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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Ainda há dias pensei nele.
Habitualmente, duas ou três vezes por ano, por altura das quadras festivas e no Verão, comunicávamo-nos por escrito. E desta vez eu queria antecipar-me para não ser sempre ele a tomar a iniciativa de me escrever, de procurar saber de mim e dos combates que ia travando, comentando o que ia sabendo.
Não fui a tempo. E não haverá próxima vez.
Quando uma enxurrada começa é difícil estancá-la. E ultimamente chegam mais carregadas de más notícias. De todo o lado.
Apercebi-me ontem de que quando o funesto evento aconteceu, desta vez no Canadá, há mais de mês e meio, estava em viagem. E foi por um jovem advogado estagiário de língua materna chinesa que tive nota do seu passamento, o que muito me entristeceu.
Sei bem que a velhice caminha de braço dado com a idade, embora esse passeio nem sempre se faça à mesma velocidade. No seu caso, a sua extraordinária capacidade de trabalho continuou após a jubilação e não o impediu nos últimos anos de dar aulas e intervir em seminários, ajudando à formação de magistrados e advogados, ao mesmo que tempo que publicou mais de uma dúzia de livros, códigos anotados, comentários e manuais, a maior parte deles sobre o Direito de Macau. Incansável.
O último testemunho da sua amizade, e labor em prol da comunidade, foi-me entregue por amigo comum. Chegou com um cartão manuscrito por outro insigne jurista ligado à formação de magistrados, a acompanhar um exemplar do seu “Direito Disciplinar de Macau”, mal saído da tipografia, pelo qual me dava nota daquele me ser enviado por “especial recomendação” do autor.
Após uma vida de dedicação aos tribunais e ao Direito português, onde deixou um rasto de sabedoria e entrega, citado em todas as instâncias e constituindo o seu trabalho objecto de estudo incontornável nas Faculdades de Direito, foi a Macau que rumou dando um contributo inestimável à localização jurídica e judiciária, à preservação das raízes lusófonas e ao desenvolvimento do direito local, em especial nas vertentes penal e processual penal, onde a qualidade do seu trabalho sempre fez a diferença.
Exerceu funções no pioneiro Tribunal Superior de Justiça de Macau e deixa-nos, sozinho e em co-autoria com o Dr. Simas Santos, um estupendo repositório de obras e anotações jurídicas, que se somam aos milhares de decisões lavradas pela sua pena. Sempre numa escrita simples, depurada e de grande sentido pedagógico.
Mas mais do que registar a sua herança jurídica e judiciária, quero neste breve apontamento realçar a sua humanidade, simplicidade, cortesia, o modo como a todos tratava, da senhora da limpeza ao advogado, do ministro ao sem-terra, do amigo ao desconhecido, sempre com a mesma educação, desvelo para com o próximo, atenção, bondade. Sem esquecer o seu espírito profundamente democrático, arreigado até às entranhas, sempre pronto para escutar o outro, perceber a sua perspectiva, colocando-se no seu lugar.
Alguns, felizmente poucos, baixinhos, de espírito pequenino e medíocre, a quem a sua sombra impunha respeito, entredentes iam urrando e vituperando nas sacristias, pelos fretes que não lhes fazia; mais ainda quando as decisões que assinava ignoravam os recados previamente transmitidos pelos poderosos.
Nos últimos anos mereceu algumas desconsiderações do poder político, mais preocupado com a burocracia e a norma estúpida do que com a protecção da civilização, do sentido da vida e das coisas. Essas aleivosias, ainda que o magoando, como a qualquer pessoa séria e decente fariam, em nada o afectaram. Sempre esteve muito acima da mediocridade de algumas seitas.
Os residentes de Macau, a sua comunidade jurídica, magistrados, advogados, juristas em geral, muito lhe ficam a dever. Os seus livros continuarão a ser diariamente consultados, é certo, mas faltará sempre alguém para esclarecer mais uma dúvida e nos ajudar a pensar melhor.
O Dr. Manuel Leal-Henriques, que me deu a honra de ser seu amigo, constituirá um farol para as futuras gerações de juristas de Macau, um marco indelével da dignidade e lisura da magistratura portuguesa, um exemplo dos portugueses com honra que não se prostituem por um saco de lentilhas. Em casa ou fora de portas. Nem mesmo depois de reformados.
