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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
À medida que avança o julgamento do caso de corrupção que sentou no banco dos réus dois ex-directores dos Serviços dos Solos, Obras Públicas e Transportes, nota-se o incómodo das instituições e dos seus titulares. Dir-se-ia mesmo que nesta terra quando as coisas não encaixam no guião se torna mais difícil acomodar os factos à realidade que se quer ver vingar.
Se já em Dezembro passado o Chefe do Executivo não autorizou a prestação de depoimentos por parte do seu antecessor e do Secretário para as Obras Públicas, o que não deixa de ser lamentável quando em causa está apurar a verdade dos factos e perceber quem está a mentir e até onde vai o manto diáfano da alta corrupção, agora foi a Assembleia Legislativa a obstaculizar ao depoimento do deputado Vong Hin Fai, a que se seguirá previsivelmente igual decisão quanto aos deputados Chui Sai Cheong e Chui Sai Peng.
Não deixa de ser curioso que haja tanta gente da mesma família a ser referida por vários intervenientes num único processo, de arguidos a testemunhas, e não haja um esforço mínimo de se apurar a razão ou sem razão da invocação, tantas vezes, desses nomes – que não são pessoas quaisquer –, preferindo-se deixar tudo na opacidade.
Seria, aliás, necessário esclarecer, posto que isso foi também referido na sessão de ontem do julgamento, que história é essa das listas VIP para aquisição de fracções autónomas com 40% de desconto que eram aprovadas pelo arguido Ng lap Seng.
Recorde-se que este arguido, anteriormente ligado a diversos projectos imobiliários de grande envergadura, parceiro de negócios de alguns outros "tubarões" de Macau, financiador da Fundação Mário Soares, esteve preso durante largo tempo nos Estados Unidos da América exactamente por razões que se prendem com práticas corruptivas.
Saber até onde chegam as suas ramificações, até onde vão os tentáculos do polvo e dos seus parceiros de negócios, quais as razões para a existência dessa lista VIP, quem lá estava e porquê, é assunto de manifesto interesse público.
Qualquer residente de Macau gostaria de ter adquirido, de forma limpa, um apartamento, ou vários, no edifício Windsor Arch com um desconto de 40% e isenção do pagamento de condomínios.
O escandaloso património imobiliário que algumas pessoas "amassaram" em Macau nas últimas décadas devia merecer outra atenção de quem tem por obrigação combater a corrupção, defender a legalidade, o bom nome das instituições e fazer justiça. Já bastou o que se passou no tempo da administração portuguesa com alguns "servidores" públicos.
O que se está a passar agora ultrapassa todos os limites, e é muito mau para quem vê o seu nome referido nos julgamentos em curso e não tem oportunidade de se defender. Mas é também mau para os arguidos e para as testemunhas, perante os quais parece que alguns partem do pressuposto de que nunca falam verdade; como ainda é mau para a justiça que se quer fazer e que se pretende que seja acima de tudo independente, transparente, imparcial e justa, mas é particularmente mau para a dignidade das instituições e o bom nome da RAEM, dos seus dirigentes e da República Popular da China que é quem tem, em última análise, a maior responsabilidade sobre os escândalos de Macau que envolvem dirigentes políticos e altos funcionários da Administração.
Não se percebem quais os receios do Chefe do Executivo e da Assembleia Legislativa para se impedirem os depoimentos dos visados.
Isto está tudo a cheirar demasiado mal há muito tempo e não é só por causa da ausência de uma política ambiental séria e da falta de tratamento adequado dos resíduos líquidos e sólidos.
De um charco saem todos enlameados. Os limpos, os sujos e as instituições.
Em 17/12/2021, o Governo da RAEM apresentou uma proposta de lei atinente ao regime jurídico de segurança dos ascensores. Uma iniciativa meritória e que tardava.
Apresentada tal proposta à Assembleia Legislativa, aquela foi aprovada por unanimidade.
Da referida proposta de lei constava um artigo décimo cuja versão inicial sublinhava a necessidade das entidades encarregadas da manutenção dos ascensores possuírem adequado seguro de responsabilidade civil "válido para cobrir os danos corporais e patrimoniais sofridos por terceiros em resultado da sua actividade".
