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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Ainda há dias pensei nele.
Habitualmente, duas ou três vezes por ano, por altura das quadras festivas e no Verão, comunicávamo-nos por escrito. E desta vez eu queria antecipar-me para não ser sempre ele a tomar a iniciativa de me escrever, de procurar saber de mim e dos combates que ia travando, comentando o que ia sabendo.
Não fui a tempo. E não haverá próxima vez.
Quando uma enxurrada começa é difícil estancá-la. E ultimamente chegam mais carregadas de más notícias. De todo o lado.
Apercebi-me ontem de que quando o funesto evento aconteceu, desta vez no Canadá, há mais de mês e meio, estava em viagem. E foi por um jovem advogado estagiário de língua materna chinesa que tive nota do seu passamento, o que muito me entristeceu.
Sei bem que a velhice caminha de braço dado com a idade, embora esse passeio nem sempre se faça à mesma velocidade. No seu caso, a sua extraordinária capacidade de trabalho continuou após a jubilação e não o impediu nos últimos anos de dar aulas e intervir em seminários, ajudando à formação de magistrados e advogados, ao mesmo que tempo que publicou mais de uma dúzia de livros, códigos anotados, comentários e manuais, a maior parte deles sobre o Direito de Macau. Incansável.
O último testemunho da sua amizade, e labor em prol da comunidade, foi-me entregue por amigo comum. Chegou com um cartão manuscrito por outro insigne jurista ligado à formação de magistrados, a acompanhar um exemplar do seu “Direito Disciplinar de Macau”, mal saído da tipografia, pelo qual me dava nota daquele me ser enviado por “especial recomendação” do autor.
Após uma vida de dedicação aos tribunais e ao Direito português, onde deixou um rasto de sabedoria e entrega, citado em todas as instâncias e constituindo o seu trabalho objecto de estudo incontornável nas Faculdades de Direito, foi a Macau que rumou dando um contributo inestimável à localização jurídica e judiciária, à preservação das raízes lusófonas e ao desenvolvimento do direito local, em especial nas vertentes penal e processual penal, onde a qualidade do seu trabalho sempre fez a diferença.
Exerceu funções no pioneiro Tribunal Superior de Justiça de Macau e deixa-nos, sozinho e em co-autoria com o Dr. Simas Santos, um estupendo repositório de obras e anotações jurídicas, que se somam aos milhares de decisões lavradas pela sua pena. Sempre numa escrita simples, depurada e de grande sentido pedagógico.
Mas mais do que registar a sua herança jurídica e judiciária, quero neste breve apontamento realçar a sua humanidade, simplicidade, cortesia, o modo como a todos tratava, da senhora da limpeza ao advogado, do ministro ao sem-terra, do amigo ao desconhecido, sempre com a mesma educação, desvelo para com o próximo, atenção, bondade. Sem esquecer o seu espírito profundamente democrático, arreigado até às entranhas, sempre pronto para escutar o outro, perceber a sua perspectiva, colocando-se no seu lugar.
Alguns, felizmente poucos, baixinhos, de espírito pequenino e medíocre, a quem a sua sombra impunha respeito, entredentes iam urrando e vituperando nas sacristias, pelos fretes que não lhes fazia; mais ainda quando as decisões que assinava ignoravam os recados previamente transmitidos pelos poderosos.
Nos últimos anos mereceu algumas desconsiderações do poder político, mais preocupado com a burocracia e a norma estúpida do que com a protecção da civilização, do sentido da vida e das coisas. Essas aleivosias, ainda que o magoando, como a qualquer pessoa séria e decente fariam, em nada o afectaram. Sempre esteve muito acima da mediocridade de algumas seitas.
Os residentes de Macau, a sua comunidade jurídica, magistrados, advogados, juristas em geral, muito lhe ficam a dever. Os seus livros continuarão a ser diariamente consultados, é certo, mas faltará sempre alguém para esclarecer mais uma dúvida e nos ajudar a pensar melhor.
O Dr. Manuel Leal-Henriques, que me deu a honra de ser seu amigo, constituirá um farol para as futuras gerações de juristas de Macau, um marco indelével da dignidade e lisura da magistratura portuguesa, um exemplo dos portugueses com honra que não se prostituem por um saco de lentilhas. Em casa ou fora de portas. Nem mesmo depois de reformados.
Perante o que hoje é público, espero que alguém – seja o Governo da RAEM, através do Secretário para a Administração e Justiça ou do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, seja a Faculdade de Direito, os Tribunais ou a Associação dos Advogados –, se lembre de organizar uma homenagem condigna em memória do Dr. Manuel Leal-Henriques.
