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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(Créditos: May Tse/SCMP)
O Secretário-Chefe (Chief Secretary) do Governo de Hong Kong, Matthew Cheung, tinha avisado, através das páginas do China Daily, jornal totalmente controlado pelo Partido Comunista e órgão oficioso do Governo Central, que o exercício do direito de voto nas eleições de ontem seria um "exercício democrático efectivo", tendo sido garantida uma forte presença policial para que assim fosse.
Confesso que outra coisa não esperava que acontecesse, estando de antemão convicto de que todos aqueles que andaram a manifestar-se nas ruas durante mais de cinco meses tudo iriam fazer para que o acto eleitoral decorresse de forma pacífica e civilizada. Foi isso mesmo que aconteceu, e ainda bem.
Apesar do universo de eleitores recenseados ter aumentado, com uma afluência às urnas de 71,2%, que bateu todos os números anteriores e representou um crescimento da participação de 24,19% face às eleições de 2015, será obrigatório reconhecer que o povo de Hong Kong, isto é, os residentes a quem a Lei Básica outorgou capacidade eleitoral activa, antigos residentes expatriados, hongkongers e mainlanders que entretanto vieram fixar-se, decidiram participar de forma massiva, para que amanhã não venham dizer que há uma maioria silenciosa que não se manifesta e que apoia o Governo de Hong Kong.
Ficou provado que não há nenhuma maioria silenciosa a apoiar as forças policiais, nem o Governo de Hong Kong ou as forças pró-Pequim têm qualquer apoio popular visível.
A forma como as eleições decorreram, ordeira, civilizada e pacificamente, demonstram o elevadíssimo grau de maturidade da população de Hong Kong e a sua preparação para uma vida democrática normal. Sem baias, sem constrangimentos. Quem tivesse dúvidas perdeu-as ontem.
Também os autocratas, empresários do regime e lambe-botas que pensavam que o povo de Hong Kong iria às urnas para condenar as manifestações dos últimos meses e as disrupções à normalidade da vida quotidiana perceberam agora que não tinham razão, atentos os resultados alcançados.
O campo dos partidos pró-Pequim, que em 2015 obtivera 54,61% dos sufrágios, foi absolutamente esmagado pelos resultados obtidos ontem pelas forças do campo pró-Democracia. Homens como Junius Ho, Michael Tien e Holden Chow não conseguiram ser eleitos. Em Sai Kung um miúdo de 21 anos derrotou o candidato pró-Pequim. Notável. Pelo menos 12 em 18 distritos foram conquistados pela oposição pró-democrática.
O mapa eleitoral de Hong Kong mudou por completo, mesmo em distritos que constituíam bastiões das forças tradicionalistas a derrota foi inevitável, e isto será decisivo para as eleições legislativas do próximo ano, visto que de entre os representantes agora eleitos sairão os futuros candidatos ao Legislative Council.
Para Carrie Lam e o seu governo e para Pequim, que a escolheu e contra todo o bom senso a continua a apoiar, os resultados verificados representam uma humilhação em toda a linha, que volta a colocar em causa a legitimidade do Governo de Hong Kong, os seus métodos, em especial a actuação das suas forças policiais, a protecção dada aos bandidos de branco pelo sistema, a intromissão nas empresas privadas de Hong Kong, e a forma abusiva como tem vindo a ser descaracterizado e interpretado o princípio "um país, dois sistemas" pela actual liderança chinesa.
Quem votou não foram os rapazes e raparigas de 12, 13, 14 e 15 anos que andaram a ser identificados pelas forças da ordem, nem foi a meia-dúzia de vândalos que destruiu e incendiou – a convite da estratégia policial deliberada e provocados por infiltrados –, as instalações do Legco, as estações do MTR ou equipamentos e estabelecimentos conotados com empresas estatais chinesas. Foram os pais e os avós deles, foram os cidadãos maiores e responsáveis de Hong Kong, os que se viram impedidos de ir trabalhar por falta de transporte, os prejudicados pela ocupação dos acessos ao Aeroporto Internacional. Quer dizer, os mesmos cidadãos que anteriormente tinham dado a vitória às forças pró-Pequim. Convém ter isto muito presente.
