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abraços

por Sérgio de Almeida Correia, em 11.11.19

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Os dias continuaram a passar. Hoje já será a Missa de Sétimo Dia, mas não será seguramente por esta celebração que se regressará à normalidade. Os rituais podem ter o valor que lhes quiserem atribuir, neste caso, para mim, não passará disso mesmo. Cumprir um ritual. Para a minha memória será impossível voltar a haver uma vida normal.

A morte é desde sempre e em quaisquer circunstâncias um momento difícil para todos aqueles cuja vida se escora numa relação saudável com os outros. A quebra de um elo numa dessas relações, por muito suave que se vá processando, terá sempre um momento de ruptura inevitável. Não mais se poderá restabelecer, remediar.

A separação é irreversível. Do outro lado já não vem qualquer resposta. Apenas um silêncio dilacerante. Não há mortes fáceis, não há preparação possível, apesar de poder admitir que para alguns a conformação construída na fé e a esperança na Ressurreição possam amenizar a dor, dando-lhes o conforto necessário para aceitarem essa fatalidade.

Eu sei que terei sempre a memória, a recordação do seu sorriso sempre sereno, da candura do seu olhar, da infinita bondade de cada gesto seu, do seu desprendimento da materialidade das coisas. Sobretudo da ternura que transmitia a todos que com ela contactavam, quaisquer que fossem as circunstâncias.

Mas nada, rigorosamente nada alivia a imensidão da dor, ou é capaz de diminuir a profundidade da fenda que se abre e por onde nos vemos desesperadamente cair, apenas sentindo a vertigem do vazio, sabendo que não há regresso e que por aqui teremos de continuar, quantas vezes percorrendo caminhos que diariamente vão perdendo sentido. Até que também chegue a nossa vez.

É nestes momentos que as minhas dúvidas aumentam. De certa forma é-me inconcebível que o genial Criador, que a tudo deu forma, equilíbrio e sentido, colocando-nos nesta ínfima parte que habitamos de um Universo incomensurável, tenha resolvido o problema da morte sem curar da dor.

Para os crentes, que como ela consagram a vida aos outros, a partida é apenas o início de um outro percurso que os conduzirá à Eternidade, a um mundo paradisíaco e libertador, onde o Senhor os acolherá. Compreendo por isso mesmo que para esses, a perspectiva em que foram criados e educados os prepare e os faça aceitar a sua própria partida com esperança. Não sei se será mesmo assim; não me custa acreditar que sim. Nunca conheci ninguém que racionalmente tivesse estado do outro lado e que regressasse para me contar. Para me fazer acreditar. Para que eu pudesse ter uma outra fé.

Mas isso ainda será o menos. Só ao desconhecido é possível dar o benefício da dúvida, e por aí não tenho problemas em aceitar a visão de quem, como ela, tão convictamente, acreditava. Muito mais difícil será poder aceitar a existência desse Deus misericordioso perante o sofrimento inaudito, perante a dor dos que ficam. Como aquele que agora ali fica, aos 101 anos, perguntando-me "e agora o que vai ser de mim", ao fim de quase sessenta anos de amor, amizade, apoio mútuo, companheirismo. Como se eu estivesse em condições de lhe dizer alguma coisa, de lhe dar resposta às inquietações que o assolam.

De uma forma ou de outra todos sentimos a dor nas mais variadas circunstâncias desta vida que nos deram, e por onde vamos seguindo com maior ou menor dificuldade. Levamos a vida convencidos, e a convencermo-nos e aos outros, de que a dor é uma espécie de onda que vai e vem, e que de uma forma ou de outra acabará por passar. Bastará esperar. Esperar não custa, ouço dizer.

A mim, a dor custou-me sempre imenso. E nunca passou. E se não passou antes, pior seria agora. Eu já temia o dia de hoje.