O legado do juiz conselheiro jubilado Manuel Leal-Henriques, e não falo de Portugal, não é uma nota de rodapé numa sebenta, ou um parágrafo num comunicado discreto.
E a sua obra é, certamente, bem mais merecedora de destaque, para que seja por todos conhecida e ganhe maior utilidade nos tempos difíceis que atravessamos, do que alguns eventos que por aí ocorrem para louvar bípedes sem vergonha, cujos maus plágios são venerados de cada vez que se colocam em bicos de pés, proferem um dichote para a imprensa ou fazem um jeito aos poderosos.
O pai, médico, era amigo de infância da minha mãe, e dos tios todos, e muitas vezes cuidou das maleitas da Mélita de cada vez que dava uma corrida às urgências. No velho Hospital de Cascais.
Do Jorge, cujo Moçambique profundo e África lhe corriam nas veias, recordo-me de o encontrar uma e outra vez, sempre com sorriso rasgado e incansável boa disposição. Médico como o Júlio pai, e como os irmãos, e hoje também as filhas.
Um dia, aproveitando uma ida a um congresso qualquer, aqui na Ásia, apareceu-me mais a D., e lá nos encontrámos todos, mais outros clínicos que vieram e eu fiquei a conhecer. Recordo-me de termos almoçado juntos no Clube e dado uma volta pela cidade e as ilhas de outrora no velhinho Saab 900 turbo.
Anos depois, aproveitando as viagens quinzenais do meu irmão à Madeira, que se prolongaram durante décadas, ofereci-me uns dias de férias e na boleia lá fomos visitá-lo ao Garajau. Apresentou-me, com a felicidade habitual, a arara, a catatua, e a demais bicharada que por lá se alojava.
Rimos muito, até tarde. Noite de Verão, magnífica, inesquecível, com gente amiga e magnânima. Irmãos.
Por essa altura, quase recém-chegado a Portugal, com escritório novo, mas ainda, como sempre andei, à procura de assentar, sem saber muito bem onde, sugeriu que me instalasse por lá. Trabalho não me faltaria. E poderia contar com o apoio do J.L., que estava ao lado e logo assentiu, e do seu escritório. Ainda pensei nisso, nos mergulhos, no peixe-espada, nas espetadas, no Porto Santo. Não se concretizaria.
Falou-me então dos seus projectos. Disse-me para ir conhecer o hotel a Cabo Verde, passar lá uns dias, que o R., nosso elo, já conhecia de outras voltas. Lá fui. Antes de ir, conversando com ele ao telefone, ainda me disse que se precisasse de charutos havia por lá uma caixa sua. Não precisava de levar. Que a pedisse ao pessoal; que me servisse. Assim, sem mais. Não cometi esse abuso. Levava os meus. Trataram-me como se eu fosse um príncipe.
Dias inesquecíveis. Valeram um conjunto de nove pequenas crónicas no Delito de Opinião.*
A hospitalidade do lugar, a doçura das gentes de São Vicente, do Mindelo e da praia de S. Pedro, mais os crepes Suzette, dos melhores que alguma vez me foram dados a provar, e mergulhos de sonho com um divemaster improvisado, que ria muito e sonhava ser “chefe de polícia”, como o tio, “para não ter muito que fazer e levar uma boa vida”, fizeram daquela estada, ainda hoje, uma das mais vivas, queridas e belas recordações.
Com as voltas do mundo nunca mais regressei à Madeira. Era o R. que me ia dando conta dele e das suas andanças.
À distância sabia que me ia lendo. De quando em vez trocávamos uma ou outra mensagem sobre a actualidade política. Nacional e local.
Quando há uns meses o meu irmão me pôs ao corrente da sua situação, percebi que dificilmente voltaria a estar com ele. Em pessoa. Entre gente. E com gente dentro.
Da família aos doentes e aos amigos, mesmo aos que sempre estiveram mais distantes, como será o meu caso, todos sentirão a falta da sua generosidade, da africanidade fraterna, da boa disposição, da gargalhada larga do homem sereno, íntegro, solidário, sempre disponível e leal.
O abraço que faltou, e se perde agora irreversivelmente no tempo, segue por esta via. Também para a D. e para os que de mais perto por lá ficam, certo de que qualquer que seja a picada, a savana ou o mar por onde agora se passeie, não lhe faltará o calor e a alegria de saber que nada foi em vão.
Ficou um pôr-do-sol por partilhar entre um copo e dois dedos de boa conversa. E um charuto por fumar.
