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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Já andava há uns meses tentado a escrever algumas linhas sobre uma reflexão que ultimamente me causticava o espírito em razão de textos e comentários que por aí vou lendo. O absurdo episódio de ontem obrigou-me a não deixar passar mais tempo. De certa forma, revejo-me nos que foram surpreendidos pela barbárie e que pagaram com a vida o preço de uma liberdade que as democracias se revelam cada vez mais incapazes de defender.
Não tenho qualquer dúvida que a liberdade de expressão, em todas as suas manifestações, não é um valor fundamental das sociedades democráticas. A liberdade de expressão é o valor matricial da democracia. A raiz que saída do pensamento dá luz a tudo o que necessita de se revelar aos olhos e ouvidos dos nossos semelhantes.
Se me pedissem para colocar numa escala hierarquizada as liberdades, confesso que não hesitaria em colocar, logo a seguir à liberdade de pensamento, a liberdade de expressão. É a liberdade de expressão que dá sentido ao que na nossa intimidade, em qualquer solidão, somos capazes de pensar. Sem liberdade de expressão não há pensamento articulável. Sem ela estaremos no campo da ausência de construção, sem instrumentos de composição. Só vale a pena pensar se formos capazes de construir e exprimir o que pensamos. De torná-lo acessível e estimulável pelo permanente exercício da liberdade de expressão. O modo como esta se revela é que pode tornar-se problemático porque nem todos pensamos da mesma maneira, nem todos pensam com a mesma desenvoltura, não escrevem todos o mesmo, com igual facilidade nem sob a mesma forma, e a arte do desenho, da caricatura, da composição gráfica ou gestual não foram distribuídas por igual entre todos nós. Expressamos a nossa liberdade pelas formas que nos estão ao alcance, usando as armas que melhor sabemos manejar.
Acontece que alguns de nós as manejam exemplarmente, o que faz com que a forma como esse exercício se processa também não seja igualmente compreensível por todos nós. Se não segue a mesma bitola também não se rege pelos mesmos cânones. E é aqui que perante a incompreensão, o insulto, a obscenidade, quantas vezes por simples deficiência na recepção da mensagem, somos confrontados com a barbárie. O que aconteceu na redacção do Charlie Hebdo foi o encontro da liberdade de pensamento expressa através do desenho com a incompreensão da mensagem na sua forma mais bárbara.
A dimensão desta incompreensão, antes de ser um problema da democracia, é uma questão que diz respeito a cada um de nós, cartoonista ou não, cuja resposta deverá ser encontrada na formulação de uma simples pergunta: qual o sentido da provocação?
Admito que sou por natureza um provocador. Mais quando pretendo estimular em quem me escuta ou me lê uma reacção, um movimento de resposta, de geração da discussão, de insatisfação. Perante um problema, ao manifestar o meu direito à opinião, gosto de provocar os que me escutam, os que me lêem. Porque entendo que só dessa forma a própria clareza da ideia pode sobressair e ser mais facilmente entendida pelo destinatário. Essa será a única forma, ou pelo menos a mais fácil, à laia de um beliscão, de provocar o receptor acomodado.
A provocação é um risco que só valerá a pena correr se conduzir ao efeito pretendido. Saber até que ponto a provocação vale a pena não é questão de somenos. E há dois pontos em que a provocação se torna irrelevante: 1) quando não é entendida pelo destinatário; 2) quando se torna inócua. A provocação irrelevante deixa de servir os seus propósitos. Por ignorância, incapacidade intelectual ou défice de comunicação a provocação irrelevante conduzirá, em regra, à reacção desproporcionada, desajustada, por vezes ofensiva. Na segunda situação gera a indiferença e nada mais.
Proteger a liberdade de expressão é garantir a liberdade de pensamento. Às democracias, a todos nós, compete-nos proteger a primeira se se quiser continuar a pensar livremente. E a protecção daquela passa por assegurar o exercício do direito à provocação. Até que esta no seu percurso se torne irrelevante. De caminho poderá causar incomodidade, insatisfação, desconforto, até ofender. A ofensa não torna a provocação menos legítima. Ou desmerecedora de protecção. Porque contra a ofensa, nas democracias, há sempre remédio. Talvez seja isto o que nos afaste deles. Quando não se conhece desconfia-se. Quando se ignora não se acredita.
