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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Um senhor reformado, apresentado como ex-Director of Public Prosecutions de Hong Kong, cargo para o qual fora nomeado em Outubro de 1997, já depois da transferência da soberania de Hong Kong do Reino Unido para a China, e no qual se manteve durante uma dúzia de anos, veio a Macau, a convite, ao que parece, da British Chamber of Commerce, fazer a defesa da versão patriótica do sistema judicial de Hong Kong, permitindo-se dizer, contra toda a propaganda dos esbirros do imperialismo, que a Comissão de Direitos Económicos e Sociais das Nações Unidas está mal informada sobre a actual situação de Hong Kong.
Trata-se de uma evidência em relação à qual o senhor Cross fez o favor de vir graciosamente a Macau esclarecer uma plateia de ignaros. É, pois, pena que o Governo de Hong Kong não tivesse enviado o senhor Cross a Genebra para fazer a defesa do actual sistema judicial e da sua independência.
O senhor Cross seria uma pessoa especialmente habilitada para fazê-lo, visto que há vários anos se dedica a subscrever os pontos de vista de quem depois da reforma lhe dá espaço nas páginas do China Daily. Este ano já ali escreveu 14 artigos em menos de 11 semanas, e só em 2022 escreveu 69, o que dá uma média superior a 1 por semana. Há mesmo alturas em que o senhor Cross escreve em dias seguidos, coisa que eu não consigo fazer em nenhum jornal, nem mesmo no Público.
O China Daily, onde também há alguns sujeitos de Macau conhecidos pela verticalidade das suas posições que têm a honra de ali publicar, é um referencial da independência jornalística em Pequim, em Macau e em qualquer latitude onde seja lido.
Não admira, por isso mesmo, que depois de ter feito uma acérrima defesa da Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, afirmando que esta respeitava a independência judicial – ao contrário de muitos dos advogados e juízes de Hong Kong que, certamente, tal como a ONU, estavam mal informados e por isso mesmo desfilaram pelas ruas de Hong Kong contra a lei de extradição, repetindo a graça em 2019 –, o senhor Cross, cuja cruz será bem mais leve do que o peso da sua crescente credibilidade, tenha recebido a Bauhinia de Prata em 2010 e a Bauhinia de Ouro em 2021.
Se continuar assim, e oxalá que consiga manter a lucidez e o bom senso, o senhor Cross ainda será candidato, dentro de menos tempo do que aquele que se poderia imaginar, a receber a Grand Bauhinia.
Já os de cá, os que assistem às suas prédicas nos eventos da British Chamber of Commerce, terão de continuar a porfiar. Talvez escrevendo com a regularidade do senhor Cross no China Daily, ou trazendo-o mais vezes a Macau.
O senhor Cross poderia ser especialmente útil à RAEM na formação de novos magistrados e advogados. O Grande Lótus da RAEM não está, por isso, fora de questão. E sempre seria melhor de que andar com um saco de enchidos às costas.
A decisão das autoridades de Hong Kong de obrigarem crianças de tenra idade diagnosticadas com Covid a terem de fazer quarentenas afastadas dos pais e ao cuidado de estranhos é de uma desumanidade e crueldade a toda a prova.
Impor aos pais a separação de uma criança de onze meses, permitindo-lhes apenas um contacto por telemóvel, três vezes ao dia, como se de um comprimido se tratasse, raia o absurdo, aumentando o desgosto e a insegurança da criança, que para todos os efeitos está a cumprir uma "pena" afastada dos pais numa idade em que mais carece deles e em que o sentimento de impotência e desprotecção é total.
Não sei se uma situação como a que está a ser vivida pela criança não lhe deixará sequelas. Não tenho meios nem qualificações para o poder avaliar. Mas sei, porque as vi, que as imagens divulgadas pela CNN, de onde apenas ressalta o drama da criança e dos pais, são de uma grande violência, revelando a total insensibilidade, para já não dizer, neste caso específico, a total anormalidade de quem decide a aplicação de uma política de tolerância zero a uma criança de onze meses.
Não acredito que tal seja do interesse da criança, nem para sua protecção e bem-estar.
Além de que uma decisão dessas violará, estou em crer, de forma grave os instrumentos internacionais para protecção dos direitos da criança, designadamente a Convenção da UNICEF, também em vigor em Hong Kong.
(créditos: El Pais, Miguel Candela/EFE)
Dois anos depois do aparecimento em Wuhan do vírus da Covid-19, e de uma apertada política de tolerância zero, Hong Kong enfrenta a sua pior vaga.
Os casos são aos milhares, diariamente, já desencadearam o auxílio do interior do país, motivaram o adiamento do calendário para escolha do próximo Chefe do Executivo, e têm gerado múltiplos apelos à vacinação por parte das autoridades locais e do próprio Governo central, incluindo do Presidente Xi Jinping, que veio lembrar ser a tarefa primordial de Carrie Lam o controlo da situação.
Curiosamente, esta vaga acontece num momento em que as fronteiras continuam fechadas, não há ligações por barco a Macau há dois anos, os movimentos pró-democracia de Hong Kong foram entretanto desmantelados, os seus líderes processados, silenciados, presos ou "exportados" para um qualquer local de exílio, o sistema eleitoral foi mudado e o Legislative Council só tem patriotas. Aparentemente estariam criadas todas as condições para que o combate à pandemia se tivesse processado de uma forma simples, segura e eficaz.
Porém, aquilo que se verifica é que esse combate está a revelar-se um fracasso. É verdade que um bandido à solta, um perigoso estudante do movimento pró-democracia ou um assaltante de ourivesarias não é o mesmo que um vírus, em qualquer uma das suas variantes, e o que serve para apanhar os primeiros não se aplica ao último. Mudar o sistema eleitoral também não serviu para ajudar a combater o vírus.
Não obstante, a semana que findou mostrou que o encarceramento social e cívico, o cerceamento de direitos e liberdades e uma política de tolerância zero, ou aparentada, que nem sequer poupou as desgraçadas das trabalhadoras filipinas, sempre com o aval do Governo central, não impediu o reaparecimento do vírus e o espectáculo deprimente dos últimos dias. As políticas de combate à pandemia, e controlo desta, impostas ao longo destes anos provocaram um rombo fortíssimo na economia e no tecido social, gerando inclusivamente problemas de natureza psicológica em muitos residentes.
Ver uma cidade como Hong Kong, rica e poderosa, uma das mais importantes praças financeiras da Ásia, em tempos uma referência mundial, actualmente governada exclusivamente por patriotas, ser chamada à atenção pelo Presidente Xi face às imagens de caos e incapacidade dos seus serviços de saúde, mostrando pacientes na rua em dias frios de Inverno, como se de uma metrópole do terceiro-mundo se tratasse, é uma tristeza que há alguns anos seria inimaginável. Mas é um bom sinal do desgoverno e do desacerto das políticas. Não é por se apertar a malha que se melhora a governação, ou os impreparados se tornam capazes.