Gostava que fosse de outro modo. Por mais que me esforce não consigo. Não se trata de um problema de fé quando se está perante uma evidência. Talvez se eu fosse um ateu convicto, não daqueles que fingem ser e acabam rezando às escondidas quando começa a relampejar, me fosse mais fácil perceber as coisas. Aceitar a dor, conformar-me com a partida de quem tanto amei e venerei em vida, de quem tanto deu, muito para lá dos limites do imaginável, não só a mim, a todos. Muitos deles desconhecidos.

Há muito que me resignara à ausência daquele bolo de S. Vicente que só ela sabia fazer, dos brownies genuínos, elásticos, quase espalmados, do seu arroz doce ou do pudim de pão. Nada disso era importante à medida que a sentia mais cansada. Não se lhe ouvia uma queixa, um lamento, um ai. Raramente lhe vi uma lágrima disfarçada escorrer pelo canto do olho.

Sentia-se-lhe sempre a tristeza, a desilusão, a decepção profunda perante a partida de alguém querido, que para ela eram todos, nas mais inesperadas circunstâncias, mas logo depois se refugiava resignada na sua própria dor e na devoção a Santo António. Até quando, apesar do esforço vão, repetia movimentos labiais tentando articular algumas palavras, para acabar ingloriamente por desistir sem que nós a compreendêssemos, uma vez conformada à sua sorte, ainda assim sempre feliz, sorrindo, quando nos via chegar. Porque tinha de ser assim, porque o Senhor sabia quando era chegada a hora de cada um, e a nós, simples terrenos e fiéis, só havia que aceitar. E continuar.

E ela continuou, a vida toda, sempre fazendo o que sempre soube quando as faculdades e as forças começaram a trair-lhe as rotinas. A mostrar aquele sorriso imensamente acolhedor, espalhando a ternura de sempre a quem chegava, fosse a quem diariamente cuidava dela, a quem arribasse para a visitar, ou a quem de muito longe lhe quisesse dizer algumas palavras através de um telemóvel, como tantas vezes eu fazia dos lugares longínquos para onde ia na minha ânsia de correr mundo. Sorriso aberto, são, quando via os filhos, os netos ou os sobrinhos chegarem, os amigos dela e os dos filhos, por vezes ainda meros conhecidos, semicerrando os olhos quando eu entrava e a beijava, para logo depois os abrir num largo, intenso, mas sempre sereno olhar de satisfação e permanente agradecimento, como se estivesse sempre em dívida para com o bem que lhe faziam. Como se ela precisasse de alguma vez agradecer alguma coisa nesta vida. Mostrando em todos os momentos uma razão para a generosidade, para a silenciosa bondade dos gestos que nos aproximam e nos confortam.   

Tudo isso agora acabou. Quem cá fica e teve o privilégio de conhecê-la e de com ela conviver em todos os caminhos e lugares que percorreu recordá-la-á por aquele misto de doçura, ingenuidade e bondade que nos desarmava, penetrava e dilacerava ao fazer-nos ver a grandeza do seu altruísmo, da sua entrega generosa e permanente, mesmo quando nos recriminava por algo que disséramos ou que em seu entender ficara por fazer.

Dei-lhe sempre tudo o que pude, incapaz de poder retribuir-lhe o tanto que me proporcionou, e que tantas vezes me encheu a alma, me emocionou, me fez sentir o quanto me deu para me fazer sorrir, me confortar.

Quando hoje olho para trás e vejo o seu legado sinto-me imensamente pequenino. Como quando me abraçava e aconchegava junto a si. E de outro modo não poderia ser. Porque foi assim a vida toda. Até no momento em que a perdi. Há dias.

Talvez seja, então, essa a razão para que só me venham à cabeça as palavras de Borges, ainda mais quando choro confrontado com o inconformismo da sua ausência e a dimensão de uma dor de que esse vosso Deus se esqueceu de cuidar no momento da Criação.

