também devia ser igual à chegada. Tal como as partes deveriam ter ao seu alcance as mesmas armas.
E está correcto que quem receba uma decisão judicial numa língua que não domina, seja em chinês, português ou nuns hieróglifos rabiscados aparentados com o servo-croata, tenha direito a uma prorrogação de prazo para que – já que se o tribunal não o faz espontaneamente, como seria sua obrigação e a secretaria também faculta para juízes que só se exprimem em português quando recebem articulados e requerimentos em chinês que devem ser por eles despachados – lhe seja facultada uma tradução na sua língua de trabalho, que é aquela que também domina e a única que usa quando se corresponde com os tribunais.
Porém, na prática criam-se desigualdades onde elas não poderiam existir. E que não contribuem para repor, o que seria admissível, uma situação de igualdade entre as partes onde aquela estivesse ausente. E tais desigualdades são criadas, não porque não haja lei; antes porque se quer que a lei seja interpretada, algumas vezes, num sentido, diria, menos jurídico, menos justo, quase punitivo, justiceiro. Aqui mando eu.
Quando assim se actua, em rigor, não se está a ser verdadeiramente patriótico. Longe disso. Nem se está a respeitar um qualquer critério previamente definido, ou a cumprir a Lei Básica, ou a beneficiar o princípio "um país, dois sistemas". Ou, admita-se, a cumprir um ideal – ainda que por vezes manhoso – de realização da justiça que servisse a RAEM, a China e toda a população de Macau. Nada disso.
Quando assim se age, repare-se, a língua portuguesa também não fica mais mal tratada do que está. A língua chinesa não sai em nada beneficiada. E, tirando a arbitrariedade, admitamos, ninguém ganha.
Mas quem perde sabemos nós. Perde a realização da justiça. Como perdem os tribunais e todos os seus agentes, mais o Estado de direito e os cidadãos.
Não há justiça, não pode haver, onde falta critério e a regra mais básica e mais razoável muda à vontade de quem manda.
A vontade dos homens nunca foi boa regra. A insistência no erro ou a prepotência ainda menos. Não engradece os seus práticos, não dá dignidade às vestais.
Em 2009 escrevi isto:
O Ministério Público pode ficar desconfortável com a proposta de Noronha Nascimento mas ela é séria, justa, frontal e tem de ser ponderada desde já. Aliás, há um argumento decisivo que vai muito para além da boa vontade dos magistrados do MP: é que os resultados conhecidos nos processos mais mediatizados deixam muito a desejar. E quando os resultados são maus para todas as partes, a começar para a própria Justiça, aquilo que há a fazer é mudar, corrigir, alterar. E depois é deixar as coisas estabilizarem, as investigações prosseguirem os seus rumos, evitando-se as constantes mexidas na legislação. Mas para isso acontecer seria bom que pudesse ser feito por quem sabe, por alguém que vivesse no mundo e que não tivesse de descer à terra. Poupava-se no vaivém e dava-se descanso aos deuses e aos curiosos que puseram esta gaita de pantanas."
Em 2010 também escrevi isto:
"Dizer nesta altura que tem os poderes da Rainha de Inglaterra não abona nada a seu favor. Quando muito será mais uma evidência sobre a necessidade de extinção da corporação que dirige e da sua premente substituição por uma nova que exerça de facto e de direito os poderes que a dele se mostrou incapaz de cumprir nas últimas três décadas.
Um desastre que demonstra bem o distanciamento da realidade em que vivem os seus membros."
E em 2011, na sequência de um evento onde participei, ainda escrevi isto:
Antes, isto é, nas décadas anteriores, escrevi coisas parecidas.
Passados todos estes anos, conhecida a decisão instrutória do "Processo Marquês" não preciso de acrescentar grande coisa. Nada do que está a acontecer me admira.
Se as pessoas andassem atentas e se tivessem então indignado, promovido abaixo-assinados e exigido mudanças teriam sido poupadas ao espectáculo Sócrates/Marquês/MP/Ivo Rosa.