Com a autonomia e o governo pelas suas gentes há muito hipotecado pela suas elites, seria bom que também em Macau, onde só agora se acordou para a vacinação, e o sinos tocaram a rebate, se ponha os olhos no que se está a passar em Hong Kong.
Se aqui não se for capaz de ver o filme, continuando-se à procura de "turistas" para encherem os hotéis de Macau e a distribuir medalhas a eito aos amigos, há quem se arrisque a ser declarado incapaz para todo o serviço.
Os custos estão a ser demasiado elevados e persistentes sem qualquer garantia de recuperação a curto ou médio prazo. E uma coisa é certa: na hora de apreciação da governança o critério também será de tolerância zero. E não apenas por parte dos residentes de Macau.
(créditos: Felix Wong/SCMP)
O encerramento do Apple Daily, um jornal tablóide de Hong Kong fundado por Jimmy Lai em 1995, que hoje ocorreu com a publicação da sua última edição impressa marca o fim de uma era.
O Apple Daily nunca foi uma referência em termos de jornalismo sério, isento e de qualidade, tendo sido muitos os seus alvos ao longo dos anos. Nem por isso deixou de ser um dos jornais mais lidos e vendidos por todas as histórias que publicava, da política ao social.
O reforço da componente policial e autoritária do regime, imposta a partir de 2017, e que previsível e inevitavelmente transbordaria para Hong Kong e Macau, tornaria difícil outro desfecho, o qual terá sido apressado pelos acontecimentos dos últimos anos e a mais do que humilhante derrota eleitoral sofrida pelas forças pró-Pequim nas últimas eleições locais de Hong Kong.
Muitos dirão que o fecho do jornal, praticamente coincidindo com o momento, dentro de dias, em que se celebrará o centenário do PCC, é um serviço à pátria, a Hong Kong e ao jornalismo.
Esta posição talvez também explique o facto do artigo do South China Morning Post – uma sombra da referência que foi –, que noticia o que se passou durante a noite estar incluído numa secção denominada "Law and Crime".
Duvido, no entanto, que seja esse o correcto diapasão.
Nas sociedades onde se pratica o melhor jornalismo e se consegue aceder à melhor informação, também existem problemas de segurança interna e há múltiplos pasquins e tablóides, não me parecendo que seja pela via da proibição, do bullying, da auto-censura e da censura explícita ou da perseguição organizada à sombra do aparelho coercivo que se melhorará a consciência e a confiança das gentes nas instituições, na informação que lhes é disponibilizada e num jornalismo informado e informativo.
Quando o poder político e judicial não conseguem combater os eventuais abusos da liberdade de imprensa, ou os excessos de alguma má informação e propaganda que, a seu ver, seja perniciosa para a comunidade, recorrendo aos meios ao seu dispor num Estado de Direito, e necessitam de criar leis de excepção e de entrar pelos caminhos da repressão policial pura e dura, da censura e do encerramento de órgãos de informação como justificação para as suas "cruzadas de defesa da lei e da legalidade", é sinal de que estão profundamente doentes.
Não acredito que as multidões de hongkongers que durante horas a fio, ainda durante a noite, fizeram fila para poderem adquirir um último exemplar do jornal, como antes desenvolveram campanhas de apoio quando as suas contas foram congeladas, fossem todos leitores ou assinantes do Apple Daily. Longe disso.
Essas pessoas quiseram apenas dar o sinal de que não será pela via da censura, do silenciamento e do encerramento de órgãos de imprensa, da prisão dos seus proprietários e responsáveis, que conseguirão matar o "vírus" da liberdade de imprensa e as suas múltiplas variantes.
Poderão adormecê-lo temporariamente, escondê-lo mesmo, é certo, mas aquele continuará a medrar na clandestinidade da consciência e da casa de cada um, transmitindo-se aos seus filhos. Como uma espécie de formiga-branca que vai corroendo por dentro os alicerces do aparelho repressivo. Sem que os amanuenses se apercebam. Sem se dar por nada.
(Photograph: Biontech Se Handout/EPA)
Interrompo a ausência dos últimos dias chamando a vossa atenção para três curtas notas, que são ao mesmo tempo evidências do contraste entre a actuação do novo inquilino da Casa Branca face ao seu antecessor, à retórica confrontacional de Pequim e aos abusos que estão a ser cometidos em nome do rule of law na RAE de Hong Kong.
A primeira diz respeito à decisão ontem revelada pela Embaixadora dos Estados Unidos junto da Organização Mundial do Comércio (WTO no acrónimo inglês), Katherine Tai, de que o Presidente Biden deu instruções no sentido da suspensão das protecções da propriedade intelectual, de maneira a que possam ser disponibilizadas para todo o mundo, ricos e pobres, as patentes das vacinas da COVID-19, no que constitui um passo extraordinário no combate à pandemia.
Mas mais do que isso, os EUA não estarão apenas a partilhar patentes e tecnologia. Este é o culminar dos primeiros cem dias de governo do novo presidente, a pérola que brilhou quando se abriu a ostra.
Não sei qual será o efeito prático deste movimento. Estou, todavia, convicto de que este é um sinal muito forte no sentido do desanuviamento da tensão internacional, uma ajuda consistente aos países menos desenvolvidos e a transposição de um discurso inflamado e balofo para acções que podem fazer a diferença, ajudando os EUA a limparem a má imagem internacional deixada por Trump e a sua pandilha de cantinfleiros.
Em sentido oposto, o discurso cada vez mais belicista do mais alto responsável chinês. Pode ser que seja apenas um discurso para dentro e destinado a impressionar os seus fiéis, Taiwan e Hong Kong, em ano de grandes comemorações internas, embora seja difícil acreditar nisso.
A retórica da invencibilidade não é própria de quem defende a paz e uma coexistência pacífica e cooperante com todas as nações e povos do mundo, em especial se for acompanhada daquelas conferências de imprensa surreais dos porta-vozes do MNE chinês, plenas de ameaças e acompanhadas de exibições de força no Mar do Sul da China e no estreito da Formosa.
A forma como Pequim reagiu anteriormente a um simples pedido feito por Canberra de realização de uma investigação independente ao surgimento da COVID-19, que viria depois a permitir no âmbito da OMS/WHO, e o modo como agora suspendeu toda a cooperação com a Austrália a propósito do China-Australia Strategic Economic Dialogue, revela a utilização de dois pesos e duas medidas.
Iguais reacções não surgem quando em causa estão decisões da União Europeia ou dos EUA que colocam em crise interesses chineses, o que mostra como é fácil ser contido com os mais fortes e desabrido com os mais pequenos. Ou como se as razões de segurança nacional, quando seriamente invocadas, e não com uma cortina para outro tipo de actuações à margem do justo e do legal, constituíssem um exclusivo de um qualquer país.