Só a simplicidade da palavra do imortal Borges pode trazer um módico de justiça à sua memória. Depois de tudo o que recordo e vivi, da Mélita, minha Mãe, como tão bem o Drummond me recordou e confortou pela generosidade do Pedro, direi tão só o que um dia o grande Borges escreveu sobre a sua querida Buenos Aires: “tenho-a por tão eterna como o ar e como a água”.

Porque eternos também foram, e continuarão a ser, até ao dia em que a mim também me levarem, quem sabe se para ao pé dela, os abraços que a Mélita me deu.

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dimensão

por Sérgio de Almeida Correia, em 10.05.18

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(Tiziano, 1549) 

A tragédia é tão profundamente absurda e dolorosa que quando ocorre torna totalmente irrelevante a dimensão da catástrofe. Só o tempo, desgraçadamente, conta até ao final.

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memória

por Sérgio de Almeida Correia, em 30.12.17

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Chegar ao fim.

Pode parecer duro, talvez mesmo cruel, assim dito desta forma seca, áspera, que por vezes soa tão violenta. Nunca me foi tão fácil dizê-lo. E ao mesmo tempo é tudo tão profundamente tormentoso.

Será difícil esquecer um ano sentido entre o pico do Evereste e a escuridão da fossa de Mindanau, em que de tudo um pouco e até o nada que aconteceu conseguiu ser tão perturbante.

O sucesso académico, e os termos de que o seu reconhecimento veio acompanhado na pátria que ficou para trás, mas também nas muitas que me foram acolhendo fora de portas, culminando anos de intenso trabalho, distribuindo o tempo — essa miragem que nos foge segundo a segundo e a que por vezes, estupidamente, damos a liberdade de se escoar ainda mais depressa — entre conferências, seminários, palestras, gabinetes, escritórios, bibliotecas, livros e revistas sem fim, jornais, até rádio e televisão, imagine-se, eu, aspirando a que os olhos não se cansassem, temendo que a luz lhes faltasse e as letras começassem a turvar-lhes o caminho, quando por momentos pensava em Borges e no meu Padrinho, cegos para a eternidade com tanto para fazerem, alternando o seu brilho, o dos meus, que me dizem ser intenso, com a mais profunda e desconsolada tristeza, assistindo impotente à partida daqueles a quem ficarei para sempre ligado por laços indestrutíveis de camaradagem, tornados eternos por essa mesma partida precipitada, comprometidos por amizades sem cedências, recebendo o exemplo de um combate incapaz de vacilar, imune a constrangimentos e dificuldades. Tão lento quanto feroz, mas capaz de fazer estremecer as portas do Céu.

E depois ver, e olhar com aqueles mesmos olhos, a tristeza dos outros olhos que me são mais queridos, sentindo-os envelhecer longe, desprotegidos do conforto a que sempre se habituaram, ali esperando, também eles, que os dias fossem mais curtos, menos penosos, ansiando desesperadamente pelo escoar do tempo enclausurado entre as paredes daquele mundo distante e rude que se tornou o deles, tornando mais amargos os seus próprios queixumes, as recriminações contra um ramerrão estranhamente atribulado, sem que percebessem o porquê tão intenso de tal destino, lavrando impropérios, frases soltas de revolta contra o tempo que eu queria controlar.

Como se alguma vez fosse possível amenizar a dor, aquela que é de facto sentida em cada hora, encurtando-lhe o tempo, penteando-a, escanhoando-a, enfiando-lhe uns rolos, mudando-lhe os pijamas e os lençóis, as fraldas, as camisolas coçadas que passaram a ser as de todos os dias em que o tempo parou.

E depois eu voltava a sair para o mundo, para o outro, em que o tempo é contado, tão longe deles e ali mesmo ao lado, comigo sentado na cadeira colocada ao seu lado, ou na borda da cama, enquanto via o seu esforço para comer, para que a couve não lhes caísse na mesa ou no tabuleiro, para que a manga já mergulhada no molho não se sujasse.