Era natural que um dia todos os anos de incúria, deixa andar e irresponsabilidade, cavalgados pelo populismo meditático, dessem resultados. Um dia o monstro teria de aparecer.
O juiz de instrução que, por uma vez, cumpriu o seu papel é o bode expiatório da podridão que grassa no sistema de justiça. E já grassava muito antes do biltre aparecer.
Mas nessa altura os Abrunhosas desta vida andavam ocupados a cantar, a fazer negócios, a gozar a vida nas praias e esplanadas, a enriquecerem.
Agora sabem todos de Direito. E indignam-se.
Aparentemente, é um problema sem solução. Nunca se sabe de onde parte, nem quem faz o favor de trazê-lo para a praça pública, mas sabe-se sempre onde acaba, normalmente escarrapachado na primeira página dos jornais, nas televisões a abrir os telejornais, ao que parece também com uma apetência especial por essa bíblia do jornalismo "popular" que diariamente derrama sangue, suor e fluidos vários sobre os seus leitores e os dos outros em nome da liberdade de imprensa.
Desta vez as vítimas foram Miguel Macedo e os arguidos do "caso dos vistos Gold". Espanta-me que os que ainda recentemente criticaram uma decisão judicial relativamente ao "caso Sócrates", e que acusaram os tribunais de quererem colocar uma mordaça no sacrossanto direito à informação, ainda não tenham vindo aplaudir a divulgação pública das imagens e dos registos áudio dos interrogatórios ao ex-ministro da Administração Interna e a Jarmela Palos.
Como também me espanta o silêncio desse artilheiro do oportunismo e da bagunça política, sempre pronto a disparar contra tudo o que mexa sem avental ou capa laranja, que num dos seus momentos de delírio dizia que um ex-primeiro-ministro só estava preso porque o seu partido estava no Governo. Presumo que, de acordo com a respectiva lógica, as sucessivas e cada vez mais graves violações do segredo de justiça, designadamente as verificadas no "caso dos vistos Gold" também só tenham ocorrido porque esse mesmo partido esteve no poder até ao passado dia 26 de Novembro.
Reafirmo, por isso mesmo, o que escrevi em 25 de Setembro pp., não retirando uma vírgula ao que ali ficou, pois que não é por agora os arguidos serem de outra cor política que como cidadão ou advogado iria ter uma apreciação diferente do que na essência está em causa.
A forma como se vulgarizou a violação dos direitos de defesa dos arguidos, o modo como são publicamente enxovalhados por factos em segredo de justiça - o facto de agora já não estarem não retira gravidade ao que que aconteceu - e a leviandade com que isso é feito por parte de quem vai escapando impune, dia após dia, caso após caso, fazem do nosso país um caso de estudo, de vergonha e, acima de tudo, de indignidade nacional.
A ministra da Justiça, em quem o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, pela voz de António Ventinhas, já reconheceu todas as capacidades para fazer um bom lugar, tem agora uma oportunidade de dar a volta a esta situação tão aberrante quanto sinistra, retirando o segredo da justiça da sarjeta onde está. Ou, quem sabe, em alternativa, mantendo-o de vez nesse buraco imundo onde tem medrado e dando conta disso mesmo aos advogados e seus constituintes logo no início dos processos, aquando da respectiva constituição como arguidos, facultando-lhes desde logo, "às claras", as mesmas armas que a acusação, a CMTV, o Correio da Manhã, a TVI, a SIC, o Sol, a Sábado e muitos mais dispõem quando se trata de devassar os factos da investigação, muitos para lá da fronteira do interesse público por já dizerem respeito à esfera da intimidade de cada um e à reserva da sua vida privada. Factos que, não raro, são essenciais para defesa dos visados mas ainda nem sequer são destes conhecidos quando publicamente divulgados.