Quando começar a fase da contenção de danos talvez seja tarde para se alterarem os sentimentos que, desgraçadamente, amiúde começam a surgir em diversos países relativamente a tudo que traga a marca identitária chinesa. É mau para a imagem do país, é mau para o seu povo, é mau para o desenvolvimento e o equilíbrio global.
Uma última nota para a decisão proferida pelo District Court de Hong Kong de aplicar penas de prisão a alguns activistas. Isso seria expectável tendo presente a natureza do regime, tudo o que aconteceu nos últimos dois anos e a forma desastrada como as autoridades locais e o Governo central lidaram com o problema.
Cada um fará a sua leitura, alguns apenas aquela que será compatível com os seus interesses pessoais.
Em todo o caso, não deixa de ser preocupante que um tribunal se permita, independentemente de se poder discutir se foi um motim ou não, condenar afirmando expressamente que não existe qualquer prova de que os arguidos tenham desempenhado qualquer papel efectivo no tumulto (riot).
Se a isto se somar a dispensa de uma jornalista por colocar perguntas difíceis em conferências de imprensa, começa-se a ter o filme completo da extensão da substituição do rule of law pelo rule by law.
1. O Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional aprovou em Pequim (30/03/2021), por unanimidade, uma reforma do sistema eleitoral de Hong Kong (HK). Há quem diga, sem razão, que esta reforma altera o processo que vinha a ser seguido desde há mais de duas décadas no sentido de aumentar a representatividade dos principais órgãos políticos – Chefe do Executivo (CE) e Conselho Legislativo (Legislative Council, LC) – e de conferir-lhes uma acrescida legitimidade política, do tipo da existente nos países com sistemas demo-capitalistas-liberais.
2. Para se perceber todo o alcance das reformas que se irão agora concretizar, convém fazer uma pequena digressão histórico-cronológica sobre a evolução recente do sistema político de Hong Kong. Por sistema político entende-se aqui, sem demasiadas explicações e na esteira do conceito desenvolvido por Easton, a partir de 1950, e aprofundado, entre outros, por Parsons, Almond e Deutsch, a forma como se estruturam, articulam e interagem os órgãos de poder de uma comunidade visando a sua gestão, a afectação imperativa de valores e a prossecução dos seus interesses. Como ensinou Nohlen, a noção de sistema político está intimamente ligada às formas de dominação, aos tipos de regime (ex: democracia ou ditadura), aos sistemas de governo (ex: parlamentar ou presidencial), às formas de representação social e política e às relações de poder entre o governo e as diversas forças.
3. Em 18/7/1984, o que era ao tempo o governador de Hong Kong, nomeado pela potência colonial, Edward Youde (1982-1986) apresentou um documento chamado Green Paper on the Further Development of Representative Government in Hong Kong. Este documento foi aprovado escassos quatro meses antes da assinatura da Declaração Conjunta Sino-Britânica sobre o Futuro de Hong Kong (19/12/1984). O objectivo era desenvolver um sistema de governo específico de Hong Kong, que representasse a visão e vontade da sua população, permitindo que o governo fosse directamente responsabilizado (accountable) perante os governados, o que até aí nunca acontecera.
4. Em consequência da aprovação desse documento, em 26/9/1985 tiveram lugar as primeiras eleições por sufrágio indirecto para o LC, que nessa altura era composto por 57 membros (24 eleitos indirectamente, a que se juntavam 11 membros do governo colonial, entre os quais o próprio governador, e mais 22 nomeados).
5. A partir daqui, e até à promulgação da Lei Básica de HK, nunca mais houve entendimento sobre o aprofundamento ou continuação da reforma eleitoral (HK já estava em período de transição para a soberania chinesa) apesar de alguns esforços que nesse sentido foram realizados – White Paper, 1987; OMELCO Consensus que propunha eleições por sufrágio directo e universal para 1/3 dos membros do LC em 1991, a que seguiria a escolha de 50% dos seus membros em 1995, até se atingir o total de 60 membros em 2003.
6. Em 1989 acontece Tiananmen e após dois meses de negociações, em 1990 (a Lei Básica de HK é aprovada na sua versão final em 4/4/1990), chega-se a um entendimento no sentido da eleição para o LC de 18 membros por sufrágio directo (um homem, um voto) em 1991. Esse número cresceria para 20 em 1995.
7. Chris Patten, que sucedeu ao transitório Acker-Jones, no seu discurso de Outubro de 1992 anuncia que o Reino Unido e a China acordaram que a democracia devia ser levada adiante e que a legislatura devia ser totalmente formada a partir de eleições (não necessariamente em 100% por sufrágio universal e directo). Em 1993 é eleito o primeiro presidente do LC que não era também governador.
8. Patten quis ir mais longe. O debate gerado foi intenso e esbarrou na oposição do Governo chinês, que invocou haver violação da Lei Básica no pacote de reformas proposto. Não foi possível obter um consenso quanto às eleições para os District Boards de 1994 e para o LC de 1995. Apesar disso, aprovaram-se as leis de 24/02/1994 (Electoral Provisions – Miscellanous Amendements (No. 2), Bill 1993) e de 30/06/1994 (Legislative Council – Electoral Provisions Amendment Bill 1994), que iriam permitir a realização das primeiras eleições e que todos os 60 membros do LC fossem eleitos (e não objecto de nomeação). Destes, 20 eram eleitos pelos círculos territoriais, 30 pelas 29 functional constituencies, e 10 sairiam da eleição no Election Committee, o qual era composto por District Board Members, Urban e Regional Councillors. Andrew Wong tomou possa como presidente do LC em 11/1/1995.
9. A partir daqui, e com menos de dois anos até à transferência da soberania para a RPC, assiste-se em 1996 à escolha do primeiro CE por um colégio de 400 membros, que seria depois alargado para 800 em 1998. Em 2000, Donald Tsang, entretanto caído em desgraça, propôs o aumento para 1600, no que não foi bem-sucedido, pelo que só em 2012 é que o número de membros é alargado para 1200. Em 2014 a reforma proposta pelo Governo é chumbada no LC, sendo agora aprovada a reforma de 2021 que vai elevar o número de membros da Comissão Eleitoral para 1500.
10. Em relação ao LC, na 3.ª legislatura (2004-2008), eram 30 os eleitos por sufrágio directo e 30 os resultantes do indirecto, e na 5.ª, pelas leis de 2011, a proporção manteve-se (50%) passaram a ser 35 membros por cada um desses universos. O presidente do Legco, Jasper Tsang, no Annual Report de 2009/2010, escreveu que aquela “was the first time since the Reunification in 1997 that Hong Kong had taken a step forward on its path to greater democracy”. And now, following this milestone, the election of the fifth Chief Executive in 2017 may be implemented by the method of universal suffrage, and after the Chief executive is selected by Universal Suffrage, the election of the Legislative Council may be implemented by the method of electing all the members by Universal Suffrage.” (cfr. Legislative Council, Then and Now: A Journey to the New Complex, 2012, p. 83).