Perante o que hoje é público, espero que alguém – seja o Governo da RAEM, através do Secretário para a Administração e Justiça ou do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, seja a Faculdade de Direito, os Tribunais ou a Associação dos Advogados –, se lembre de organizar uma homenagem condigna em memória do Dr. Manuel Leal-Henriques.
O legado do juiz conselheiro jubilado Manuel Leal-Henriques, e não falo de Portugal, não é uma nota de rodapé numa sebenta, ou um parágrafo num comunicado discreto.
E a sua obra é, certamente, bem mais merecedora de destaque, para que seja por todos conhecida e ganhe maior utilidade nos tempos difíceis que atravessamos, do que alguns eventos que por aí ocorrem para louvar bípedes sem vergonha, cujos maus plágios são venerados de cada vez que se colocam em bicos de pés, proferem um dichote para a imprensa ou fazem um jeito aos poderosos.
Recordo-me de há umas dezenas de anos, quando trabalhei para eles, ter ficado impressionado com o seu nível de organização, embora por vezes me parecesse demasiado burocratizado nalguns aspectos atinentes à decisão. Depois disso mudei de ares, fui para outras paragens, mas não deixei de acompanhar a sua vida, e a de outras companhias aéreas, por vezes ainda viajando nos seus aviões.
Tempos houve em que alguns dos seus técnicos chegaram a estar destacados em Macau, colaborando com a companhia aérea local. Onde a TAP também excursionou nos anos finais do vierismo, transportando a tralha mais inimaginável. Depois tudo mudou. Não em Singapura.
Ontem fui surpreendido, uma vez mais, pelos resultados obtidos pela Singapore Airlines no exercício do ano transacto. Não é todos os dias que uma companhia aérea, mais a mais de um Estado minúsculo, consegue atribuir aos seus trabalhadores um bónus de 7,94 meses de salário. Sim, leram bem: sete vírgula noventa e quatro meses de salário.
A explicação é simples: boa gestão. O que, aparentemente, para a Singapore Airlines é uma coisa fácil.
Após o levantamento, em 2022, das restrições de viagem impostas pela Covid-19, em que a companhia já tinha atribuído aos seus trabalhadores um bónus de 6,65 meses de salário, o ano fiscal de 2023/2024 apresentou um crescimento de 24% dos lucros líquidos. Os lucros atingiram 2.675 milhões de dólares de Singapura, mais ou menos o equivalente a 2 mil milhões de US dólares. Depois de três anos de resultados negativos, é caso para dizer que voltou tudo à normalidade.
Quanto à folha salarial do seu pessoal, consegui um registo relativo aos salários do pessoal de cabine de 2017, entretanto divulgado em Janeiro de 2022. Quem quiser pode espreitar e fazer as contas para depois poder comparar com a "nossa" (deles) TAP.
Também a Emirates, que utilizo regularmente, onde trabalham muitos portugueses, aos comandos dos aviões e servindo os passageiros na cabine sempre com disponibilidade e simpatia, apresentou excelentes resultados e vai pagar cerca de cinco meses de salários, a título de bónus, aos seus trabalhadores.
Sei que em aviação, como em política, e muitas outras áreas, não há milagres. Por isso, uma vez que já sabem que daqui a umas dezenas de anos vamos, finalmente, todos poder aterrar em Alcochete, humildemente sugiro que as sumidades que têm gerido a TAP, a rapaziada das juventudes partidárias, o Estado português e os sindicatos organizem visitas de estudo a Singapura, muitas, e podem também levar o Prof. Marcelo, pois pode ser que o homem se modere, para ver se conseguem aprender alguma coisa e perceber qual é o segredo de gerir bem uma companhia aérea, num pequeno país, com paz laboral e resultados extraordinários.
(créditos: Romain Perrocheau, AFP)
As últimas grandes alegrias desportivas tenho-as visto e vivido em França, ao vivo sempre que possível. E quando tal não pode ser é pela televisão, não sendo sequer necessário que esteja em campo ou em pista uma equipa que eu apoie. Mas o simples prazer de acompanhar a competição, admirar a energia, o estilo, a convicção, a velocidade, e acima de tudo a classe, a dignidade e o respeito com que normalmente tudo se processa faz-me sentir reconfortado pelo que em todas as outras semanas do ano vejo acontecer no meu país. Excepção apenas há dias em dois gestos nas finais de futsal entre Benfica e Sporting e na final feminina da Supertaça de futebol.
Desta vez está em causa o Mundial de Rugby.