O Estado de direito é hoje o estado da provocação permanente. Por isso se torna tão imperioso protegê-lo. E é preciso que eles o entendam pela única forma que pode tornar a provocação irrelevante: a educação na liberdade e na responsabilidade. Com a Bíblia, a Tora ou o Corão na mão, se necessário for. Como fizeram os cartoonistas do Charlie Hebdo. E como fazem homens como Sabir Nazar. No Paquistão. Até que a provocação se torne irrelevante. Até que gere a indiferença.
A provocação também se educa.
Os resultados do trabalho de investigação da Universidade Católica e do Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento, para os quais a Teresa Ribeiro já havia oportunamente chamado a atenção e de que a edição de 15 de Janeiro pp. do Público dá conta, para lá de enfatizarem aquilo que é mais chocante, ou seja, de que os portugueses quanto mais instruídos e mais ricos menos solidários são, revelam a falta de uma dimensão essencial, a mais importante da educação, que é a dimensão humana e relacional. Este aspecto é ademais sublinhado pelo investigador Lourenço Xavier de Carvalho quando refere que essa dimensão “está cada vez mais afastada dos currículos”e que “as prioridades do sistema educativo estão completamente erradas”. As pessoas embora tornando-se competitivas e tecnicamente preparadas tornam-se insensíveis aos outros.
Os resultados do estudo não constituem propriamente uma novidade para quem ande na rua, acompanhe o dia-a-dia, fale com adultos e menos adultos e, em especial, se predisponha a ouvir o que a maioria dos nossos dirigentes vai debitando.
A assinatura do memorando de entendimento com a troika, na linha do que já antes vinha dos “famigerados” PEC, o que em tempos fomos ouvindo a Teixeira dos Santos, ao ex-primeiro ministro e a alguns dos membros do seu executivo, ou que posteriormente escutámos a Passos Coelho, Vítor Gaspar, Hélder Rosalino, Mota Soares, Maria Luís Albuquerque e tantos outros, para só me referir aos mais próximos e aqueles cuja “desfaçatez” está mais presente, será apenas a ponta de um iceberg que foi paulatinamente crescendo sem que a maioria das pessoas se apercebesse das suas verdadeiras consequências e da dimensão, este sim, não o outro, do “monstro”.
É o “monstro”da insensibilidade que acompanha o desenvolvimento da ignorância global sobre a nossa própria condição e nos impede de ver o mal que daí resulta para o desenvolvimento e crescimento saudável de qualquer sociedade. Sou a favor da competição, sou um acérrimo defensor do mérito e da valorização das competências técnicas e profissionais, que fique bem claro. Mas continuo a não conceber que desenvolvimento e que tipo de sociedade será possível alcançar se os seus padrões de qualificação desvalorizam a dimensão humana das acções que nela se produzem.
E aqui, quer se queira quer não, voltamos a entrar na velha discussão sobre o papel da escola, sendo para o caso indiferente se essa é pública ou privada. Porque, se virmos bem as coisas, quando a família falha, quando o núcleo fundamental se desestrutura, seja por os tempos serem outros e vivermos numa sociedade “pós-modernista”, seja porque a indiferença se substituiu a um simples olhar para quem está ao lado, assistindo-se ao crescimento de manifestações de índole individualista que desviam a atenção do essencial e desvalorizam a dimensão humana da nossa relação com a economia, com as finanças, com a ciência, com a arte, enfim, com o mundo, falham os próprios pressupostos da formação.
O acto de ler, por exemplo, sendo um acto profundamente individualista, e não me refiro à leitura pública de textos, é um acto que nos aproxima dos outros e é incomensuravelmente mais humano e saudável do que os videojogos que invadiram as casas de todos nós e atiram adolescentes em idade de ler, ver um bom filme ou ouvir um bom disco para o recolhimento dos seus quartos ou para sofás de onde a custo se levantam na hora das refeições ou quando a bexiga aperta.
Quando a família falha e a escola também em igual medida, e ambas de uma forma crassa como se vê pelos resultados do estudo, é preciso que o Estado, que as suas instituições, aquelas para as quais os nosso impostos contribuem, fosse capaz de aparecer e colmatar o vazio, preenchendo essa vertente da formação.
No caso português a falha tem tal dimensão que não só nos mostrámos absolutamente incapazes de nos governarmos – o que significa que os dirigentes que a sociedade formou para a dirigir para além de serem recorrentemente mentirosos e aldrabões são igualmente maus do ponto de vista da gestão colectiva – como, ainda por cima, cultivámos um padrão de desenvolvimento que é a vergonha da herança de Erasmo, de Montaigne ou de Thomas More.