11. Se olharmos para a evolução verificada até 2012, e ainda para a proposta de 2014, houve sempre a preocupação de que o alargamento do universo eleitoral tivesse de alguma forma correspondência com o que está consignado na Declaração Conjunta Sino-Britânica (Joint Declaration) e na Lei Básica de HK. Aparentemente assistimos agora um alargamento do universo que irá escolher o próximo CE. Mas será mesmo assim?
12. O artigo 5.º da Joint Declaration garantia que “[t]he socialist system and policies shall not be practised in the Hong Kong Special Administrative Region, and the previous capitalist system and way of life shall remain unchanged for 50 years.” Os artigos 45 e 68 da Joint Declaration referiam ser o último desiderato a escolha por sufrágio universal tanto do CE como dos membros do LC, sendo que no caso da eleição do CE a escolha dos candidatos far-se-ia por uma comissão amplamente representativa e de acordo com uma escolha efectuada por métodos democráticos.
13. Em Ciência Política, e para o cidadão comum, sufrágio universal tem um sentido unívoco. E embora a democracia possa assumir diversos modelos, na prática todos sabem o que isso significa: um homem, um voto. Isto não tem nada de socialista, nem sequer é aparentado com o “centralismo democrático” que está na Constituição chinesa.
14. Quando negociou com o Reino Unido, a RPC sabia exactamente qual o sentido dessas palavras e quais as consequências práticas da sua inclusão nesses dois documentos, tanto mais que a outra parte era, e é, internacionalmente reconhecida como a “mais antiga democracia do mundo”, referindo-se essa antiguidade à era moderna e aos critérios gerais que academicamente definem uma democracia.
15. Há quem diga que o que agora aconteceu foi que o Comité Permanente da APN violou de forma grosseira os compromissos assumidos, cujo respeito havia sido assegurado aos povos da China e do Reino Unido. A propaganda oficial e oficiosa está a esforçar-se por fazer passar a ideia de que não foi assim. Não sei se conseguirão.
16. De lado se deixam as alterações introduzidas pela Lei de Segurança Interna, e a sua aplicação retroactiva, certamente em obediência a uma versão socialista do rule of law e dos princípios básicos do direito penal universal, para nos atermos apenas às mudanças aprovadas há dias.
17. Estas visaram essencialmente reduzir de forma drástica o número de lugares atribuídos a eleitos locais pelo sufrágio universal, para se aumentar a representação no LC e na CE dos “patriotas”, criar-se um novo cargo na Comissão Eleitoral que irá escolher o CE e um órgão com poderes de veto (Candidate Eligibility Review Committee) onde têm assento os escolhidos pelo regime socialista que vão decidir quem são os “patriotas”, para o que contarão com o contributo da unidade policial de segurança nacional.
18. Os eleitores individuais verão o seu peso reduzido nas escolhas que vierem a ser efectuadas para o CE e para o LC. Até agora, 50% dos membros do LC resultavam de eleições por sufrágio universal e directo. Agora, como os pan-democrats venceram categoricamente as últimas eleições distritais, a percentagem de eleitos por sufrágio universal para o LC passa dos actuais 50% para pouco mais de 20% (80 membros, sendo 40 eleitos pelo Election Committee, 30 pelas Functional Constituencies e 20 pelas Geographical Constituencies, isto é, por sufrágio universal, sistema de lista e representação proporcional). Um ganho de representatividade notável, dirá Carrie Lam.
19. Também os 117 lugares de membros da Comissão Eleitoral, que resultavam antes de eleições livres e democráticas, serão eliminados e substituídos por 156 membros de entidades municipais e aparentadas dominadas pelo campo pró-Pequim e de escolha burocrática. Mais de 80% dos membros da Comissão Eleitoral serão escolhidos por nomeação ou voto corporativo, em vez de serem o resultado da escolha de cada um dos eleitores recenseados. Ou seja, desde 1997 que a Comissão Eleitoral não terá um número tão reduzido – é o mais baixo de sempre – de escolhidos por sufrágio directo e universal. Uma conquista “patriótica”.
20. Há outras mudanças igualmente significativas como o facto de algumas das decisões que puderem vir a ser tomadas escaparem a uma avaliação judicial e de haver conceitos vagos (como o tal “patriotismo”) que poderão ser livremente manipulados ao sabor das circunstâncias, no que será sem dúvida mais um factor acrescido de segurança para quem manda.
21. Diz Carrie Lam que não se deve ter por assumido que todos os “pan-democratas” sejam anti-patrióticos (cfr. SCMP, 31/03/2021). Pois não. Para se fazer essa triagem haverá uma comissão, cujos membros serão escolhidos a dedo para não haver tentações, e que dirá quem são os patriotas aceitáveis. Mais democrático era impossível.
22. Naturalmente que com este cenário teremos de estar quase totalmente de acordo com Deng Zhonghua, vice-director do Gabinete do Conselho de Estado para os Assuntos de Hong Kong e Macau, quando afirma que no novo sistema o povo será livre de continuar a criticar o governo. E que também com Zhang Yong, vice-presidente da Comissão da Lei Básica no Comité Permanente da APN, quando esclarece que será muito mais fácil, depois, introduzir o sufrágio universal. Depois.
23. Esta, aliás, já era, em 23/05/2020, a opinião de um articulista dos cafés de Macau quando escrevia que com a aprovação da Lei de Segurança Nacional para HK “estarão finalmente criadas as condições formais para a realização do almejado sufrágio universal e a realização plena da Lei Básica, no âmbito do segundo sistema, na medida em que esta legislação excluirá a possibilidade de actos de secessão e traição à Pátria, não se justificando, portanto, o condicionamento na apresentação de candidatos”.
24. Como por aqui se vê, as condições formais, e também substanciais, estão criadas para a democracia e o sufrágio universal funcionarem em HK. “Democracia e sufrágio universal de tipo socialista”. Evidentemente. Como o “queijo tipo serra” ou o “carapau tipo lagosta”. Porque todos sabemos que para um verdadeiro “patriota” o poder não está nas urnas, no voto popular, mas sim na ponta da espingarda (“political power grows out of the barrel of a gun", escreveu Mao em Problems of War and Strategy).