E importa também sublinhar que um dos grandes vencedores destas eleições, talvez mesmo o maior, nem sequer chegou a concorrer por ter sido ilegalmente impedido de fazê-lo, numa decisão kafkiana e perfeitamente arbitrária. Refiro-me a Joshua Wong. A proibição da sua participação teve um efeito contraproducente e até no círculo onde foi impedido de concorrer o seu substituto foi eleito. Vergonha maior para quem o impediu de concorrer não poderia haver.
Estamos perante um verdadeiro cataclismo, ou um "tsunami de descontentamento" como lhe chamou esta manhã o South China Morning Post. E o caso não é para menos.
Seria bom que perante esta derrota esmagadora, Pequim e o governo de Carrie Lam tivessem a humildade suficiente para perceber a dimensão grotesca dos erros políticos que cometeram ao longo de meses, ignorando a força do clamor popular. O grau de deslegitimação da governança de Hong Kong, a forma como o cartão vermelho foi mostrado pelo povo de Hong Kong, é incontornável.
Quanto a Macau, o próximo Chefe do Executivo também deverá olhar para estes resultados com muita atenção. Ele e os seus apóstolos locais, os campeões das consultas, dos concursos públicos e dos subsídios, e os "patriotas" de ocasião, falantes de português, chinês e "pataquês", se não quiserem seguir o caminho dos seus amigos de Hong Kong.
Não será possível continuar a governar Macau de costas voltadas para os seus residentes, contra a vontade da maioria, esta sim silenciosa, porque nem sequer a deixam ir às urnas, fechando os olhos às negociatas, favorecendo os amigalhaços, os casineiros de vão de escada, as empresas e as associações benquistas à rapaziada local, que depois se condecoram despudoradamente em final de mandato, enquanto casais jovens de residentes locais continuam a viver em casa dos pais, dividem apartamentos minúsculos e contam as patacas de cada vez que vão à praça e ao supermercado, coisas nunca vistas no tempo colonial com muito menos dinheiro.
Na hora do acerto de contas, o Governo Central e o Partido Comunista Chinês não se vão lembrar da bajulação, nem do apoio que antes deu aos visados, durante muitos anos. Ao Man Long, Ho Chio Meng e todos os especuladores "sem terra" das concessões cujas caducidades foram declaradas que o digam.
É melhor começarem a arrepiar caminho, voltando à via justa, que para todos os efeitos não é apenas a legal, mas aquela que sendo legal é ainda ética e moralmente aceitável para a população de Macau.
Actualização: "By noon on Monday, the pro-democracy camp seized 17 out of 18 district councils, taking more than 340 of the 452 seats."
"decoro (ô), s.m. respeito de si mesmo e dos outros; decência; compostura; dignidade; honestidade; vergonha; pundonor; nobreza. (Do lat. decôru-, "que convém")." - Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 6.ª edição
Mas será que é preciso ser arguido, acusado e condenado com trânsito em julgado para ter decoro? E vergonha? E senso? É cada vez mais evidente em cada dia que passa que não há um, dois ou três Partidos Socialistas, mas sim quatro. Há o de José Sócrates, há o dos amigos de José Sócrates, que se confunde com o primeiro em função das ocasiões, há o de António Costa e do Governo, que corre atrás das metas do défice e se esforça por cumprir compromissos com toda a gente e mais alguma, e depois há o dos portugueses que se revêem no PS e que não sabem em que PS hão-de confiar.
Oxalá esteja enganado, mas neste momento, se forem todos como eu, quer-me parecer que em nenhum deles. O pior é que nos outros também não se pode confiar.