Quanto ao charuto, esse, o que não fumámos no Foya Branca, nem juntos na distância, irei tratar disso rapidamente. E recordar a herança dos homens livres e aqueles dias de mar e meros mesmo defronte de sua casa.
Pode ser que ele ao ver-me por aqui, com o olhar perdido no calor e na humidade do tufão que aí vem, e de cortador na mão, também se apreste para acender um Churchill lá em cima.
Até sempre, Jorge.
[* Corrigido, porque foram nove e não oito textos. Ficam aqui aqui os links para quem os queira ler: S. Vicente (1), S. Vicente (2), S. Vicente (3), S. Vicente (4), S. Vicente (5), S. Vicente (6), S. Vicente (7), S. Vicente (8) e S. Vicente (9)]
(créditos: daqui)
Nos bons e nos maus momentos esteve com todos e contra todos, com inteligência, ignorância e muito cinismo.
Uma vez convidaram-me para estar presente num dos seus doutoramentos honoris causa. Até hoje não estou certo se acreditava numa palavra do que pensava, do que dizia e do que escreveu.
Mas o seu legado é incontornável. Outros o julgarão. Não faltarão entendidos a dissertarem nos próximos dias, em todos os canais de rádio e de televisão, em tons laudatórios, sobre as suas múltiplas qualidades. Eu limito-me a certificar o óbito do século XX. E olhando à minha volta, para o que se passa no mundo, também não sei se isso será bom.
Ninguém tem o dom de adivinhar o futuro. Ele também não o teve, e por várias vezes tentou interromper o curso da história, treslendo e ignorando os sinais.
Apesar disso foi capaz de escrever muitos sumários. Alguns péssimos. Em Timor não deixará saudades. Outros, felizmente, como no caso português, não se concretizaram. Não ficámos entre Santiago e Havana. Voltámos a ser europeus. De corpo inteiro. E não lhe devemos isso.
Que descanse em paz.
(14/12/1946 - 16/07/2023)
Merci, Jane. Et pour toujours.
Tal como muitos portugueses, fui ontem surpreendido pela notícia do falecimento de Manuel Rui Azinhais Nabeiro, o visionário da Delta Cafés que projectou Campo Maior muito para lá das suas fronteiras geográficas.
Durante os meus anos de faculdade tive a sorte de conhecer algumas pessoas que se viriam a tornar dos meus melhores amigos, entre eles o Rui, que era sobrinho do senhor Nabeiro e que durante aqueles anos de solteiro e estudante habitava na sua vivenda da antiga Av. do Aeroporto, depois baptizada de Almirante Gago Coutinho, onde por aquele tempo também ficavam os escritórios da Delta em Lisboa.
Nos intervalos das aulas, por vezes ao final da tarde ou à noite, lá íamos uns quantos jantar a casa do Rui, que se encarregava de invariavelmente nos fazer, na maior parte das vezes, um saboroso bacalhau à brás de cujas batatas nunca mais me esqueci, de tão bem que me sabiam. Era sempre uma festa. Com o convívio e a camaradagem cresceu a amizade, e lá fui ouvindo as histórias que o Rui me tinha para contar do tio e da sua família.
Um dia, logo após os nossos últimos exames, e terminado o curso, o Rui convidou-me para irmos ao Porto. Ele trataria do transporte, com alguém da Delta que tivesse carro, fosse para o norte e nos pudesse dar uma boleia, e do alojamento, em casa de amigos, ou de amigas que nos pudessem acolher, que nesse tempo todos tesos. Eu ainda sou, embora um pouco menos do que naqueles tempos de estudante recém-licenciado à espera do que a vida me trouxesse.
Lá fomos até à Invicta, e depois a Paços de Ferreira, onde o Campomaiorense jogava para a Taça de Portugal e o meu amigo iria representar o clube da sua terra. Ficámos os dois, que nem uns perus, no camarote destinado ao visitante, quase directores, na ausência destes devido ao facto de ser um dia de semana. Foi uma jornada memorável, que se completou com a viagem do Porto até Campo Maior, nos carros da Delta, ele num, eu noutro, por ocasião de uma caçada em Espanha e de um convívio oferecido pela Delta, no fim-de-semana seguinte, aos seus melhores clientes, creio. Foram tempos inesquecíveis de camaradagem e amizade, que perduram até hoje.
Graças ao Rui conheci os pais, os irmãos, os tios, os primos, a amiga Beatriz, o João Manuel, a Helena e o saudoso Joaquim Bastinhas, a quem numa dessas noites fomos visitar para conhecer a sua nova quadra, logo aproveitando para "cravar" um jantarinho na Pousada de Elvas, e mais uma série de gente de cujos nomes já não me recordo, mas cujos sorrisos permanecem tão vivos na minha memória como se tivesse sido ontem.