Sucede que há dias fui confrontado com a notícia de que o mesmo Governo que apresentou a proposta veio agora retirar do articulado o artigo sobre a obrigatoriedade da contratação do seguro com os argumentos de que esse tipo de seguro não existe "nas proximidades", que por isso não seria fácil resolver, e que o seu custo poderia vir a ser elevado.
Em Portugal, onde ainda hoje se escora o sistema jurídico de Macau, esse seguro existe. Não foi criado ontem. E até na Internet é fácil encontrar um modelo de contrato de seguro de responsabilidade civil para entidades conservadoras de elevadores.
O Secretário para a Segurança, por vezes, quando quer justificar o reforço do estado policial vai a correr buscar o que existe legislado na União Europeia e em Portugal, esquecendo que aí as garantias do cidadão são de outro nível. Quando convém, para se cercearem direitos, não há problema em ir buscar exemplos distantes.
Também quando a advocacia foi regulada autonomamente em Macau não existia um seguro de responsabilidade civil que cobrisse o exercício da profissão e protegesse terceiros. Mas criou-se.
É normal que em qualquer actividade que envolva risco e seja susceptível de serem causados danos a terceiros exista um seguro que os cubra. E se ele não existe compete ao Governo tomar as medidas necessárias para o que mesmo seja criado. Se não existe "nas proximidades", existirá mais longe. Vai-se buscar e adapta-se. Ou faz-se de raiz. Não se foge do problema só porque é mais fácil. Se a lógica prevalecente para a evolução das sociedades jurídicas fosse a de ignorar o que está longe, ainda hoje a China estaria no tempo dos mandarins.
Confesso que para além de não perceber qual seja a dificuldade da criação desse seguro, também não alcanço como é possível o Governo apresentar uma proposta da qual faz constar a obrigatoriedade do seguro sem que previamente tenha estudado a situação e falado com o sector segurador. Se incluiu o artigo foi por entender que fazia falta, porque era importante. Deixou de ser?
O Secretário para os Transportes e Obras Públicas quis dar uma explicação simples, para alguns ignaros, que obviamente não colheu por falta de lógica política, jurídica ou técnica. Estabelecer uma comparação do seguro que estava previsto para os ascensores com o seguro de responsabilidade civil automóvel dizendo que se o particular tiver um problema com o carro e não tiver seguro tem de ser o próprio a tratar, e que com os elevadores será o mesmo, é ignorar o princípio básico, ou seja, o de que o seguro automóvel de responsabilidade civil é obrigatório, e que quem tiver um carro e circular sem seguro está em situação ilegal.
Tudo isso é, uma vez mais, e infelizmente, revelador de amadorismo e de uma forma atabalhoada de fazer as coisas. Ou de subservientemente justificar que não se faça o que devia ser feito. Ultimamente são as leis que pagam. De outras vezes foi a TDM. Ou a higiene da cidade. E às vezes são as pessoas.
Pior do que isso, o que é verdadeiramente aflitivo é ver a facilidade com que em alguns assuntos importantes se cede aos lobbies locais e se apressa a dar o dito por não dito. Viu-se isso no recuo quanto aos chamados "casinos-satélites" na proposta de alteração da lei do jogo.
Os ascensores da inteligência e do interesse público continuam, pois, a ter sérias dificuldades de sobrevivência e convivência com o principio "um país, dois sistemas".
Depois, à falta de melhor, queixam-se da pandemia. E tudo querem justificar com respostas para tontos e apelos patrióticos. Como se o povo não visse, não ouvisse e não fosse capaz de pensar sem autorização prévia.
Parece que finalmente as autoridades de Macau resolveram empenhar-se a sério numa campanha de promoção da vacinação contra a COVID-19.
O problema é que uma vez mais chega tarde e numa altura em que o aumento de número de casos na província de Guangdong – não, os casos não vieram de países terceiros, nem foi nenhum gweilo que os trouxe na bagagem – fez aumentar os receios dos Serviços de Saúde de Macau. De qualquer modo, antes assim.