O relato da Agência Lusa, transmitido para vários órgãos de comunicação social, entre os quais a TSF, sobre o que se passou com a elaboração da acta relativa à XIV Conferência de Ministros da Justiça da CPLP, designadamente sobre o desacordo final (quem diria!) quanto à sua redacção e a escolha da grafia "oficial", representa, lamentavelmente, bem mais do que aquilo que à primeira vista possa parecer. À partida não está em causa, apenas, uma simples discordância sobre a forma de grafar um termo com um sentido comum a todos os países lusófonos. Uma acta é um documento em que se descreve e regista aquilo que de relevante se passa numa reunião. Em causa está, desde logo, por simples falta de vistas, teimosia, estupidez e ausência de sentido de Estado, digo eu, mais um acto (com "c") de desprezo para com Portugal - leia-se o seu poder político legítimo - por parte dos seus pares na CPLP.
O simples facto de todos os funcionários públicos em geral, os militares, os magistrados e os diplomatas, como servidores públicos que são, serem obrigados a cumprir com todas as instruções que um poder político que não sabe conjugar o verbo haver lhes dita, conformando-se com o que de mais tolo e contra a natureza das coisas lhes é imposto, já de si seria triste. Que numa matéria como a da língua se chegue perante os demais Estados que compõem a CPLP a passar por um tão grande absurdo, sujeitando-se um ministro da Justiça de um Estado soberano desde a Conferência de Zamora, em 1143, a ter de ouvir o que, com toda a razão, lhe foi recordado pelo representante de Angola, assume contornos de humilhação política. Era perfeitamente evitável que Portugal tivesse de passar pela situação de lhe ser recordado que o Acordo Ortográfico não foi ratificado por Angola, também ele um estado soberano lusófono, não podendo por isso mesmo ser utilizado no documento em questão. Esse já não foi um acto de humilhação do País e de desprezo pelo seu poder político. Aí, e isso é que é mais grave, é já a própria língua portuguesa, aquela que recebemos dos que nos precederam e que os angolanos agora defendem, que está a ser objecto de humilhação e chicana com a conivência do Governo português.
A notícia da Lusa não nos diz qual terá sido o papel do representante de Portugal nesta contenda. Nem se ao representante da Guiné-Equatorial, um novo Estado "lusófono" ditado pela mais mercenária e subserviente "diplomacia económica", por algum momento passou pela cabeça apontar a solução castelhana de se utilizar o substantivo feminino "acta" (do latim acta) para resolver a disputa que culminaria com a caricata, mas salvadora solução de compromisso proposta por Cabo Verde e que serviu para evitar maior vergonha, de se usar num texto internacional a grafia do novo Acordo Ortográfico "como base e, em cada caso, a grafia pré-Acordo Ortográfico, entre parêntesis", numa verdadeira salganhada linguística da qual só Portugal sai mal.
Quando numa cimeira entre Estados lusófonos se chega à situação de que a Lusa dá conta, talvez seja este o momento de se voltar a perguntar aos que em Portugal, à viva força e contra todas as evidências, se afadigaram a impor o (des)Acordo Ortográfico de 1990, se a solução a que se chegou não recomenda um apelo à inteligência e ao bom senso, antes que este tipo de danos, que não são colaterais, se multiplique. Para vergonha de todos os cidadãos que em todo o Mundo se expressam na língua que lhes é mais querida, naquela que lhes revela os afectos, as paixões e as lágrimas da saudade, e que os torna dignos da herança daqueles que, como Vasco Graça Moura ou Maria Lúcia Lepecki, dedicaram toda uma vida a lutar pela divulgação e pela dignidade do único e verdadeiro património que a História nos legou.
Património que ao longo dos séculos permitiu a convivência - e o amor - entre povos das mais diversas origens, ultrapassando as suas minúsculas fronteiras naturais para se enraizar mundo fora sem que para tal se trocassem os substantivos pelas formas verbais. Tudo bem longe da paupérrima visão e dos despachos da casta de amanuenses que há séculos ocupou o Terreiro do Paço, convencida de que a decência e a respeitabilidade de uma nação milenar se compram com euros, submarinos, computadores e bandeiras chinesas na lapela dos casacos.