25. E é muito mais fácil a democracia (tipo socialista, tipo popular ou tipo nacional-socialista) funcionar depois de se proibirem os partidos, de se prenderem os “anti-patriotas”, de se decapitar a oposição democrática e controlar os jornais e o órgão legislativo, reduzindo a escolha de eleitos por sufrágio directo e universal. Joseph Stalin ou Ceaucescu não deixariam de aplaudir este aprofundamento democrático e aumento de representatividade do segundo sistema. O eloquente Sérgio Sousa Pinto também irá exultar da próxima vez que jantar com os patriotas que o convidam. Eu só estranho é que com tanta democracia ainda assim seja necessário condicionar a apresentação dos candidatos ao crivo de uma comissão de patriotas.
26. Apesar disso, esta reforma eleitoral comporta riscos. E ficou incompleta. Uma caneta e um boletim de voto nas mãos de um tipo sozinho continuam a ser um perigo, dirão os ortodoxos. Eu concordo. Ainda que sejam uma minoria pode haver sempre alguém que se lembre de usar um lápis de cera. E aí os riscos podem ser maiores e mais largos. E a cores. O ideal seria mesmo proibir os lápis de cera.
A segurança assim o impõe. Compreende-se.
Por razão de protecção da saúde ou de protecção da segurança nacional.
Nos dias que correm é tudo uma questão de segurança. Ou de insegurança. Depende da perspectiva do que se quer proteger.
Uma fotografia não é uma arma de subversão. O medo é. E tem muita força.
Com a aproximação da data para as chamadas “Duas Sessões”, nome que é dado às reuniões que ocorrerão em Março próximo, em Pequim, da Assembleia Popular Nacional e da Comissão Política Consultiva do Povo Chinês, começámos a assistir a um conjunto de movimentações e tomadas de posição, por parte de alguns actores secundários deste complicado puzzle em que vivemos, visando a marcação da agenda e fazerem prova de vida junto da elite dirigente da RPC e do PCC.
Nos últimos dias ouvimos as declarações de Lok Wai Kin, o vice-presidente da AEPDHKM (Associação para o Estudo da Política de Desenvolvimento de Hong Kong e Macau), produzidas num seminário sobre o princípio “um país, dois sistemas” e a uma estação de rádio; assim como de Xia Baolong, director do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau no Conselho de Estado, e também de Han Dayuan, um professor de Direito da Renmin University. Todas estas declarações afiguram-se particularmente importantes, atento o eco que lhes foi dado pelo China Daily.
E o que dizem eles? Em resumo, que só patriotas podem governar Hong Kong e Macau, querendo com isso dizer que a aplicação prática do princípio “um país, dois sistemas” exige que o poder político das duas Regiões seja exercido em exclusivo por patriotas.
Eu confesso que estou de acordo com a ideia-chave e penso que o princípio de que o poder político deve ser exercido por patriotas deve ser de aplicação universal. Isto é, considero que todos os países, democráticos, aparentados e não-democráticos devem ser governados por patriotas. E com patriotismo.
O problema está em saber, já que a lei não o define, quem são os patriotas e quem é que irá defini-los. E, também, tendo-os definido, esclarecer se existirá uma lista com os seus nomes de onde se fará a escolha dos patriotas à medida que os lugares forem vagando ou precisarem de ser preenchidos. Seja por criação de um novo órgão, seja por velhice, falecimento, violação da disciplina do partido, pura incompetência, incompreensão do princípio “um país, dois sistemas”, falta de subserviência ao líder, ou qualquer outra razão válida de acordo com aqueles que têm sido os cânones vigentes.
As dúvidas acentuam-se quando olhamos para os actuais sistemas políticos de Hong Kong e Macau, tal como foram desenhados e consagrados nas respectivas Leis Básicas, por parte da Assembleia Popular Nacional, no respeito integral pela Constituição chinesa e os acordos firmados com o Reino Unido e Portugal.
É que até agora, tanto quanto sei, não houve um Chefe do Executivo nas duas regiões que não fosse escolhido com o apoio do Governo Central; cuja posse não lhe tivesse sido dada pelo mais alto magistrado do Estado chinês; e que não tivesse jurado defender a lei fundamental e os dispositivos de consagração das autonomias de cada uma dessas regiões. O mesmo se diga quanto aos membros dos respectivos governos.
E, no entanto, o que se viu ao longo destas duas décadas?
Bom, o que se assistiu foi a um reforço da componente de intervenção local nos dois lados do delta do Rio das Pérolas, num período inicial, ao qual sucedeu o aparecimento de forças políticas que manifestaram a sua preocupação com o rumo que as governações iam tomando, fruto da inépcia e dos sucessivos escândalos, com a má gestão e a corrupção à cabeça, que levou à prisão de altos dirigentes – e que não terá levado a mais porque a imagem seria ainda bem pior –, e a um decréscimo da qualidade de vida das populações, do seu bem-estar, dos sistemas de saúde e de transportes herdados, da qualidade do ar e, entre outras coisas, ainda, em razão do desrespeito por promessas anteriormente feitas.
Todos temos uma noção do que seja o patriotismo em termos genéricos. Isto é, o amor à pátria, a qualidade de quem é patriota. Coisa diferente são os que se alardeiam como sendo patriotas, que na prática são, efectivamente, uns patrioteiros.
Penso que este último ponto tem sido objecto de grande confusão. Seria bom, por isso mesmo, que se aproveitassem as reuniões que terão lugar em Pequim, para se esclarecer o que se entende por ser patriota. Fazer essa definição em termos práticos e consistentes com a Constituição chinesa e as Leis Básicas de Hong Kong e Macau é uma exigência natural.
Porém, o que eu aqui gostava de perguntar é porquê, e de onde nasceu essa vontade de vincar de forma tão acentuada, neste momento, essa necessidade de afirmação patriótica.
Se a aplicação do princípio “um país, dois sistemas” tem sido um êxito, se estas duas dezenas de décadas foram um sucesso, de tal forma que o Presidente Xi reafirmou por diversas vezes a excelência do princípio e da governação, enaltecendo os sucessos das Regiões Administrativas Especiais, sem prejuízo de aqui e ali ir sugerindo ajustes e apontando aquela que em seu entender seria a linha justa, qual o motivo que leva esta gente a manifestar, tão tardiamente, em voz alta, a necessidade de se ter patriotas a exercerem em exclusivo o poder político das duas regiões?
Quererão com isso dizer que até agora as Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e Macau não foram governadas em exclusivo por patriotas? Então Tung Chee-Hwa, Ho Hau Wah, Chui Sai On, C. Y. Leung e Carrie Lam, por exemplo, não foram escolhidos por serem patriotas? E os seus governos não eram formados por patriotas? E não foram todos objecto dos maiores encómios e condecorações oficiais?
Ou será que se está a querer dizer que essa gente foi pouco patriota? Que lhes faltou patriotismo na governação e na concretização do princípio “um país, dois sistemas”?
