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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Os principais responsáveis pelo descalabro eleitoral do PS e pelo buraco em que hoje se encontra, devido em particular aos apoios que foram sempre dando a quem está no poder, para assim irem fazendo prova de vida e garantirem que continuavam a ter algum protagonismo na sua irrelevância, começaram logo a aparecer. Bastaram 24 horas.
O sábio Santos Silva, que foi saltando de direcção em direcção, um dos principais rostos do buraco em que o PS está, veio dizer que está muito preocupado e quer uma direcção com uma marca de colegialidade grande, certamente para que o atoleiro continue e o partido prossiga o chafurdar na lama.
O filósofo Assis, que nestas ocasiões e na hora de formar listas protege a sua pretensa frontalidade sempre atrás de um discurso viscoso, que a mim me causa muitas comichões, não quer eleições para a liderança antes das autárquicas.
E a reboque de tão peregrina ideia, que deixaria o partido no limbo até Outubro, afirmou que o quer conduzido até à eleição do novo secretário-geral por esse génio que aterrou no Largo do Rato vindo com o anti-ciclone dos Açores e que, qual Gungunhana, se sentou na presidência do PS.
Se esta gente tivesse um pingo de vergonha devia ficar calada. Em vez de, após um resultado humilhante e que a muitos deles se deve, estarem já a querer condicionar o futuro e as decisões que os militantes, e em meu entender também os simpatizantes, deverão tomar.
Aliás, deviam juntar-se todos e a seguir, fazendo previamente um voto de clausura, alugavam uns autocarros e enfiavam-se todos num desses conventos abandonados, mais aquela rapaziada que veio da JS para dar cabo do partido, e ainda a comentadora Ana Gomes, que podia fazer de moderadora, para reflectirem sobre o passado.
E dali só sairiam quando o PS voltasse a obter uma maioria absoluta. Era remédio santo.
Os acontecimentos do Meco voltaram a alertar o País para o problema das "praxes". E coloco "praxes" entre aspas e no plural porque não a confundo com a sã praxe académica do meu tempo de estudante na Faculdade de Direito de Lisboa, ou com a praxe da academia coimbrã, a cuja universidade algumas vezes fui para reencontrar amigos ali colocados por força das regras do numerus clausus que regiam a entrada em universidades públicas. E sublinho que nunca usei uma batina, nem dela senti falta em Lisboa, onde nunca houve tal tradição, para me poder integrar, ser recebido pelos mais velhos ou ver-me reconhecido como estudante universitário. Mas não foi por causa disso que deixei de ser "praxado", o que no meu tempo se traduzia em beber mais uma imperial ou um copo de vinho no bar com os mais velhos, o que era motivo de galhofa e gozo e não de humilhação, medo e desprezo. Reconheço, aliás, que os que me "praxaram" eram gente normal, educada e séria, tendo-me recebido naquela que era ao tempo a minha faculdade com a dignidade e o decoro que são esperados de um acto de elevação, coisa que não se confunde com actos de rebaixamento, violência e insulto gratuitos, que fazem apelo ao regresso a um estado natural e a uma visão hobbesiana do homem, incompatível com o progresso civilizacional e o papel da universidade numa sociedade moderna e civilizada. A universidade e as sociedades democráticas não são lugar para bestas, nem podem acolhê-las no seu "estado natural" sem reagirem.
Porém, em tudo o que tem sido dito e escrito sobre o assunto - sendo que alguns dos textos que li são a todos os títulos notáveis, como acontece com o que foi recentemente repescado pelo José Gomes André, ou os de Pacheco Pereira, no Público, e de Daniel Oliveira, no Expresso, aliás na linha do que já escrevera em 2011 -, há um ponto que não tem sido suficientemente enfatizado e que se prende com a gente que está a ser formada.
O padrão formativo desta gente, que para todos os efeitos são adultos, maiores, com capacidade eleitoral activa e passiva, domínio do seu próprio corpo e liberdade para tudo e mais alguma coisa, sem que daí lhes advenha qualquer responsabilidade acrescida pelos seus actos, a avaliar pelo silêncio e pelas reacções dos "duxes", faz temer pelo futuro. Não pelo futuro das ditas "praxes", coisa que neste momento, tal como os infelizes que a elas sucumbiram, está defunta. Refiro-me sim àquilo a que ainda há dias Helena Sacadura Cabral apontava como sendo uma "questão de carácter", porque é disto exactamente que se trata.
Temos tido, para mal dos nossos pecados, múltiplos exemplos do mau exercício de funções públicas por razões de má formação ou de deformação do carácter. O silêncio, a omissão voluntária, a passividade em momentos que exigem reacção, a mentira, a desvalorização do essencial e dos sinais que o comprometem em termos colectivos, a fuga à verdade, a falta de coragem, o tacticismo, têm sido constantes da nossa vida pública e política. As "praxes" são tão somente uma parte de um problema que directamente e no presente nos afecta. Mas as suas consequências no futuro são imprevisíveis. E isto, se repararem bem, é assustador.
Porque são os mesmos que hoje convivem passivamente com o absurdo, com a humilhação, com a indignidade e o aviltamento da condição humana, fazendo desta objecto de gozo e estilicídio das suas frustrações e comportamentos esquizofrénicos, que amanhã estarão a dirigir empresas, escolas, a comandar homens, a formar pessoas, a dirigir os partidos políticos e o governo da nação. É isto que me aflige, pelas gerações vindouras e pelo que de negativo para o seu futuro pode advir. Para a "formação do seu carácter" e sua repercussão nas gerações seguintes.
O facto de já não ter idade para temer "duxes" e "praxes" não me inibe de pensar nisto. E devia obrigar-nos, a todos, a pegar as bestas pelos cornos, atalhando enquanto é tempo, evitando novos desmandos, novos "azares" que descambem em mortes prematuras. Porque não basta acabar com as "praxes" e com os "duxes" e responsabilizar os merceeiros cretinos que dirigindo universidades confundem actos de pura bestialidade com jogos infantis ou brincadeiras inócuas. Porque é preciso criar e dar alento a "praxados" que saibam resistir às bestas e aos que as toleram dentro das universidades, independentemente dos títulos que ostentem, que saibam dizer não à violência praxista e não tenham medo de assumi-lo. Só assim seremos capazes de formar cidadãos suficientemente livres, de construir uma sociedade decente, civilizada, séria, capaz de receber e integrar os mais novos e mais velhos respeitando-os, dando-lhes armas para pensar e resistir, que seja suficientemente corajosa para onde quer que esteja em risco a liberdade, ser capaz de dizer não à humilhação, assumindo a verdade e o seu preço e enfrentando a canalha, incluindo nesta aqueles que tinham a obrigação de ter educado gente para viver em sociedade e que se revelaram profundamente incompetentes nessa missão.