O lamentável é que só ao fim de mais de um ano é que se tenham lembrado de pedir a amostragem de códigos de saúde à entrada dos transportes públicos (como farão os velhotes que não usam telemóvel para irem ao mercado?) e que continue a não haver uma uniformização de procedimentos.
De que serve exigir-se esse mesmo código na entrada em hotéis, casinos, instituições médicas e departamentos governamentais se depois deixa de ser obrigatória a apresentação do código para quem vai a um supermercado, loja de conveniência, sauna, cinema, karaoke ou sala de exposições? Será que nestes locais o risco de transmissão do vírus é menor?
Por outro lado, é notório que a população continua a não compreender quais são as "vantagens" da vacinação, para além da óbvia protecção individual e grupal. As empresas privadas, nomeadamente bancos e concessionárias, à semelhança do que se passa em Hong Kong, oferecem dias de férias extra aos trabalhadores para os motivarem, entregam brindes, organizam sorteios que levem as pessoas a vacinar-se. Porém, em contrapartida, não existe qualquer diferenciação ou reconhecimento em relação a quem desde a primeira hora se colocou ao lado das autoridades de saúde e se disponibilizou para tomar as vacinas.
Os tempos de quarentena para quem tem ou não tem vacina são os mesmos. Os vacinados continuam a usar máscara, a mostrar o código de saúde, a enfrentar as mesmas dificuldades para se deslocarem, e ainda sujeitos a igual grau de exigência para entrarem ou saírem da RAEM como os não vacinados. Será que isto tem alguma lógica? Será que faz algum sentido? Se para se passar a fronteira é indiferente estar ou não estar vacinado, como justificar aos descrentes da vacina que convém tomá-la?
Depois, também não se percebe porque o Governo de Macau continua a não chegar a um entendimento com o Governo de Hong Kong para se ter um corredor entre a RAEM e o Aeroporto Internacional de Hong Kong, quando entre este e Shenzhen continua a haver carreiras regulares que permitem um acesso directo ao terminal sem que seja necessário passar pela cidade ou realizar qualquer quarentena.
Raia o absurdo, e é absolutamente incompreensível, de um ponto de vista científico, que uma pessoa vacinada e apresentando testes de ácido nucleico negativos no local de partida e à chegada à RAEM esteja obrigada a 21 ou 28 dias de quarentena em hotel.
O aumento das taxas de vacinação verificado nos últimos dias não ilude a gestão deficiente que se fez do programa de vacinação. De nada serviu o exemplo dado pelo Chefe do Executivo e por outros altos responsáveis de se voluntariarem desde logo para receberem a vacina. O gesto revelou-se inconsequente e veio desacompanhado dos estímulos que deviam ter sido transmitidos à população. Agora, é o andar ó tio, ó tio a ver se os residentes se vacinam porque se teme o pior.
É assim nas vacinas. Foi também assim com o que aconteceu na altura do tufão Hato. Continua a ser assim com as cheias no Porto Interior e outras zonas baixas da cidade, cujas soluções tardam para desespero da população afectada, como também é com os lixos, com o não tratamento das águas residuais e as suas descargas diárias e ao longo de muitos anos por falta de capacidade das centrais, com os maus cheiros ou a falta de limpeza de algumas zonas, com a má qualidade do ar ou com a falta de exigência e descontrolo das emissões de gases por autocarros, carros velhos e super poluentes e camiões de obras (que continuam a circular a toda a hora pelas principais avenidas do COTAI, sem que as contornem pelas vias laterais, como se aquelas fossem verdadeiros e próprios caminhos de estaleiros).
Depois da casa roubada é que se colocam as trancas à porta. Anda-se sempre a correr atrás do prejuízo. E dá-se cabo da saúde – e da paciência – dos sãos porque não se sabe cuidar destes e tratar do que está doente a tempo e horas e sem vacilar. Um drama permanente de um filme há muito visto na RAEM.
(créditos: Expediente Sínico)
O acrónimo "LRT" significa Light Rail Transit e aparece muitas vezes referido na imprensa sempre que na RAEM alguém se quer referir ao Metro Ligeiro.