Momentos notáveis de dignidade, sacrifício, alegria e desportivismo. Da arrepiante homenagem dos All Blacks aos soldados neo-zelandeses tombados na II Guerra Mundial, aos cânticos e à confraternização nas bancadas entre adeptos das equipas que no terreno se defrontam, sem que a integridade de velhos, crianças, mulheres ou a de qualquer adepto seja colocada em risco, é um festival de civilidade, boa disposição e fair play.
Quantas vezes, e em quantas modalidades, se vê um jogador da equipa que acabou de ver validado a seu favor um ensaio duvidoso dirigir-se de imediato ao árbitro, com a maior naturalidade deste mundo, a dizer que a oval não entrou e que não vale a pena o árbitro perder tempo a ver as imagens do VAR, sem que com isso seja de imediato insultado ou apodado de palerma pelos apoiantes da sua equipa?
Esta noite entrarão em campo os Lobos, Selecção Nacional de Rugby, contra uma das potências mundiais, o País de Gales. Qualquer que seja o resultado espero deles o melhor.
E apoiá-los-ei com a mesma força, abnegação e determinação com que vi chilenos, argentinos, escoceses ou namibianos entrarem em campo, correrem, placarem e lutarem como se fosse o último jogo das suas carreiras, para depois, reconfortados pelos adversários, festejarem e serem acarinhados, no final das suas magníficas prestações, com e pelos seus adeptos, apesar das derrotas sofridas.
O desporto, o amor à camisola, a entrega, é muito mais do que uma vitória ou uma derrota. E é isso que se torna tão reconfortante quando se vê a elite mundial do rugby em acção.
Que exemplos para a nossa vida simples de todos os dias. E para o futebol português.
Se há quem admire nesta vida, um dos indiscutíveis é seguramente Alessandro Zanardi.
A notícia que todos recebemos do acidente que sofreu ontem, numa prova de estrada destinada a deficientes, constitui mais uma desgraça que se abate sobre a vida de um homem com o seu talento, a sua força, a sua perseverança.
Já não bastava tudo o que lhe aconteceu ao longo da vida, a forma como foi superando obstáculos que para a maioria seriam absolutamente intransponíveis, indo buscar força e motivação onde se suspeitaria só existir desespero e resignação, para agora ter um acidente da magnitude do de ontem. Capotar com o triciclo de handbike duas vezes, acabar batendo num camião que seguia em sentido contrário, e o helicóptero não poder aterrar no local do acidente tendo de ser primeiro transportado de ambulância para um heliporto, não é apenas um azar, mais um, na vida de Zanardi. É a continuação de uma condenação inaudita, sem sentido, de um homem bom, de um exemplo de tenacidade, e de um verdadeiro herói de carne e osso.
Se, como dizem para aí, Deus é grande, é incompreensível que alguém tenha de sofrer o que Zanardi enfrenta.
Espero que uma vez mais consiga recuperar, e que nos volte a dar a todos um motivo para continuarmos a acreditar nalguma coisa. Forza, Alex.
"As we mark Holocaust Remembrance Day on Sunday, we should honor this man who engaged in what one historian called "perhaps the largest rescue action by a single individual during the Holocaust.", Richard Hurowitz, New York Times, 27 de Janeiro
Pese embora o esforço que alguém fez para obscurecer a sua indelével marca, é reconfortante saber que passados todos estes anos um dos mais conceituados e lidos jornais do mundo honra a sua memória, mantendo-a viva para os seus leitores.
Um exemplo que nunca será demais recordar, em especial porque ele não o fez a troco de dinheiro, de títulos ou da glória, ao contrário de algumas sumidades locais que gostam de mostrar a sua beneficência.
O "dux" da Universidade de Coimbra assumiu num programa televisivo que há vinte e quatro anos se matricula naquela casa. Quando questionado para a razão de tão longo percurso académico, justificou-se dizendo que é trabalhador-estudante há duas décadas. Conheço muitos que o foram e fizeram os seus cursos dentro do período normal para a sua conclusão por um estudante a tempo inteiro. Desconheço o número de cadeiras que o sujeito faz por ano, mas com tanto ano acumulado fico a pensar se o verdadeiro objectivo dele não era mesmo ir coleccionando matrículas até conseguir ser "o dux". De qualquer modo, independentemente de se discutir a extinção da praxe, as universidades públicas não deviam servir para isto. Devia haver outra maneira destes fulanos chegarem a "dux", se for esse o seu objectivo, sem terem de andar a frequentar uma universidade à custa de todos nós. Trabalhador até pode ser que seja, estudante não é certamente.