Recordo-me de uma outra vez ter sido convidado para visitar a nova fábrica, quando a Delta deu o salto que a tornaria num verdadeiro portento em Portugal e em Espanha, onde pude apreciar óptimo café e aprender alguma coisa de útil desde o processo de produção à distribuição.
De uma outra vez, tendo sido convidado para o baptizado de um dos netos, o Rui lá tratou de me instalar, como habitualmente, na Estalagem de Campo Maior, gerida pela sua mãe. Quando nessa noite, ao jantar, chegou o senhor Nabeiro e o fomos cumprimentar, logo ele perguntou ao sobrinho quando chegáramos e onde é que eu, o amigo vindo de Cascais, o "pendura", iria dormir, e se estava bem instalado.
Ontem, quando estava a ler os jornais do dia e fui surpreendido com a triste notícia do falecimento do senhor Nabeiro, a quem não sabia enfermo, e à noite vi as notícias nos vários canais de televisão, não pude deixar de me recordar de tudo isto, e de muito mais que não posso nem seria adequado aqui contar porque diz respeito à nossa intimidade e aí ficará; porque há coisas que só aí podem ser devidamente preservadas e recordadas.
Um destes dias, quando puder, hei-de voltar a Campo Maior, para rever a terra, as gentes e os amigos. E nesse dia, quando aí levar a M.T., se voltar a haver Festa do Povo, hei-de poder mostrar-lhe todos aqueles lugares que um dia me fizeram feliz, mostrando-lhe o tanto que a vida nos dá, pela simples, desprendida e genuína amizade, tantas vezes sem que nada façamos para merecermos tamanhas honras e privilégios. Tudo em razão da grandeza, da bonomia, da simplicidade e da ternura de um homem por todos aqueles que o rodeavam, que por uma razão ou por outra o faziam feliz, e que jamais deixarão de lhe estar reconhecidos.
Houve um dia em que o Rui e mais uns amigos de Campo Maior vieram aí a um congresso qualquer e aproveitaram para me fazer uma visita. Levei-os a jantar ao Clube Militar, no tempo em que o José Manuel Braz-Gomes ainda marcava o ritmo do compasso, e a casa, que ainda não se tornara numa cantina barulhenta, se preocupava em fazer boa figura. Recordámos então dias curtos e noites longas de interminável amizade.
Que Manuel Rui Azinhais Nabeiro, o senhor Comendador – um dos poucos, num país que distribui medalhas como quem oferece caramelos de Badajoz, verdadeiramente merecedor e digno do título –, depois de uma vida dedicada aos outros, criando riqueza e melhorando o dia a dia de todos, possa agora finalmente descansar e tomar em paz e sossego a sua chávena de café, sentindo aquele aroma tão característico das coisas que nos dão prazer e nos inebriam. Das coisas que valem sempre a pena. Como a autenticidade, a discrição, a preservação do carácter na adversidade e a amizade.
Ao meu amigo Rui e a toda a família vai daqui, dos cafundés de uma Macau que se foi perdendo e que eles não reconheceriam, um agradecido, forte e sentido abraço.
(Salvador Dali e Raquel Welch)
Durante décadas, a sua imagem povoou o imaginário de milhões de homens, jovens e até de meninos recém-chegados à puberdade, encarnando a imagem da mulher sensual e charmosa que podia desempenhar qualquer papel.
Amiga, namorada, amante, mulher, mãe, dentro ou fora de casa, modelo, executiva, empresária, pistoleira, muitas vezes com uma imagem rebelde e independente que fugia aos cânones da sua época.
De "One Million Years B.C." a "Viagem Fantástica", sem esquecer "A Swingin'Summer", o seu primeiro filme, "Spara forte, più forte... non capisco!", "Bedazzled", "Lady in Cement", ao lado de Sinatra e anunciada com as medidas "37-22-35", "Bandolero", "Cem Armas ao Sol", "Os Três mosqueteiros", "Legalmente loura", foram sete dezenas de filmes e séries que nos divertiram, encantaram e fizeram sonhar, mesmo quando não passavam do sofrível e apenas porque ela estava lá, tornando-a num verdadeiro mito, em especial durante os anos 60 a 80 do século XX.
Sem nunca ter atingido o reconhecimento, a classe e o estatuto de uma Sophia, de uma Claudia ou mesmo de uma Romy, Raquel Welch marcou uma época e ficará para sempre como uma das mais belas mulheres que algum dia encheu os ecrãs e os sonhos de toda uma geração de adoradores.