E depois não poder partilhar as minhas pequenas vitórias lá de fora, do outro mundo, do mundo de onde eu vinha e para onde iria logo a seguir, tornando ainda mais curto o seu tempo e mais prolongada e distante a minha ausência, dor sempre embarcada e a cheirar a combustíveis, tantos que se tornou indiferente saber se entre tantas estradas, portos e aeroportos se tratava de gasolina, de gasóleo ou de querosene, e onde a única certeza era a de que jamais teria a felicidade de me cruzar com eles, de poder abraçá-los, assim na rua, no meio das outras pessoas, numa estação, numa sala de embarque, no quiosque dos jornais, dar-lhes um beijo terno, como se fossemos ainda as pessoas normais que éramos antes desse sacana do tempo resolver tomar conta de nós e deles, castrando-nos outros sonhos e maiores prazeres definitivamente irreconciliados por força dele. E das chagas que os trouxeram até aqui.

Chegar ao fim sentindo que tudo o que foi feito ainda está por concluir, que o meu tempo se está a apartar cada vez mais do deles e que ambos e tornaram gelatinosos, fugidios, como aquele resto de pudim que se lhes escapa da colher, ali, às voltas pelo prato, até soltarem novo impropério, exaustos, abandonando essa luta sem sentido até que alguém lhes dê uma ajuda.

Ah, como estão longes e distantes aqueles dias em que caminhávamos junto ao mar, ouvíamos Rachmaninov e Brel, tomávamos juntos um copo de vinho, falávamos de futebol, de livros e de política. Para a Mãe o futebol ainda faz sentido, mas agora só se lembra do Eusébio e dos remates dele naquele jogo que nunca soube qual foi porque já se esqueceu. Aquele memória já não sabe de que era é, nem como se sobe o som do telemóvel.

Chegar ao fim tornou-se numa preocupação. Agora tudo se tornou em chegar ao fim. Para todos nós. Chegar ao fim do livro, chegar ao fim do jogo, chegar ao fim da corrida, chegar ao fim da rua, chegar ao fim da fila do supermercado, da farmácia, do estacionamento, das consultas, da urgência hospitalar, das finanças, para depois se chegar ao fim do dia, ao fim da noite, ao fim do mês, até se chegar ao fim do ano.

Esperando sempre que esse fim não chegue ao fim sem eu chegar. Sem que eu possa ver então o tempo partir ficando eu no mesmo lugar. Como tantas vezes fiquei este ano, sentindo a injustiça que há nisto tudo. No tempo deste tempo, que não tarda vai outra vez chegar ao fim. Para que amanhã as nuvens voltem a passar, o chão a sorrir, a correr, a saltar, a nadar, como se o tempo não existisse, como se não houvesse horas nem relógios, que ainda há alguns que também dão o tempo. O nosso e o deles. Vingativos, cobardes, acintosos, com a amargura estampada nos ponteiros, no tiquetaque rançoso do despertador, nos números encarnados do digital da mesinha, piscando quando a outra tipa vem e desata a bater com o tubo do aspirador em tudo o que é sítio com medo que o tempo não lhe chegue para se despachar mais cedo sem escaqueirar a mobília e as suas mossas, mais as tomadas, antes de acabar com as franjas dos velhos tapetes de um qualquer desses buracos terminados em “ão” onde o tempo parou no tempo e nas mãos de quem os teceu.

E é assim que se chega ao fim. Sem ruído. Tão perto e aqui tão longe. Onde ele está sempre presente, sem tom nas cores dos dias, perdido no cinzento dos séculos, para sempre imerso no tempo, num tempo que eu ainda espero, no meu íntimo, que não seja o último.

E que eu veja, e os veja, mesmo assim, quando ainda me podem abraçar, dar um beijo, um abraço na lonjura deste tempo que não me perdoa. Nem eu a ele. Até chegar ao fim. Porque ninguém merece um tempo assim.

 

Bom Ano Novo para todos vós. Que sejam felizes. Com saúde.