Dinheiro, poder, estatuto, cartões de crédito platina, bons carros, fatos de fino corte, sapatos de luxo, viagens à Cochinchina em classe executiva, refeições estreladas pela Michelin, tudo isso tem o seu espaço numa sociedade equilibrada sem que para corrigir excessos seja necessário cortar na reforma dos mais humildes, dos que mais trabalharam e dos que mais pagaram para não terem de viver os últimos anos das suas vidas sujeitos às contingências de lares e casas de repouso, sujeitos a maus tratos e à caridade de terceiros, nem despachar os mais capazes para o outro lado do mundo contando com as remessas deles e dos seus filhos para pagarem os vícios e os excessos dos incapazes e ignorantes que tomaram de assalto todas as zonas de conforto da política, da sociedade, da diplomacia e do Estado em geral, sem nunca nada de útil terem feito para merecê-lo. Não pode haver uma sociedade equilibrada enquanto se desvalorizar tanto o olhar sobre os outros, enquanto todas as críticas forem tomadas a peito pelos visados e vistas como ofensas pessoais, enquanto o humor for sempre interpretado como chacota, gozo e inveja, e, pior que tudo, se condescender com a disfuncionalidade social e juvenil ou comportamentos aberrantes dos titulares de cargos políticos, tratando-os como inevitabilidades do século XXI ou o preço a pagar pelo desenvolvimento.
Se não formos capazes de atalhar caminho começando por “educar” os nossos dirigentes e mostrando-lhes o caminho para onde deverão seguir, com troika ou sem troika, visto que aqui a componente económico-financeira até será a mais desprezível e ainda que não possamos descurar o cumprimento das nossas obrigações internacionais, o problema jamais terá uma solução adequada que nos liberte de fantasmas e nos faça reencontrarmo-nos com o nosso passado, sem necessidade de se continuar numa espera eterna por um qualquer vulto saído do mais tacanho sebastianismo, de um vendedor de pátrias e de credos, ou iluminado vendedor de banha-da-cobra que um dia acorda com vontade de ser primeiro-ministro.
Nunca a aposta na educação foi tão fundamental para se garantir a liberdade e a independência de um povo. Nunca o Estado moderno foi tão importante. Nunca os portugueses precisaram tanto de um Estado forte e de partidos políticos e dirigentes à altura do momento.
Se havia ministro em quem acreditasse, em Junho de 2011, independentemente de um diferente posicionamento político-ideológico, que seria capaz de desempenhar um papel à altura das exigências do país era Nuno Crato. Com ele trazia a qualificação académica, a intervenção cívica, uma presença assídua na imprensa pensando com exigência questões pertinentes. Enfim, um conjunto de atributos e qualidades que à partida o distinguiam de alguns dos seus pares.
Volvido este tempo, em que se tornou patente o aumento da crispação dentro das escolas, a degradação do sistema de ensino, a desvalorização (a martelo) do papel da escola pública, dos professores e da comunidade educativa no seu todo, pensava eu que já estava tudo estraçalhado. Errado. Ainda faltava voltar a dar o dito por não dito pela enésima vez em matéria de avaliação de professores e de exames.
Quanto a esta última parte duvido que neste momento, para além dos visados, que têm sido tratados como bolas de golfe sujeitas às pancadas de um principiante da modalidade num driving range, alguém acreditasse na virtualidade de um modelo, qualquer que ele fosse, imaginado na 5 de Outubro.
O golpe de misericórdia acabou agora de ser dado. Inscrições obrigatórias, e pagas, ameaças várias, promessas sem fim, conferências de imprensa sem sentido e todo um rol de situações aparentemente sem solução, no final resumia-se a uma questão de números.
As proclamatórias declarações de princípio - e não apenas do ministro e do ministério mas também de alguns sindicatos - foram convertidas em números e sumariamente negociadas. Como na lota. Para quem deve, e continua a dever, quase tudo o que é hoje à escola pública e aos seus professores, e acompanha de fora, e longe, o permanente e surreal folclore negocial, torna-se difícil acreditar se será possível algum dia reconstruir o que se destruiu, restaurar a credibilidade das instituições, a estabilidade do sistema educativo e prestar um serviço capaz à comunidade. O espectáculo é deprimente.
Reformar todos viram que não foi possível. Mais difícil será amanhã um professor, com o sentido da sua missão, explicar a um aluno interessado, em termos que este possa entender e que um dia isso lhe possa ser útil, o que é uma questão de princípio. E, em especial, para que serve.