O que até agora foi construído representa "uma extensão de 9,3 quilómetros, ou seja, equivale a 44,28% do inicialmente planeado para o sistema do metro ligeiro". Entre 2007 e Setembro de 2012 a sua estimativa de custo passou de quatro mil e duzentos milhões de patacas para catorze mil duzentos e setenta e três milhões (MOP$14 273 000 000,00). Foi obra.
"Em Maio de 2016, o GIT afirmou que não fez a actualização da estimativa do custo da linha de Macau, uma vez que o seu traçado ainda não tinha sido definido. Além disso, em 2016, quando foram determinadas a construção dos 11 traçados no curto, médio e longo prazo, o GIT não avançou com quaisquer informações sobre o custo do investimento de cada traçado ou, sequer, o custo do investimento global. Em Dezembro de 2017, apenas oito dos 11 traçados tinham dados concretos sobre o seu custo, por outro lado, dentre esses dados, apenas a estimativa de custos da linha da Taipa tinha sido actualizada para 10 823 milhões de patacas. Ademais, até 31 de Dezembro de 2017, o preço total das adjudicações com o sistema de metro ligeiro foi de cerca de 13 273 milhões de patacas. Além disso, houve três contratos importantes que sofreram alterações ou foram resolvidos, resultando em despesas adicionais de cerca de 1 726 milhões de patacas." (cfr. Relatório do Comissariado de Auditoria da RAEM).
As prorrogações de prazo representaram acréscimos "entre 95 a 111% do prazo inicialmente concedido". Ninharias.
No último Relatório de Auditoria chegou a escrever-se que "o dono da obra além de não impor exigências rigorosas à entidade fiscalizadora, a sua actuação demonstrou que não dá relevância às duas questões acima referidas" (gestão e prazos), acrescentando-se que "os atrasos ocorridos na consignação da obra demonstram claramente que o dono da obra dá pouca importância à pontualidade no cumprimento da sua execução" e que o Gabinete de Infra-Estruturas (GIT) "tem sido passivo e pouco sério na coordenação das obras".
A situação é de tal forma estranha que o Secretário para os Transportes e Obras Públicas disse há dias na Assembleia Legislativa que "a sua eficácia é zero", o que ademais se comprova pelo número médio de passageiros que é transportado (em regra inferior a 2000/dia) e pelos relatos que vão sendo feitos pelos escassos passageiros: "what struck me most was that I was the only passenger on the platform, along with some birds perched on power wires".
Sobre as obras do novo hospital ou da cadeia o cenário não será muito diferente.
Não obstante tudo isto, ainda há não muitos dias, o Chefe do Executivo, que se queixava dos desperdícios de Alexis Tang e que publicamente o recriminou, antes de o colocar numa prateleira dourada, em Lisboa, atribuiu uma Medalha de Honra Grande Lótus ao seu antecessor e uma Medalha de Honra Lótus de Ouro ao anterior titular da pasta das Obras Públicas e Transportes. Essas medalhas são as duas condecorações mais altas da RAEM e destinam-se a galardoar a prestação de "serviços excepcionais à RAEM, à sua imagem e bom nome" (cfr. Regulamento Administrativo 8/2001).
Confesso que ao olhar para a realidade, ao ler os relatórios produzidos pelo Comissariado de Auditoria e o CCAC que de tempos a tempos me entretenho a ler, e ao ouvir o Secretário para os Transportes e Obras Públicas, que está fadado para assumir todos os desmandos verificados quase como naturais e inerentes às obras de cada vez que vai à Assembleia Legislativa, como agora quando com o maior à-vontade veio dizer que a eficácia do metro ligeiro é zero, sabendo-se qual o seu custo, vicissitudes e quem ganhou com a realização da obra, não sei que serviços excepcionais terão sido esses merecedores de tão altas condecorações.
É que se existiram, e vamos admitir que sim, não se deveram certamente à obra pública conhecida. Sendo esta de eficácia igual a zero, os méritos do que fizeram deverão estar protegidos do escrutínio público por um manto de confidencialidade.