Morreu hoje aos 82 anos. Deixa-nos um legado de sonho e de beleza, de um tempo em que gostar de apreciar a beleza feminina, apenas pelo seu encanto, e elogiá-la não era sinal de machismo, de infidelidade ou de um crime de lesa-género.
Que descanse em paz, pois que quanto aos filmes, esses ficarão por cá, para que possamos continuar a apaixonarmo-nos pela sua inesgotável e inesquecível imagem de cada vez que regresse à tela.
Nascera em S. Tomé, quando o pai por lá andara, mas era Angola que admirava. Falava-me de Luanda e do Lobito com a mesma paixão com que eu lhe falava do Benfica, dos meus fugazes amores de Verão, dos livros de Pessoa, da música de Brel ou de Leo Ferré, das viagens que fiz e das que ansiava fazer.
Um dia, quando eu quis ir de férias, depois de deixar duas cadeiras para a segunda época e a Mélita me disse que não haveria "subsídio de férias", foi ele quem me arranjou uns 400 ou 500 marcos que contribuíram para uma volta à Europa. Os marcos eram do pai, tinham sobrado de uma viagem, andavam lá por casa numa caixa. Lembrou-se deles, falou com o pai, que concordou e considerou a causa justa, e combinei devolvê-los logo que pudesse. À responsabilidade dele, disse-lhe o pai com a bonomia habitual. Assim foi, embora essa ajuda não tivesse evitado o meu repatriamento de Milão. Coisas da vida; e da "melhor juventude".
Foram tempos de sonho e de sonhos, de muito estudo, de muita discussão, de muita alegria. Depois, rumei a Oriente, primeiro, a seguir ao Sul, e de novo a Oriente. Ele virou-se para Angola, terra que amava. Víamo-nos de tempos a tempos, quando se proporcionava, mas a amizade ficou para sempre. Quando por Portugal, na minha ausência, muitas vezes visitava o meu irmão, outros familiares e amigos comuns. A Mélita gostava muito dele. Apreciava nele a simpatia e a boa disposição. Eu também, que não sou diferente dela. E lá em casa todos os outros. Sempre educado, atencioso e disponível.
Não me disseram no dia. Soube-o depois, naquele que terá sido um dos mais fantásticos domingos da minha vida, em que a tristeza da notícia se misturou com a alegria e exuberância do momento que vivi.
De regresso à normalidade dos dias e das noites, pude então recordar a sua memória, levada de forma tão inexplicável, para mim, quanto terá sido pensada e reflectida a sua partida.
Lamento muito. Deus, se existe, saberá quanto. E o que se poderá aproveitar de um testemunho doloroso de uma amizade de corpo inteiro construída nos bancos da faculdade, nas idas a Coimbra, à "Queima", nas noites de estudo e de folia, em tantos e tão vividos momentos.
Poderei nunca vir a saber o que aconteceu, nem o porquê dessa tarde de 28 de Setembro, no Lubango.
Nem nunca lhe poderei contar como foi a minha experiência de conduzir, em Portimão, o Porsche 911 GT3 CUP. Contá-la-ei ao Zé e ao Palma, quando estiver com eles.
Também será o que menos interessa.
Porque aqui, o que importa, é mesmo recordar o que foi uma bela amizade, entre o seu sentido prático da vida e o meu lirismo sonhador, que ele tão bem transmitiu ao nosso caricaturista quando fui confrontado com a surpresa de ver na projecção da minha sombra os traços do autor da Ode Marítima. Foi o Alexandre quem teve a inspiração de dizer ao caricaturista quais os pontos a destacar na minha figura. E eles ficaram. Até hoje. Perseguindo-me como uma segunda pele. Vida fora, por muito errante que fosse.
Durante todos esses anos fomos companheiros inseparáveis. Estudávamos juntos, partilhávamos sebentas e livros, a minha casa foi a dele, e vice-versa.
A bem dizer, eu, que fui seu amigo, e continuarei a ser, irremediavelmente até ao fim da minha hora — porque se há alguma coisa que seja eterna, para lá dos abraços da Mélita, é a verdadeira e fraterna cumplicidade de um amigo, de uma amiga, aqui ou em qualquer outro lugar por onde passe —, irei "falar nisso a todos, / Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível", porque no relatório e contas do Além, repescando o que o outro escreveu, "tudo isso terá um sentido"; "um sentido mais belo e mais vasto / Que apenas o ter-se perdido o barco onde" ele ia.
(10/02/1959 - 10/08/2022)
Todos aqueles a quem sentaste ao longo da vida, com a classe, a perfeição e o brilho do teu génio, levantam-se hoje em tua homenagem. Até à Eternidade.