E os que estão no Conselho Executivo não são todos patriotas? Não o foram sempre? Que razão haverá para que até conhecidos cadastrados, e alguns tipos ligados a negócios menos regulados da área do jogo, se afirmem como “patriotas”; e haja outros que por tal motivo se sentem na mesma necessidade de afirmação enquanto aspiram a obtenção, no futuro, de uma concessão de jogos de fortuna e azar?
Deixando de lado Hong Kong, que não me diz directamente respeito, e focando-me apenas em Macau, o que se pergunta é se tem havido falta de patriotismo por parte das gentes locais, dos seus representantes na Assembleia Legislativa, no exercício de cargos públicos ou na execução de projectos que constituíam, e alguns continuam a ser, apostas do Governo e dos Chefes do Executivo.
Quer-me parecer que em tudo o que tem sido realizado em Macau não tem faltado empenho. Das obras do metro ligeiro às centrais de incineração e ao tratamento de águas residuais, do novo hospital à nova prisão, à gestão das concessões de terras, aos projectos de habitação social e económica, à especulação imobiliária, aos múltiplos e sucessivos ajustes directos, até a empresas sem história e sem obra que vencem consultas, sem esquecer esse escândalo que são as agências de emprego, o que não faltou foi “patriotismo” na decisão.
E o patriotismo tem sido de tal ordem que alguns deputados, querendo sublinhá-lo, até aprovaram uma lei na Assembleia Legislativa para dificultar a vida às empresas e às pessoas que precisam de contratar mão de obra no exterior, uma mais qualificada do que outra, para preencher lugares para os quais não existe gente capaz em Macau e que muitos cidadãos locais que se dizem patriotas não querem ocupar. A coisa foi de tal ordem que quando o Chefe do Executivo foi à Assembleia Legislativa, no Outono, por altura da discussão das LAG, teve que lhes lembrar que tinham sido os queixosos a aprovar a lei anterior, meses antes (23/6/2020), a mesma para a qual já estavam a pedir medidas de excepção.
É certo que alguns se empenharam tanto em fazerem boas escolhas que estão presos. Mas, que se saiba, não foram presos por falta de patriotismo. Ou por não constarem das listas de patriotas. Ou por serem pró-democratas. Foi por outras razões, bem mais comezinhas e que resultam da lei penal vigente, embora muita gente estranhe por que razão tenham demorado tantos anos a acusá-los, e depois haja outros, envolvidos nos “esquemas”, que tenham continuado, e continuem, à solta e a beneficiar do “sistema”.
E também não creio que seja por falta de patriotas em lugares-chave da Administração Pública e da Justiça que os processos não sejam despachados, que haja serviços cada vez mais inócuos, ou que o sistema de justiça funcione mal. É que, olhando para este último, a avaliar pelos anos que alguns levam, e em especial pela obra realizada, seja nos tribunais ou na advocacia, na mediação, na arbitragem ou na organização de seminários, o que não tem faltado são patriotas e acções patrióticas.
Ou seja, o problema, caso as coisas não estejam a funcionar, como parece não estarem há muito tempo, não será por falta de patriotismo, mas talvez devido a uma forma enviesada de encarar e manifestar o patriotismo que para si reclamam. Quem sabe se essa manifestação tardia não será fruto da meridionalidade?
E se, além do mais, alguém vê hoje falta de patriotismo onde ele sempre esteve presente, tendo sido sempre os mesmos a gerir e os mesmos a ganharem as adjudicações, então é porque alguém andou a dormir.
Em abono do que venho de escrever, cito o que consta do Volume I da obra “The Governance of China”, do Presidente Xi Jinping: “Macao is maintaining a good development trend, its economy is on a steady ride, its society is harmonious and stable, and its people live and work in peace and contentment”. O que Macau tem agora de fazer não é “patriotizar”, mas antes “think of potential problems in times of peace and made a long-term plan” [Main points of the talk with Fernando Chui Sai On, chief executive of the MSAR, December 18, 2013]. Onde está esse plano?
E se em relação a Hong Kong ainda se escreveu que “we hope that people of all walks of life (…) will build a consensus through down-to-earth consultations in accordance with the Basic Law and decisions of the Standing Committee of the NPC, and lay a good foundation for the universal suffrage for the election of the chief executive” (p. 250), aqui, em Macau, nem eu nem ninguém pede tanto.
Na RAEM, como ainda em 7 de Janeiro pp. o Macau Daily Times noticiava, estamos todos conscientes do nosso papel e do nosso caminho.
Quer-me, pois, parecer, que as chamadas de atenção do referido seminário, e daqueles a quem acima me referi, estão na sua boa fé profundamente equivocadas, decorrendo de uma errada apreensão da natureza dos problemas.
Em causa não está, nunca esteve, o patriotismo das gentes locais ou a sua lealdade às instituições, à Constituição da RPC ou às Leis Básicas.
Determinante foi antes, para a situação em que estamos, a falta de patriotismo de muitos dos dirigentes no exercício das suas funções, bem como daqueles a quem foram atribuídas funções de responsabilidade sem nunca terem tido a mais singela manifestação de patriotismo, nem para com Pequim nem para com as gentes locais, quando se tratava de defender os seus próprios interesses face ao interesse colectivo.
E este problema, como bem se compreenderá, não se deveu a falta de manifestações de patriotismo. Daí os equívocos.
Antes, decorreu da genuína falta dele.
Ao lado de muitos outros problemas, como a falta de integridade ética e moral, a ausência de carácter ou a viscosidade intrínseca herdada dos tempos coloniais, a que por economia de espaço, pudor e respeito para com a grande nação chinesa e o povo de Macau, de todos os credos, línguas e etnias, me abstenho de desenvolver.
"I ask if last year’s protests have simply accelerated the end of Hong Kong’s semi-autonomy. “Definitely,” he says, adding that if some protesters hadn’t resorted to violence, the national security law would not yet have been imposed. Even in the face of police brutality, he says, non-violence is the only way to maintain the moral high ground and would have been more astute tactically. Still, he adds, it was inevitable that Beijing would eventually take control."
Jimmy Lai, o multimilionário tycoon de Hong Kong, proprietário do Apple Daily, deu uma interessante entrevista ao Financial Times.
O excerto que acima transcrevo é revelador daquilo que muitos pensavam quando em 2019 alguns dos jovens turcos do movimento pró-democracia de Hong Kong resolveram aproveitar a "oportunidade" que lhes foi dada pela polícia e o governo de Carrie Lam para vandalizarem o Legco e atacarem os símbolos nacionais chineses, ao mesmo tempo que havia quem se passeasse pelas ruas com bandeiras dos EUA e do tempo colonial britânico.
A ignorância, a falta de visão e de estratégia política de longo prazo deram cabo do movimento, o que acaba por ser realçado pelas próprias declarações de Lai.