A única garantia que neste momento podemos ter é a de que em Portugal qualquer arguido tem o direito, quer queira quer não, de ser exposto, insultado, vilipendiado e se possível linchado pela turba em função do tratamento que for dado à violação dos factos em investigação, o que acontecerá antes de qualquer acusação, antes de ter um julgamento de acordo com as regras de um Estado de direito democrático ou de uma qualquer condenação.
"Em fevereiro de 2013, João Miguel Barros, chefe de gabinete da ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, e homem da sua confiança pessoal, bateu com a porta e avisou que o Citius e outras plataformas informáticas iriam comprometer o arranque do novo mapa judiciário.
Na altura, as verdadeiras razões da demissão permaneceram no segredo dos deuses. Hoje, o DN sabe que a saída se deveu ao alerta do chefe de gabinete de que era necessário rever urgentemente o sistema de informação dos tribunais."
No dia em que o João Miguel se demitiu fiquei apreensivo. Porque sabia o trabalho que tinha entre mãos e há muitos anos lhe conhecia o empenho naquilo em que apostava e a sua capacidade de realização. Na altura, sem querer desvendar razões, limitei-me a mandar-lhe um sms com um abraço amigo e disse-lhe que esperava que tivesse sido por boas razões. Ele confirmou-me que tinha sido pelas melhores razões e acrescentou mais duas palavras que a mim me dizem muito, mas que me abstenho de reproduzir, sem me dizer o porquê da sua decisão. Também nunca o questionei sobre isso. Não tinha esse direito. Porque a despeito das divergências políticas há coisas que devem ficar só entre pessoas que se estimam e compreendem. Aos poucos, pelos textos que publicou no Expresso, fui percebendo melhor o filme. O que o DN revela agora só veio confirmar-me o que há muitos anos penso do João Miguel. Há valores que estão acima de nós, que estão para lá da amizade e da política, e que é preciso continuar a respeitar, preservar e transmitir às futuras gerações. Para lá da circunstância de cada um de nós. A lealdade é um deles. Para com os que nos rodeiam. Em especial para com a nossa consciência.
E ainda há quem diga que a justiça não é coisa de ricos. Que são três milhões de euros para quem só num ano se esqueceu de declarar mais de oito milhões, regularizando depois a situação com cerca de metade dessa verba? Que são três milhões para quem é acusado de ter recebido catorze milhões de um construtor civil a título de oferta? Pois eu respondo: são croquetes, salgadinhos. Nada que uma boa cervejola, ao pôr-do-sol, na Quinta da Marinha, não faça esquecer.
À medida que a legislatura avança, sem o ruído que a distância me proporciona vou-me apercebendo de contornos e de sombras que antes me eram dificilmente apreensíveis. A reforma da justiça foi uma delas.
Depois da saída, para mim inesperada, do anterior chefe de gabinete da ministra, e de ter lido o artigo que aquele há uns meses publicou no Expresso, manifestando as suas preocupações, a edição desta manhã do Público traz mais alguma luz sobre o problema dos julgamentos sumários.
Um professor de Direito esclareceu, sem deixar de referir outros exemplos vindos de fora, que a única vez em que na nossa história houve julgamentos com processo sumário tão expeditos para aplicação de penas superiores a cinco anos foi no tempo ... das Ordenações Filipinas ("compilação jurídica conhecida por Código Filipino que data de 1603 e que vigorou em Portugal, com alterações, até 1852").
Em tempos houve quem quisesse queimar etapas na transição de Macau. Viu-se no que deu.
Agora, sabendo-se que o Tribunal Constitucional já por três vezes, em decisões unânimes nas quais intervieram dez dos seus treze juízes, considerou inconstitucional a norma atinente aos julgamentos sumários da senhora ministra - não são só as normas dos orçamentos que padecem de tal vício -, parece-me que anda alguém a querer apressar a história. E quando isso acontece, em regra, o final não costuma ser feliz. Nem para os protagonistas, nem para a justiça, que se quer célere e em tempo útil mas nunca apressada e inconstitucional.