Ainda há semanas tinha pensado nele. Era um daqueles amigos que raramente encontrava. Via-o pouco, mas era sempre uma festa. A Mélita gostava muito dele. Conhecia-lhe a família toda. Ele fora companheiro e amigo do Ricozé desde o tempo em que andaram juntos nos Maristas. Sempre bem disposto, sempre simpático e atencioso, bonacheirão, de sorriso largo, farto e ingénuo; às vezes malandro, rindo muito por debaixo dos óculos e da barba. Já me tinha dito para ir visitá-lo ao Alentejo, à sua herdade, seu refúgio desde antes de se reformar e onde gostava de estar entre oliveiras e animais sempre que fugia de Cascais. Os jardins do Casino devem-lhe muitas horas de atenção e cuidado. Todos perdemos alguma coisa. Hei-de voltar a tomar um copo com o Jorge Pinto Basto quando chegar a minha vez. Um vinho de estalo. E voltaremos a rir-nos, saudavelmente, de nós próprios e dos outros, com mais amigos. Até lá, irei ter saudades dele.
Uma situação estranha para os leigos, incompreensível para todos, como algo que escapa definitivamente à lógica dos dias e das maleitas habituais.
Um dia veio buscar-me ao escritório. Não sei ao certo de quem partira a ideia de incluir o meu nome. Se dele, se do Óscar, se da Filipa, embora o simpático convite viesse desta última. E lá fui fazer a apresentação do filme num ciclo de cinema cujo leitmotiv era a Justiça. Conhecêramo-nos havia algum tempo, mas creio que foi pela sétima arte que nasceu um maior entendimento mútuo.
Para além do direito e do cinema, em comum havia o gosto pelo futebol e a paixão pelo mesmo clube.
Discordávamos sempre em matéria de forma de governo. Ele era um monárquico profundo, zeloso da tradição, do peso da história e das instituições como cimento da unidade nacional em democracia, defendendo as suas posições com a educação, a elevação e o conforto próprios de quem se sente bem na sua pele e acredita que para lá das divergências só respeitando o outro se consegue passar a mensagem.
Admirava-o por essa sua franqueza, por vezes ingenuidade, simplicidade e cativante simpatia com que sempre terçávamos armas. E mesmo quando se posicionava do outro lado da barricada, o que algumas vezes aconteceu, nunca deixou de registar publicamente o seu apreço pelas posições que sempre defendi.
Parte cedo, muito cedo. E é sempre demasiado cedo quando se está na força da vida e se tem tanto para dar.
Que o seu Deus, em cuja generosidade sempre acreditou, e que tão injusto se mostrou para com ele e tantos outros, todos os dias, seja capaz de o acolher com a nobreza que merece, e olhe por aqueles que colhidos pela dor da sua súbita partida nos recordarão que continuará presente.
Como sempre permanecem todos aqueles que mesmo longe contribuem pela sua memória para tornarem menos penosos os nossos dias terrenos.
Que descanse em paz.
O mundo foi hoje surpreendido com o falecimento de Ennio Morricone, vítima de uma queda com uma idade (91 anos) em que devia ser proibido cair.
O aclamado compositor e maestro italiano, vencedor de dois Óscares (2007, pela carreira, e 2016, pela banda sonora de “The Hateful Eight”), foi autor de algumas das mais inesquecíveis melodias para o cinema, tendo trabalhado com inúmeros realizadores.
Primeiro com Sergio Leone, de quem foi colega de escola, a partir da década de 60 do século passado, nos chamados Western Spaghetti, depois com quase todos os grandes nomes da realização. Bertolluci, John Carpenter, Brian de Palma, Giuseppe Tornatore (no inesquecível “Malèna”), Barry Levinson ou Quentin Tarantino foram apenas alguns.
De “Por um punhado de dólares” a “Cinema Paraíso”, de “O bom, o mau e o feio”, a “Era uma vez na América”, de “Frantic” a “Os homens do presidente”, sem esquecer “Sacco & Vanzetti”, a “Missão” ou “Kill Bill”, foram mais de quinhentas composições e bandas sonoras para o cinema.
Estudou na Academia de Santa Cecília, em Roma, onde se diplomou em trompete. Reconhecido em todo o mundo pela excelência do seu trabalho, a banda irlandesa U2 dedicar-lhe-ia uma música (Magnificent).
Em Outubro de 2007 fez uma incursão pela política italiana, integrando a lista de Walter Veltroni. Participou nas primárias e acabou eleito para a então Assembleia Constituinte do Partido Democrático.
Parte o homem que, como alguém disse, não era apenas um compositor de música para filmes, mas um grande compositor.