 

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khmers (3)

por Sérgio de Almeida Correia, em 29.12.16

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O desenvolvimento de Angkor ficou a dever-se ao génio do Rei Jayavarman II (790-835) que inicialmente estabeleceu a capital em Roluos, depois mudada para as montanhas Kulen. Até então a história dos khmers era uma história de pequenos estados independentes, por vezes transformados em impérios, mas sempre durante períodos relativamente curtos. Consta que desde o período neolítico a região foi ocupada devido à fertilidade dos solos em redor do chamado Grande Lago, da riqueza piscícola e abundância de água, mas foi a partir de 1908 e das descobertas da Escola de Arqueólogos Franceses do Extremo-Oriente, em particular de Jean Commaille, que escreveu em 1912 o primeiro guia de Angkor, que se tornou conhecida. O que hoje se vê é apenas uma pequena amostra do que existiria, sabendo-se das inscrições nos relevos dos templos que, por vezes, as construções se atrasavam durante anos devido à ausência de fundos para serem concluídas. 

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Não vou aqui descrever em detalhe o que por ali vi, importa talvez dizer que quem quiser explorar a região de Angkor e visitar os templos, declarada Património da Humanidade desde 1992, após a celebração dos Acordos de Paris, tem primeiro de munir-se de um bilhete, cujo preço varia entre os 20 USD, para um dia, e 40 USD, para três dias, sendo possível obter passes de uma semana. Convém que quem lá for não se iluda e não se arme em chico-esperto, resolvendo começar a circular livremente por toda aquela vasta área para poupar no custo do bilhete, confiando na sorte, porque na estrada e à entrada das zonas onde estão os principais templos é feito o controlo dos bilhetes pela Polícia do Turismo, bilhetes que depois são frequentes vezes pedidos para verificação da identidade do titular e confirmação de que a foto dele constante, tirada na hora, corresponde ao visitante que se apresenta. O controlo é amigável e simpático para os viajantes sem deixar de ser rigoroso para os infractores que sejam apanhados sem bilhete.

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Depois de três dias passados nesta região, onde aproveitei para observar os fabulosos frescos, respirar todo aquele verde e visitar o Museu Nacional D'Angkor, reservando para outra ocasião o centro dos Artisans Angkor e as oficinas dos ceramistas, comecei a aperceber-me do grau de destruição e rapina provocado quer pelo regime de Pol Pot, e após a queda deste, em 1979, quer pela ocupação vietnamita que se lhe seguiu. Muitas das figuras das belíssimas apsaras (ninfas), que representam na perfeição a generosa e enigmática beleza da mulher cambodjana, das cabeças de esculturas centenárias, das divindades, serpentes e leões foram mutiladas, decepadas, desfiguradas. Galerias inteiras foram destruídas, provavelmente para estarem hoje a ornamentar casas e jardins fora do Cambodja. Algumas peças foram entretanto recuperadas depois de terem aparecido ao fim de muitos anos em leilões e exposições por esse mundo fora, mostrando a importância da cooperação internacional na defesa do património cultural que a todos pertence.

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Antes de rumar ao Sul ainda ensaiei uma primeira aproximação ao que foram os anos de guerra e genocídio, primeiro com a ditadura do direitista Lon Nol, que alegadamente chegou ao poder através de um golpe apoiado pela CIA e os EUA, acusação que alguns dizem ter falta de provas e que foi rejeitada por Kissinger, para quem os EUA terão sido apanhados de surpresa, e depois com o infame regime de Pol Pot.