Mas como se viu pelo que aconteceu a semana passada, com a renúncia aos mandatos para que haviam sido eleitos por todos os deputados do Legislative Council, uma vez mais se revelou quer a falta de tarimba política, quer as vistas curtas de quem tomou tal decisão. A lição não foi aprendida.
Tivesse o movimento pró-democracia de Hong Kong tido outros líderes e certamente que não se teria chegado à situação actual.
Os hongkongers, por tudo o que fizeram para preservação da autonomia e da sua identidade dentro da grande China, trazendo para as ruas milhões que pacificamente desfilaram, mereciam mais do que o simples voluntarismo.
“Homenagem aos mártires” foi o título do editorial do Ou Mun após o massacre. “O dia 4 de Junho é o dia mais negro e desumano dos cerca de 40 anos após a implantação da República Popular. Esse dia negro, a história virá a contá-lo para sempre”. O diário, que ainda não estava convencido que linha dura do PCC tinha vencido a ala liberal, escrevia também que “não haverá nada pior que essa trucidação de irmãos de sangue” e que “sem democracia não haverá socialismo”.
Eu sei que não é politicamente correcto dizê-lo; muito menos recordá-lo.
Mas a notícia de hoje, do South China Morning Post, de que há cidadãos de Hong Kong detidos porque ajudaram gente do movimento pró-democracia que queria escapar à prisão, merece muitos comentários. Por todas as razões e mais algumas, e até porque Hong Kong, com todos os seus defeitos e virtudes, foi sempre uma cidade acolhedora, justa e saudável.
De qualquer modo, não obstante já ter sido privado de muita coisa, até mesmo de jantar razoavelmente com os meus amigos, às sextas-feiras, num Clube que muito prezo, gostaria apenas de recordar, já que da memória não me privam, que se a Lei de Segurança Nacional que está em vigor em Hong Kong existisse no pós-4 de Junho de 1989 muitos legisladores de Macau, incluindo uma conhecida e milionária patriota, teriam sido presos se o 4 de Junho de 1989 tivesse sido neste ano de 2020. Como hoje foram detidos cidadãos de Hong Kong apenas por terem dado guarida, eventualmente ajudado, alguns jovens que queriam fugir para Taiwan, território chinês, para continuarem a defender a Lei Básica de Hong Kong.
Convinha que os estafermos (estou a ser brando) que hoje vivem em Macau, alguns com passaporte português como um dos fugitivos, e que aplaudem e/ou se calam perante a vergonhosa perseguição que é feita — e que nunca cá estariam se aquela gente de 4 de Junho de 1989 não tivesse escapado para hoje andarem por aí a receberem subsídios, tirarem fotografias, fazerem exposições e editarem livros nos editores e fundações do regime —, se lembrem disso.
Dos vermes nunca a História se lembrará.
Nem dos idiotas.
E ainda menos dos inúteis que mudaram de passaporte por mera conveniência. Serão os primeiros a cair do trapézio devido ao peso dos bolsos. E a enterrarem-se sem motorista no lodo protegido da "protecção ambiental".
(créditos: Deutsche Well)
A despeito da propaganda, da permanente intimidação e dos discursos ameaçadores, quer por parte de Eric Tsang, quer por parte do Gabinete de Ligação do Governo Central, a população de Hong Kong resolveu participar massivamente nas chamadas eleições primárias do campo pró-democrático para escolha dos seus candidatos para as eleições que se avizinham.
As alterações legislativas provocadas pela entrada em vigor no passado dia 1 de Julho da nova Lei de Segurança Nacional de Hong Kong, redigida e aprovada em Pequim contra o que estava determinado pela Lei Básica, e de um modo juridicamente inconsistente e à revelia dos procedimentos previstos na mini-Constituição de Hong Kong, poderiam constituir um factor de dissuasão a essa participação.
Ao contrário, não foi isso que demoveu a participação e o que se viu foram longas filas de gente, dos mais novos aos mais velhos, em que todos se comportaram de forma ordeira e suportando a inclemência do sol, do calor e da humidade sem curarem das consequências da sua atitude.
É previsível, se o calendário eleitoral for mantido pelo Governo de Hong Kong, que as eventuais candidaturas dos elementos mais conhecidos e mais válidos do campo pró-democrático sejam invalidadas, quer por minudências formais, quer por manobras dilatórias e interpretações destinadas a alargarem o campo de aplicação das normas legais visando suportar decisões previamente tomadas, mas o simples facto de mais de 600 mil residentes terem respondido à chamada, mais do que triplicando a participação inicialmente prevista, são um sinal de resiliência, de determinação e de coragem dos residentes de Hong Kong na defesa das suas convicções e na exigência de uma mudança que lhes tem sido negada antes e depois do colonialismo, assim levando à prática a possibilidade dos cidadãos escolherem de uma forma limpa e transparente os seus próprios governantes.
Não será a nova lei que permitirá concretizar as aspirações de um sufrágio universal pleno e verdadeiramente democrático em Hong Kong, até porque tal nunca teria qualquer sentido num clima de insegurança, permanente ameaça e hostilidade, e depois de quem está no poder tudo fazer para decapitar o campo pró-democrático de maneira a que no dia em que tal fosse possível apenas se pudessem apresentar a votos aqueles que não têm qualquer representatividade junto da população, ou os que estejam de tal modo debilitados que não possam fazer frente aos candidatos tradicionalistas. Um pouco à semelhança do que Putin tem feito na Rússia com a oposição democrática, em termos de manter-se eternamente no poder e melhor controlar os candidatos, as eleições e os resultados.
Em todo o caso, fica o registo da impressionante participação popular independentemente do que possa vir a seguir. E só esse facto já é em si notável pelo que representa num momento tão difícil como é aquele que se atravessa.
A entrevista de Ronny Tong, actualmente membro do Conselho Executivo de Hong Kong, que foi fundador do Civic Party, e que continua o transumante percurso que o levou nos últimos anos do campo pró-democrático para o dos mais alinhados e subservientes seguidores dos diktats do Governo central, é um momento televisivo a não perder.
A conversa que manteve com Stephen Sackur, no programa Hardtalk da BBC, é a prova de que se pode sempre descer mais baixo do que aquilo que se imaginaria possível. E fê-lo com a maior das facilidades.
Procurando sistematicamente fugir às questões simples que lhe eram colocadas pelo entrevistador com o propagandístico discurso oficial que decorou, faz-nos pensar no que leva uma pessoa normal, com uma carreira outrora respeitada, a prestar-se a tal papel.
Incapaz de argumentar e contra-argumentar, não esteve sequer com meias-medidas para disfarçar a irritação de cada vez que lhe interrompiam o "comício" que procurou fazer ao auditório da BBC para debitar as verdades oficiais.