Ficará a saudade, e uma obra monumental que continuará a ser ouvida até ao fim dos tempos.
(Miguel Marques/Global Images via Expediente Sínico)
Não convivi muito com o Pedro Baptista, mas estivemos juntos vezes suficientes para perceber a sua estirpe.
Conheci-o há uns anos em casa de amigos comuns, e não obstante a divergência clubística, rapidamente ganhei admiração pelo tipo.
Até então tinha dele, o que era compreensível atenta a diferença de idades, apenas as referências públicas à sua luta política no tempo da outra senhora, ao papel desempenhado na fundação da OCMLP, ao seu trabalho como deputado na Assembleia da República, pelo PS, e como ensaísta e escritor.
Quando lhe perguntei, na altura em que estava a iniciar o trabalho de campo da minha tese de doutoramento, se estava disponível para que o entrevistasse, logo se disponibilizou para o efeito, dando largas à sua generosidade.
Confesso que devo ter tido com ele algumas das mais interessantes e estimulantes conversas sobre a vida política portuguesa, a democracia, os partidos e a militância partidária, da qual ele havia sido um dos expoentes máximos em Portugal, antes e depois da revolução.
Quando, como era habitual com todos os entrevistados, depois de ter transcrito a entrevista lhe remeti o texto para que eventualmente corrigisse alguma expressão mais forte, fruto do calor da exposição, da sua tradicional irreverência na forma como verbalizava e abordava as questões, das mais complexas às mais simples, logo me respondeu que não havia nada a corrigir. Era o que lá estava e os visados se quisessem que se queixassem. Porque era tudo verdade. E era, pelo que foi assim que passou ao anexo da minha tese.
Depois disso encontrámo-nos algumas vezes, uma delas após as eleições presidenciais "estado-unidenses", e não norte-americanas, como ele gostava de sublinhar, num debate na Fundação Rui Cunha para o qual sugeri à organizadora a sua presença.
Pelava-se por uma boa discussão, gostava de política a sério e nos últimos anos tinha uma profunda tristeza e desdém pela nossa classe política. E se ele a conhecia; em especial a da sua cidade. Das golpadas nos partidos às moscambilhas nos negócios, nada lhe escapava.
Por vezes, via nele alguma ingenuidade na forma como acreditava em certas pessoas quando ainda não as conhecia bem, mas isso decorria da sua natural bondade. Não constituía defeito. Até aos vigaristas e aldrabões profissionais da política dava o benefício da dúvida. Depois, quando lhes tirava as medidas, é que eram elas. Punham-se rapidamente a léguas, que o Pedro não se poupava nas palavras, sempre certeiras.
Ontem, ao final da noite, recebi estupefacto a notícia do seu falecimento, logo no dia em que se preparava para ser inaugurada no museu da sua cidade a exposição "1820, Revolução Liberal do Porto" em que tanto se empenhara, ao mesmo tempo que preparava o seu livro sobre a China que nos últimos anos estudou e percorreu.
Os livros e os textos que foi publicando ao longo dos anos estão aí para quem se quiser cultivar e aprender alguma coisa com quem conheceu a vida e os partidos políticos por dentro e por fora.
O Pedro Baptista vai fazer muita falta ao Porto, à cidadania, à nossa democracia. Espero que a sua cidade lhe preste as honras que merece por tudo quanto por ela fez.
E pese embora estas linhas surjam num momento triste, mais do que uma recordação do homem culto, do professor, do filósofo, do político, do amigo, do combatente pela liberdade a quem ainda esperavam algumas batalhas, quero que aqui fiquem como uma homenagem ao espírito livre, irreverente e crítico, em especial à sua integridade de carácter, à sua frontalidade e à nobreza com que sempre se bateu por aquilo em que acreditava.
Espécimes destes são cada vez mais raros. O Pedro Baptista era um exemplar único.
Que descanse em paz.
Natural do Cercal (Alentejo), passou uma boa parte da vida fora do seu país.
Licenciado e Mestre em Sociologia pela Universidade de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), com diploma de Estudos Aprofundados da Universidade de Paris VIII, doutorou-se em 1988 com uma tese que tinha por título "I república portuguesa: questão eleitoral e deslegitimação". Leccionou em Portugal e no estrangeiro e foi um dos fundadores da Associação Portuguesa de Ciência Política.
No início deste século, foi ele quem me introduziu nas questões do clientelismo e do caciquismo, mas creio que os seus trabalhos sobre os partidos políticos são o melhor que nos lega. Deu-me a conhecer Panebianco, ajudou-me a melhor compreender Michels, Ostrogorsky, Pareto, Mosca e tantos outros.