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Quanto a Lon Nol é duvidoso que não tivesse obtido prévio apoio dos EUA atenta a forma como as coisas aconteceram, a começar pelas manifestações promovidas pelo próprio governo para justificar o golpe militar e o suporte que os EUA deram de imediato ao novo poder. Muito resumidamente, o que aconteceu foi que na sequência de uma votação na Assembleia Nacional cambodjana, Lon Nol derrubou a monarquia e atirou o Príncipe Norodom Sihanouk para o exílio. Invocando poderes extraordinários, aquele que era ao tempo primeiro-ministro, tomou o poder, proclamou a República Khmer e substituiu uma monarquia clientelar e corrupta, que abrira o porto de Shianoukville aos vietcongs, pela instauração de uma férrea ditadura, igualmente corrupta, dirigida por um nacionalista místico e chauvinista que queria ser tratado por “Black Papa” devido à cor da sua pele, o que segundo o próprio faria dele um verdadeiro khmer. O golpe conduziu a uma intervenção directa na Guerra do Vietname e à perda de mais umas centenas de milhares de vidas entre cambodjanos, com particular incidência sobre as comunidades dos etnicamente de origem vietnamita, inocentes ou culpados, que viviam no Norte, e que iam sendo atirados ao Mekong à medida que eram eliminados na tentativa de conter o avanço comunista.

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Fui então visitar o denominado “War Museum” que se encontra instalado na Região Militar de Siem Reap, a poucos quilómetros da cidade. Recebido à entrada pelo seu responsável, com o tradicional traje negro dos antigos guerrilheiros khmer, perguntou-me se precisava de guia, tendo eu retorquido que não. O que eu já sabia dispensava-o de me esclarecer sobre aquilo que ali estava patente. Material militar desactivado, tanques, granadas, lança-roquetes, morteiros, praticamente todos os modelos de metralhadoras ligeiras, com destaque para as AK-47, pistolas dos mais diversos fabricantes e modelos, incluindo israelistas, até um helicóptero e um velho Mig russo usados em combate, dispensavam explicações adicionais por parte de qualquer guia. De um lado e do outro vários barracões com fotografias, memórias dos conflitos, registo de tragédias pessoais e colectivas e um vasto conjunto de todos os tipos de minas que se encarregaram de ceifar, e que continuam a ceifar, centenas de milhares de vidas, de toda a espécie de gente, novos e velhos, homens e mulheres, gente inocente. Tudo ali exposto em fotografias, cartazes, relatos biográficos e relatórios para que a memória não se perca por falta de informação. Para todos e a começar pelos jovens locais, para que se possam aperceber do que foi o passado, do preço da paz e do drama do seu povo.

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Existe também um museu dedicado às minas a 25 km de Siem Reap. Não estava nos meus planos lá ir até porque a guerra contra as minas continua no presente, não faz parte do passado. Há ainda vastas áreas minadas, admitindo-se que haja cerca de seis milhões de minas (este número não é engano) espalhadas pelo país. Há minas colocadas pelos vietnamitas durante a ocupação, usando mão-de-obra forçada local, ao longo dos 700 km da fronteira com a Tailândia. Há minas colocadas pelos Khmer Rouge nas florestas, a partir do momento em que foram afastados do poder para protegerem os locais onde se refugiaram, e há minas colocadas pelos governo nacional para proteger cidades, vilas e aldeias e as suas próprias posições. São por isso frequentes os avisos de perigo, incluindo em caminhos aprazíveis pelas florestas e nalgumas zonas das províncias de Banteay Meanchey e Oddar Meanchey, por exemplo, num país que tem o mais alto número de amputados devido às minas. A média de amputados mensal é actualmente de cerca de 15, num total superior a 40 000, agravando-se a situação na época das chuvas, em especial nas zonas rurais, onde os mais atingidos são os desgraçados dos agricultores.

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À sombra das árvores, com os pássaros e mosquitos por companhia, com um guia nos seus trinta anos que mostrava nos olhos e no rosto, para um pequeno grupo de turistas que nos seguia, os pergaminhos da sua história pessoal e a do seu pai, mais uma vítima dos Khmer Rouge, todo aquele material exposto tornou-se inofensivo. Está ali a memória da sua infância e da sua juventude, se é que de tal se poderá falar. Longo e doloroso foi o caminho que o trouxe até àquele cemitério. O que para trás ficou será sempre irrecuperável. Em vidas e em sofrimento. Não há preço para isto.

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