E é pena que assim seja. Porque se publicamente se conhece apenas o que não foi feito, o que ficou por fazer, o que ficou mal feito, o que foi muito caro, o que ultrapassou os prazos e o que tem "eficácia zero", haveria todo o interesse em perceber o que fizeram bem.
Bem sei que há coisas que só se aprende por experiência própria, como a necessidade da contratação de não-residentes que não venham do interior do país. Mas perante este cenário, para sermos justos, o actual titular das Obras Públicas terá de receber duas medalhas de honra. Um Grande Lótus pelo que, mal ou bem, ainda vai fazendo, e outro pelo que publicamente, e talvez involuntariamente, diz para ir abrindo os olhinhos a alguns representantes do povo na Assembleia Legislativa.
De outro modo não vejo como possam as coisas ficarem equilibradas. É tudo uma questão de justiça relativa.
Na sequência da publicação de um relatório na passada segunda-feira, que dá conta, entre outras coisas, de que 1 milhão e 37 mil pessoas vivem em Hong Kong abaixo da linha de pobreza, e que a percentagem de crianças que vive abaixo desse limiar subiu de 17,5 para 20,1%, a edição matutina do South China Morning Post, um jornal cuja linha editorial está cada vez mais próxima das posições oficiais de Pequim, veio sublinhar as declarações de Chua Hoi-wai, responsável pelo Hong Kong Council of Social Security.
Se bem se recordar, já em 2017 um artigo de Chen Hong Peng e Paul Yip questionava como seria possível ultrapassar o ciclo de pobreza que muitas crianças enfrentavam em Hong Kong, sendo que na altura se referia um número semelhante ao que foi agora divulgado, ao mesmo tempo que se interrogava sobre a melhor forma de serem dadas oportunidades a essas mesmas pessoas desafortunadas da vida.
Um dos aspectos que hoje ressalta é o das condições em que as famílias dessas crianças vivem devido aos altos valores do imobiliário, o que resulta numa afectação do nível de satisfação das necessidades básicas das crianças e na falta ou diminuição de refeições diárias que as permitiriam crescer saudáveis.
Seguindo por essa linha, Alex Lo escreve que "poverty relief is a long-term commitment", querendo-se com isto dizer tudo aquilo que não se tem visto em mais de 20 anos de integração na mãe-pátria. Trata-se de um insucesso tão grande do processo de integração que já não pode ser ignorado. Não há socialismos felizes, nem sequer num mercado capitalista e altamente desregulado.
Confesso que não sei se em Macau existem estudos que de uma maneira ou de outra nos dêem conta da situação que em matéria de pobreza por aqui se vive. Paul Pun, o incansável dirigente da Caritas, tem regularmente chamado a atenção para o aumento de bolsas de pobreza e para os esforços que a sua organização vai fazendo para trazer conforto e alívio a muitos milhares que em nada têm beneficiado do desenvolvimento económico da RAEM e do crescimento dos negócios feitos à sombra do jogo e da especulação imobiliária.
Há deputados que também a isso têm sido sensíveis e que de quando em vez fazem ouvir a sua voz.
Mas seria bom que todos nós, cidadãos, fossemos tendo consciência disto. E de que o Governo, em vez de andar a distribuir cheques sem critério, encaminhasse verbas para quem efectivamente precisa, reduzindo as disparidades cada vez mais gritantes que todos vemos diariamente crescer entre a população mais desfavorecida de Macau.
A celebração dos 40 anos de reforma, abertura económica, crescimento e desenvolvimento na RPC não pode ter como consequência um aumento das pessoas que vive em situação de pobreza, a multiplicação do número de situações de crianças em risco e um crescimento dos problemas sociais de Hong Kong e Macau de tal forma grave que se tornou notícia.
Que sentido tem festejar 40 anos de sucessos se um dos principais indicadores (científicos, como aqui se quer) de carência e insucesso aumentou? Que sentido pode ter a celebração dessa efeméride para quem regrediu social e economicamente, para quem hoje tem dificuldade em alimentar, dar um tecto condigno e educação aos seus filhos? Que país se pode de tal orgulhar? Que sistema será esse?