Com conselheiros da estirpe deste Ronny Tong não é, pois, de admirar o desastre que tem sido a governação de Hong Kong sob a batuta de Carrie Lam, e por que razão foi necessário Pequim aprovar a nova Lei de Segurança Nacional de Hong Kong.
Mas pior do que a confrangedora prestação do entrevistado é o estilo do seu discurso, que bebe da cartilha oficial, e o conteúdo da mensagem que se quer fazer passar.
Completamente enredado e atrapalhado pelo seu próprio discurso, acabou a entrevista estraçalhado. Vale a pena ver e ouvir.
Se Ronny Tong e a gente que representa tivessem a humildade de perceber que não estão a falar para tolos nem analfabetos, que a população de Hong Kong não vive numa remota montanha do interior sem acesso à Internet, à imprensa livre e a canais de televisão sem censura, tudo poderia ter sido diferente. Do processo de preparação e aprovação da lei ao seu conteúdo e às justificações que apresentam.
Nem mesmo pagando a actores profissionais conseguiriam fazer um filme tão mau.
Enquanto por Macau há advogados que se manifestam compreensivos, para não dizer que apoiam, a nova Lei da Segurança Interna de Hong Kong, por lá os advogados, incluindo os que são tradicionalmente pró-Pequim, apontam as suas dúvidas e temores face ao que acabou de entrar em vigor.
Os receios manifestados pelos meus colegas de Hong Kong merecem ser conhecidos, quer para que lhes possa ser manifestada a nossa solidariedade, enquanto advogados e cidadãos preocupados com o Estado de Direito e as suas garantias, quer para que depois não se façam tristes figuras.
E já agora fica também aqui o link para dois trabalhos da Hong Kong Free Press: "Worse than the worst-case scenario" e "Explainer: 10 things to know about Hong Kong's National Security Law".
Statement of the Hong Kong Bar Association
"(...) Taken together, these and other provisions of the NSL operate to erode the high degree of autonomy guaranteed to the HKSAR under the Basic Law and the Sino-British Joint Declaration, and to undermine core pillars of the One Country Two Systems model including independent judicial power, the enjoyment of fundamental rights and liberties, and the vesting of legislative and executive power in local institutions. The Hong Kong Bar Association calls on the Chief Executive to reaffirm these foundational values of the HKSAR, and to commit her Government to applying the NSL in a manner that is fully consistent with the Basic Law and Hong Kong Bill of Rights."
National Security Legislation Further Observation
"According to the Explanation, among other things, the Chief Executive of the HKSAR (“CE”) will designate (指定) current or former judges or magistrates at any level to handle cases concerning national security. We express concern that such process of designation of judges would give the CE the power to oversee and interfere with the Judiciary. That (or the perception arising therefrom) prejudices judicial independence. Judicial independence is a cornerstone of our justice system within a common law jurisdiction, and cannot be compromised."
Entretanto, aqui ao lado, em Hong Kong, na sequência do que já Elsie Leung dissera, "Cheng said the Basic Law required Chinese nationality for only two judicial posts – the chief justice and the chief judge of the High Court. “It would be strange that you can prevent a foreign judge from sitting on [cases related to national security],” she said."
A aprovação pela Assembleia Popular Nacional da nova Lei de Segurança Nacional de Hong Kong mereceu entusiástico apoio por parte de alguns dos sectores mais conservadores, mas também entre oportunistas, seguidistas e retrógrados da sociedade local.
Em Macau, essa iniciativa legislativa à margem da Lei Básica de Hong Kong foi acolhida com grande simpatia pelos tais "estrangeiros residentes" que, nas palavras da Comissária do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China na RAEM, "disseram, de forma muito incisiva, que esta acção legislativa da APN é uma resposta vigorosa ao facto de ter sido desafiado repetidas vezes o Estado de direito de Hong Kong".
Quanto a este último ponto foram bastante elucidativas as capas e igualmente os editoriais delirantes de alguns jornais publicados em português e inglês.
Todavia, lá em Hong Kong, onde ao contrário de Macau o futuro não se discute à mesa dos cafés, nem em entediantes debates onde é mais do que certo, mesmo havendo quem sendo mais moluscóide dê sempre uma no cravo e outra na ferradura, que no final estarão todos de acordo, ainda há gente alinhada e patriota que pensa.
Entre esta gente encontram-se Alex Lo, o incontornável colunista do South China Morning Post, mesmo quando dele se discorda, e a quem ninguém se atreverá a acusar de ser adepto do campo pró-democrata, de apoiante de Trump ou de saudosista dos tempos coloniais, e Elsie Leung Oi-sie, ex-Vice-Presidente da Comissão da Lei Básica de Hong Kong, ex-Secretária da Justiça entre 1997 e 2005 e membro do Executive Council, fundadora do partido pró-Pequim Democratic Alliance for the Bettement of Hong Kong, e actualmente Presidente da Comissão da Reforma Legislativa.
E que dizem eles?
O primeiro, não embarcando em discursos que têm tanto de ignorantes como de politicamente correctos, veio dizer que o futuro reserva a Hong Kong tempos bem difíceis, que a cidade e o seu povo são os maiores perdedores, que a situação piorou em pouco tempo, e que "politically, what has been arguably one of the freest cities in the world will be much less free after Beijing imposes a national security law" Muito menos livre, escreveu ele, chinês, residente de Hong Kong, patriota e nacionalista, e eu sublinho. Como se alguém tivesse dúvida disso.
Quanto a Elsie Leung, com a sua longa experiência como advogada, política e governante, e numa região onde no seu mais alto tribunal (Court of Final Appeal) de um total de 23 juízes há 15 estrangeiros – bem ao contrário da ideia que em Macau se quis fazer passar quando se afastaram os juízes estrangeiros de julgar determinados processos, de que isso seria alguma vez aceitável e estaria de acordo com a Lei Básica –, por seu turno, referiu que "while Hong Kong courts could seek interpretations from the Standing Committee of China's National People's Congress (NPC) before deciding relevant cases, a suggestion that Beijing would bar judges of foreign nationalities from those decisions "would not be in compliance with the Basic Law".
Elucidativo.
Os patriotas de Macau, de vez em quando, se não for pedir muito, deviam também usar a cabeça. Antes de dizerem disparates.
E quanto aos "estrangeiros residentes", já agora, que sentem necessidade de aplaudir, ao menos que tenham alguma reserva quando em causa está o naufrágio do rule of law em Hong Kong.
[noto que a referência a "estrangeiros residentes" introduz uma nova categoria de residentes não prevista no artigo 24.º da Lei Básica; como se o facto de serem estrangeiros a aplaudir uma decisão juridicamente aberrante, ainda que politicamente compreensível na perspectiva de Pequim, atento o caos governativo de Hong Kong, lhe conferisse alguma elevação]