Mais tarde viria a ser meu orientador durante o mestrado, tendo-me chegado a propor, com o vasto material que eu na altura possuía, que prosseguisse logo para o doutoramento, o que por razões profissionais e económicas não pude fazer.
Aqui há uns anos, já reformado, estando eu então a fazer o prometido doutoramento, ainda tive o privilégio de o reencontrar, de participar e de o ver conduzir um pequeno seminário na Universidade Nova de Lisboa. De novo sobre os partidos políticos.
Na minha memória, para além das aulas que me deu e de tudo aquilo que me ensinou e deu a ler, ficam as manhãs passadas à mesa da Frolic, no Estoril, quando eu ia do Algarve para com ele me encontrar, aos sábados de manhã, e entre dois cafés me lia as notas que tinha deixado à margem dos meus textos e discutíamos as questões relacionadas com as elites e a minha dissertação. Não me esquecerei do seu sorriso e do abraço que me deu quando os Professores Costa Pinto e Tavares de Almeida anunciaram o resultado da sua paciência.
E também da satisfação que lhe deu a orientação do meu trabalho nessa fase inicial, bem como os resultados que entretanto obtive, mas já não irei a tempo de lhe dizer que também hoje dou aulas numa universidade, do outro lado do mundo, fazendo uso e transmitindo aos outros, o melhor que posso e sei, o que com toda a bondade deste mundo me ensinou.
Soube esta manhã da sua partida por uma curta e sentida nota do Prof. André Freire, também este seu discípulo e colega, a quem daqui envio um abraço solidário, extensivo aos seus familiares, colegas e amigos.
Se 2019 terminou triste, 2020 não podia começar pior. Mas espero que ao Professor Fernando Farelo Lopes, lá por onde agora andará, não lhe faltem os livros, nem o sorriso de sempre, nem a disposição para continuar a ver o que por cá vamos fazendo. Pelo meu lado, grato como sempre estou aos meus mestres, continuarei a divulgar a sua obra, onde quer que esteja.
E que descanse em paz.
For Mamma "La Mamma"
She said, "My son I beg of you
I have a wish, that must come true
The last thng you can do
For yo' mama
Please promise me that you will stay
And take my place, while I'm away
And give the children love each day"
I had to cry, what could I say?
I tried so hard to find a word
I prayed she would not see me cry
So much to say, that should be heard
But ony time to say "Good-bye"
To my mama
They say in time, you will forget
Yet still today, my eyes are wet
And still I try to smile
For my mama
Now soon there'll be another Spring
And I will start remembering
The way she used to love to hear us sing
Her favorite song, "Ave Maria"
Ave Maria
Then I will feel, the deepest joy
Yes, for my mama
And I will feel, so proud that I
Made the wish come true
All for my mama
The family's left, I feel so numb
I should've known this day would come
And still I try to smile
For my Mama
It hurts so much to see them go
They have their lives to lead, I know
Now I can watch their children grow
And hear, again, "Ave Maria"
Ave Maria
And I feel
The deepest joy
Yes, I'll kiss them all
For my Mama
And I will feel
So proud that I
Made the wish come true
All for my Mama
Still, this seems
So small
For all
She done
For me
On my my, Oh my my my, Oh Mama
Aos 70 anos travou o seu último combate, a derradeira corrida de uma vida plena de sacrifícios, glória, coragem, dor e intransigente respeito pela sua condição de homem e de piloto.
Espalhou classe e desportivismo pelas pistas de todo o mundo, numa época em que a Fórmula Um se fazia com cavalheiros, com homens e não com meninos.
Deu dois títulos mundiais à Ferrari (1975/1977), um terceiro à McLaren (1984), mas se me perguntarem o que de mais vivo tenho na memória, talvez fruto da minha condição de Alfista, foram as vitórias em Anderstop, no Grande Prémio da Suécia (1978), com o Brabham-Alfa Romeo BT 46-B com efeito de solo, e em Monza, no mesmo ano.
A primeira constituiu um duelo entre o motor Cosworth DFV do Lotus 79 de Mario Andretti, que viria a ser nesse ano o campeão do mundo, e o fabuloso motor de 12 cilindros da Alfa Romeo, que conduzido pela lenda austríaca esmagou toda a concorrência. A segunda foi uma corrida atípica, com muitos acidentes e interrupções, num fim-de-semana aziago em virtude do falecimento de Ronnie Peterson.
Lauda deixará mais um espaço por preencher na galeria dos notáveis que nos deixaram muito cedo. Que tenha o merecido descanso.
(foto daqui)