Pobreza não é vida. E só para os ascetas constitui uma escolha livre e consciente.
O final do mandato do Prof. Cavaco Silva coincide, grosso modo, com a passagem do 16.º aniversário da transferência de administração de Macau para a R. P. da China, que se celebrará em 20 de Dezembro. Entendeu o Presidente da República (PR) aproveitar a ocasião para oito anos depois da saída de Jorge Sampaio, em jeito de despedida e ajuste de contas com o antecessor, atribuir ao último governador de Macau a mais elevada condecoração nacional. Contra o que o bom senso recomendaria.
O PR, como os portugueses estarão recordados, tem condecorado, na esteira dos que o precederam, toda a gente e mais alguma. Muitos por méritos mais do que duvidosos, mas que têm em comum serem da sua cor política, terem trabalhado ou colaborado com ele, porventura terem-se com ele cruzado à entrada de uma estação de metro num dia de nevoeiro ou num café de Boliqueime. Não admira por isso que quisesse também condecorar Rocha Vieira, militar que para o bem e para o mal ficará eternamente ligado ao que de pior Portugal fez em Macau em matéria de nepotismo, favorecimento e alimentação de clientelas. Para banalização da Torre e Espada, ordem honorífica cuja atribuição deveria ser consensual e compreendida por toda a Nação, é o ideal.
Quem desconhecer o passado e apenas conheça a propaganda da máquina que Rocha Vieira colocou ao serviço da sua promoção poderá pesquisar alguns livros que se publicaram, ver quem os pagou, e os milhares de páginas da imprensa local, incluindo do então Boletim Oficial, para perceber o que o senhor andou a fazer pelo Oriente rodeado pela sua gente, entre a qual se contavam alguns tipos pouco recomendáveis à luz de qualquer padrão de decência, dos que se orgulhavam de ter "andado a matar pretos em África" aos que assinavam contratos "por conveniência de serviço" em nome do Governo com as empresas de que eles próprios eram administradores. O próprio Fernando Lima, assessor do PR famoso no célebre caso das escutas do Público, foi um dos que por Macau se passeou, aproveitando para pernoitar em hotéis de cinco estrelas enquanto compilava, escrevia e publicava uns livros à custa dos patrocínios que directa ou indirectamente saíram dos cofres de Macau. Creio que o Conselheiro Macedo de Almeida, que foi Secretário-Adjunto para a Justiça de Rocha Vieira e é hoje assessor do PR, não contou nada disto ao Prof. Cavaco Silva para evitar que este se arrependesse a tempo.
Depois de um final penoso mas bem encenado e melhor coreografado, onde o descontrolo da segurança se misturava com os milhões, os caixotes e os salamaleques a Stanley Ho e aos poderosos das suas relações, enquanto se condecoravam os amigos e se sugeriam medalhas a Lisboa, criavam-se as instituições onde seriam colocados os seus – não a Portugal – leais servidores, muitos deles ainda hoje vivendo à grande do que então se retirou dos fundos locais. Em matéria de favores nada ficou por pagar fosse em medalhas, contratos, prebendas várias ou viagens e passeatas. E do trabalho que por Macau deixou aos mais diversos níveis, seria bom que os portugueses soubessem que década e meia volvida não há quem não se queixe do que se fez da justiça e dos tribunais, a começar pelo presidente da Associação dos Advogados, e até o português já perdeu, na prática, o estatuto de língua oficial, havendo tribunais a notificarem em língua chinesa destinatários falantes do português e recusando-se a fornecer traduções de despachos e sentenças a esses destinatários, em clara violação da Declaração Conjunta e do estatuto de igualdade das línguas, como que numa antecipação do final do período de transição de 50 anos. Tivesse sido o trabalho bem feito e nada disto estaria agora a acontecer.
O Presidente Jorge Sampaio, através de um gesto que teve tanto de ingénuo como de temerário, já tinha condecorado Rocha Vieira, embora nunca o devesse ter feito. A prova disso é que Rocha Vieira acedeu para logo depois fazer de conta que não tinha dado o seu aval à condecoração. O jornalista João Paulo Menezes recordou-o recentemente:
"Depois de ter aceitado a condecoração proposta por Jorge Sampaio (primeiro verbalmente, depois ao estar presente na cerimónia), Rocha Vieira protagonizou um dos episódios mais insólitos da história recente das condecorações em Portugal.
Como é regra, depois da cerimónia pública é enviado para casa dos distinguidos um documento designado “compromisso de honra de observância da Constituição e da lei e de respeito pela disciplina das ordens”.
Só depois dessa assinatura e da devolução do documento é que a condecoração passa a ser oficial. Mas Rocha Vieira não só não assinou como não devolveu o “compromisso de honra”.
Resultado: o Anuário das Ordens Honoríficas – online, no site da Presidência da República – omite essa condecoração e no seu próprio currículo Rocha Vieira também não refere que recebeu em 2001 o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique".
O general Rocha Vieira apresenta uma justificação no livro que o seu fiel e abnegado colaborador e editor publicou, dizendo que tal condecoração é “como se não existisse”, mas para dizer isto mais valia que tivesse logo recusado a oferta de Sampaio e esperasse que a história, ou quem àquele sucedesse, um dia reparasse a "injustiça". Homens de valor e com feitos excepcionais não fazem o que ele fez a um Presidente da República por muito que não gostasse dele.
Sobre os méritos do futuro titular da Ordem Militar da Torre e Espada, nada mais há a acrescentar, sabendo-se que a sua acção em Macau – e a dos portugueses, por tabela – valeu o gozo dos cartoonistas da imprensa internacional, da americana ao South China, pela forma como foi constituída a Fundação Jorge Álvares, onde estão acantonados os seus homens. E dos quadros dos ex-governadores retirados pela calada, como ainda há dias foi recordado por um ex-assessor de Sampaio, nem vale a pena falar.
O que se estranha é ver o general Ramalho Eanes, um modelo de militar e cidadão, a quem os portugueses muito devem pela consolidação da sua democracia, associado a esta farsa que a Presidência montou para homenagear Rocha Vieira. Só vejo o general Eanes na cerimónia por ser um homem educado e bem formado.
É que é difícil encontrar um paralelo, para além da farda, entre a acção de Ramalho Eanes e a de Rocha Vieira. Não consta que o general Eanes no exercício das suas funções públicas ou na sua vida de militar fosse cínico, falso, prepotente, que usasse o posto e a função para oferecer o que do seu bolso não pudesse pagar, distribuindo benesses, encaixando os amigalhaços, fazendo museus, fundações e institutos para sua glória, editando livros ilustrados com as suas próprias fotografias, dando o seu aval a indecorosas campanhas de promoção pessoal, esperando sempre ser devidamente bajulado em todas as esquinas. Ainda recentemente o general Eanes foi às Filipinas receber um prestigiado prémio internacional, fazendo-o com a maior discrição, como se a distinção que lhe foi concedida não fosse motivo de orgulho para todos os portugueses. A diferença entre os dois homenageados não está apenas no facto do general Ramalho Eanes ter dado o seu nome a um largo de Macau e sobre o outro haver hoje quem em Macau não saiba quem foi, tal a irrelevância do seu papel.
A atribuição da Ordem da Liberdade ao general Ramalho Eanes, militar e homem de Estado a quem em matéria de ética e intenções não haverá um acto que suscite dúvida, é inteiramente merecida e não devia acontecer desta forma, à socapa, em final de mandato, sem brilho.
Quanto à do outro cavalheiro a quem o PR resolveu agraciar com a Torre e Espada, a única coisa que se pode dizer é que não será pelo general Ramalho Eanes lá estar que deixará de ser um ultraje. Porque o homenageado será muito seu amigo, simpático e educado, mas faltará tudo o que a Torre e Espada pretende significar. Faltam os "feitos excepcionalmente distintos" à frente de órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha, faltam os "feitos excepcionais de heroísmo militar ou cívico" e faltam os "actos ou serviços excepcionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade".