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elites

por Sérgio de Almeida Correia, em 25.10.24

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E ciclicamente lá chega mais um caso às páginas da imprensa. Ontem foi Isaltino Morais, hoje é o inefável Miguel Pinto Luz. Amanhã será outro autarca ou governante qualquer.

Sobre os usos e abusos dos dinheiros públicos por parte de mais um ex-autarca e actual membro do Governo, a pagar os linguados, os robalos e a vinhaça nos melhores restaurantes aos amigalhaços e correligionários políticos, aos empresários dos "ajustes directos", a consultores de imagem, jornalistas e investidores anónimos que nunca ninguém sabe se chegaram a investir, nem onde nem quando, nem que benefícios os contribuintes viriam a retirar desses convívios, remeto-vos para a investigação das páginas da revista Sábado e a reportagem publicada na edição desta semana, cujo texto assinado pelo jornalista Marco Alves volta a destacar a inadmissibilidade de alguns comportamentos de titulares de cargos políticos. Comportamentos transversais, de uma forma ou de outra, a todo o espectro político. 

O destaque aqui vai inteirinho, em primeiro lugar, para a argumentação da Câmara Municipal de Cascais para fugir à prestação das informações e de documentos (facturas de despesas do fundo de maneio e acesso a extractos de cartões bancários usados por “Suas Excelências”) relativamente a essa investigação.

Recusar a prestação de documentos e informações alegando “impacto nas rotinas”, perturbação ao “regular funcionamento dos serviços (...) para dar cumprimento a um pedido quase abstracto” para acabar depois no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a dizer que “não constitui interesse público manifesto e relevante a informação sobre com quem é que os membros do executivo almoçam” e que esses gastos realizados com dinheiro público deviam ser entendidos como reserva da intimidade da vida privada e mereciam protecção constitucional para não ofenderem os limites impostos pela boa-fé e os bons costumes, revela bem o entendimento que esta malta tem da forma como devem ser exercidas funções públicas e de qual o escrutínio a que consideram não dever estar sujeitos.

À argumentação da autarquia de Cascais, digna de um cabo de esquadra, respondeu a decisão judicial referindo desconhecer “quaisquer bons costumes que digam respeito ao número de documentos que se mostra aceitável requerer à administração pública” e que almoços nos exercício de funções públicas e pagos com dinheiros públicos não se inseriam, evidentemente, na esfera íntima e privada dos senhores autarcas.

A este propósito vale ainda a pena ler o editorial do director da revista onde se revela que Miguel Pinto Luz deixou de entregar aos serviços da autarquia as facturas dos seus repastos a expensas da Câmara Municipal de Cascais com os seus amigos políticos após ser publicada, no ano passado, a reportagem sobre as preferências gastronómicas de Isaltino Morais. Atitude infantil e reveladora de que o actual ministro sabia perfeitamente o que estava a fazer e que tal seria censurável. De outro modo não teria mudado de atitude. Percebeu que mais dia menos dia poderia vir a ser apanhado. E foi. Não se tratou de um simples problema de ingenuidade, ignorância ou diferente interpretação de normas legais, mas uma atitude consciente de abuso a coberto da falta de transparência e de escrutínio público.

Como bem diz Nuno Cunha Rolo, na entrevista que na mesma revista dá sobre essa concepção de “bons costumes” do(s) autarca(s) de Cascais, “não há gestão autárquica privada”, menos ainda quando subsidiada pelo dinheiro dos contribuintes, e que as escolhas que estes responsáveis políticos fazem acabam por reflectir “a qualidade ética e confiável da sua gestão”.

É claro que depois, quando vão a ministros, transportam consigo pela vida fora esse sentimento geral de impunidade.

Que cultivado desde os tempos em que andaram pelas autarquias e empresas delas dependentes, ao jeito de coutadas privadas, de onde ascenderam por um bambúrrio e múltiplas manobras de bastidores, aprendidas nessas associações organizadas de formação de demagogos, populistas e irresponsáveis que são as juventudes partidárias, os guiará até aos mais altos cargos do Estado, assim se assegurando que os melhores trapezistas, não sendo os mais bem preparados e habilitados para o exercício de funções públicas, as exercerão com o maior desprezo pelo escrutínio público, em mais um sinal profundo do grau de degenerescência ética e moral atingido pelas nossas elites.

Não sei como, nem quando, será possível sairmos deste tugúrio onde nos abrigamos e melhor ou pior, mais ou menos passivamente, vamos convivendo com a mediocridade. Eu convivo muito mal.

Mas ao contrário do que diz a grande Lídia Jorge, na excelente entrevista ao El Pais, publicada em 12 de Outubro pp., e que a Sábado noutra secção também sublinha, nós não criámos uma democracia que permitisse a corrupção ou fomentasse o nepotismo.

Nós permitimos sim que a nossa democracia, exactamente porque as elites que havia envelheceram, fracassaram e se desinteressaram pela formação de uma nova, se deixasse perverter, condescendendo com a banalização da corrupção, do nepotismo e as más práticas, constantemente fechando os olhos e fomentando modelos de sucesso cimentados na esperteza, na ignorância, no culto da frivolidade, que depois alastraram à magistratura, à banca e à classe empresarial, tudo impregnado numa política de robalos, de tacos de golfe, de convites e bilhetes para jogos de futebol, numa multiplicidade de oferendas e prebendas que se perdem no laxismo ético e moral da classe política.

E essa condescendência, essa perversão de valores e de princípios, esse abandalhamento daquilo que é básico e essencial ao futuro de qualquer nação, à defesa da democracia e do Estado de Direito e à formação de novas elites, é o que transparece até no discurso dessa referência senatorial da nossa democracia que é um Marques Mendes, quando a propósito dos hábitos feudais do ministro Pinto Luz na autarquia de Cascais, esclarece o jornalista, desvalorizando esse tipo de comportamentos em jeito de gracejo, ao afirmar que “se só aparece essa factura é porque fui eu que paguei os outros almoços”.

Como se isso desse vontade de rir. E como se a promoção desses almoços de convívio entre amigos e políticos, do partido dele e de “outros quadrantes”, ainda que fosse apenas um, enquanto titulares de cargos políticos e pagos com dinheiros públicos, para se discutirem listas, prepararem congressos ou se gizarem estratégias políticas, empresariais e/ou eleitorais, devessem ser considerados e aceites como banais e até desejáveis.

Sim, porque não consta que de cada vez que um munícipe de Cascais tem um problema para resolver, o vice-presidente da autarquia ou o vereador com o pelouro o convidem para almoçar no Visconde da Luz ou n’ O Pescador para se inteirarem do problema do esgoto em S. Domingos de Rana, da licença que nunca mais é emitida ou do buraco não sinalizado no pavimento da Estrada da Torre que dá cabo das jantes e arrumou com a suspensão de uns quantos carros. Embora estes últimos até pudessem ser considerados mais de trabalho do que aqueles que Pinto Luz partilhou com Sebastião Bugalho, o que agora é militante do PSD e deputado europeu, com Moita de Deus ou Marques Lopes.

E não, não se trata de um qualquer problema decorrente de uma visão miserabilista destas coisas. Ou de não se perceber em que medida esse tipo de atitudes, e o seu culto, visto como sendo um padrão aceitável, é prejudicial à imagem da política e dos políticos, esquecendo-se que por aí também se impulsionam, à mais leve faísca, como ultimamente se tem visto, comportamentos vandalizadores e desafiadores da autoridade do Estado e das instituições entre sectores mais desfavorecidos, dos quais se aproveitam uns quantos gandulos que a nossa sociedade deixou que proliferassem e se reproduzissem sem eira nem beira.

Desconheço se esta gente terá a noção do desprestígio que tudo isto acarreta para a democracia, para os partidos e as instituições do Estado. E de como isso é ofensivo para a generalidade dos cidadãos que trabalha e educa os seus filhos procurando transmitir-lhes o melhor e esperando que um dia sejam cidadãos bem formados, trabalhadores e interessados. Admito mesmo que nunca deverão ter tido tempo para pensar nisso, olhando para tal como questões menores que não dão dinheiro nem enchem os sentidos. Nalguns casos, a apreciar pela voracidade, será mais o bandulho.

O que conheço e sei de muitos destes parolos é que quando se trata de serem eles a pagar a conta do seu próprio bolso começam logo por dizer aos outros que se pode dispensar o couvert,  e estão sempre a iniciar dietas, ou com problemas de falta de apetite, e no final ficam à espera para ver se alguém se chega à frente porque só comeram um queijinho fresco e umas pataniscas.

Existe uma percepção errada, e pelo que se vê e ouve aceite como normal, do que deva ser a utilização das verbas de representação e de cartões de crédito facultados aos titulares de determinados cargos públicos. Como antes havia em relação às viagens. Quem não se recorda das negociatas de deputados com agências de viagens. Procedimento extensivo a membros de diversos governos.

Escasseiam hoje exemplos de servidores públicos que dêem nota de contenção, frugalidade e bom senso no uso que é feito das facilidades inerentes aos cargos políticos. Quase que existe uma convicção generalizada de que se há um limite até X no cartão de crédito pago pela autarquia é preciso gastá-lo, ainda que em finalidades diferentes das que estiveram na base da sua atribuição pelo legislador, apenas porque é possível fazê-lo sem dar nas vistas, cultivando figura de abastado e benemérito, ou porque não serão os subordinados que irão fazer o escrutínio, mesmo que depois o comentem por portas travessas.

Bem pelo contrário. O que vemos em abundância são membros do Governo, autarcas, dirigentes dos partidos políticos, em especial dos estruturantes da nossa democracia, dando os piores exemplos. O caso de Pinto Luz, como antes o de Isaltino Morais, como há dias, noutra vertente, os protagonizados pelo “cantinflas” que faz de chefe da diplomacia, perante chefes militares, e pelo “fedayin” que hoje dirige o PS, em relação à imposição de uma nova lei da rolha aos militantes do partido do senhor Carlos César, a juntar a tantos outros que são motivo de chacota, vergonha e revolta entre tantos dos nossos compatriotas, que olham para a política como uma actividade para chicos-espertos e videirinhos, ultrapassam os limites da mais surreal das imaginações.

Mas é o que temos. E dos outros, dos pirómanos, é melhor nem falar. 

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participação

por Sérgio de Almeida Correia, em 21.03.23

Uma notícia de ontem, do matutino Ponto Final, dava conta de que um antigo deputado, advogado, conhecido homem de negócios e actual presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau, em declarações ao jornal Ou Mun, órgão oficioso da República Popular da China em Macau, em língua chinesa (há também outros dois órgãos oficiosos, um em português e outro em inglês),  que, e cito, "a participação política da população da China é mais elevada do que nos países europeus".

Inicialmente não percebi. Pensei que a participação fosse em excursões para a Rua do Cunha. Depois li melhor e fiquei a saber que era mesmo à participação política que Leonel Alves se estava a referir. E, segundo o simpático benfiquista, "noutros países, incluindo países da Europa, nunca vi uma participação política tão forte e um nível político tão elevado".

Não sei se Leonel Alves estava a referir-se à participação política convencional, à não-convencional ou à ilegal, nem se à nominal, à instrumental, à representativa ou à transformativa, como distinguiu uma autora, nem que indicadores utilizou para medir na China a participação política, nem que outros países, incluindo países europeus, foram objecto da sua perscrutante "observação" política e científica, nem se está a preparar-se para apresentar uma tese inovadora nesse âmbito.

Do pouco que aprendi, estou certo que Arend Lijphart, Tilly, Campbell, Converse, Miller, Downs, Putnam, Inglehart, a Susan Tarrow ou Verba e Nie, entre tantos outros, nunca tiveram essa percepção da participação política na China ao longo de muitas décadas de estudo. Agora os tempos mudaram.

Trata-se de uma pecha que urge colmatar, levando o conhecimento às academias espalhadas pelo mundo.

Nessa medida, com toda a amizade, sugiro-lhe humildemente que escreva um artigo para uma revista científica da área da Ciência Política, mesmo chinesa, já que tratando-se de um cidadão chinês, representante da "minoria étnica" de Macau na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, deverá privilegiar as publicações da sua pátria, para assim dar corpo ao resultado da análise académica em que certamente investiu muito tempo, dando-a a conhecer em primeira mão aos compatriotas das universidades chinesas, pois que será essa a única forma de se poder ter acesso a esses dados e compará-los com as menos conseguidas experiências europeias, americanas e africanas ao nível da participação política.

Na minha modesta condição de residente de Macau, que continua a investigar a participação política em diferentes cenários, ficarei a aguardar que o Ou Mun nos informe desses resultados, fruto da experiência democrática chinesa sob a égide do regularmente escrutinado, em eleições livres, competitivas e participadas, Partido Comunista Chinês. 

Seria para mim uma honra poder comunicar esses dados e resultados, de forma seminal, ao Professor André Freire, à Professora Ana Espírito Santo, à Professora Marina Costa Lobo, ao Professor Pedro Magalhães, ao Professor Marco Lisi, à Professora Emily van-Haute, ao Professor Juan Rodriguéz Teruel, da Universidade de Valência e que foi o meu arguente,  bem como a todos aquelas sumidades que andam há décadas, sem sucesso, percebe-se hoje, a estudar a participação política em todo o mundo e desconhecem os resultados do estudo do "camarada" Leonel Alves. Depois poderia organizar-se um seminário na Europa, tendo-o como convidado especial, ou então, se ele se despachar, convencê-lo a participar no 27.º Congresso Mundial da IPSA, International Political Science Association, em ingês, ou Association Internationale de Science Politique, em francês, que terá lugar, este ano, em Buenos Aires (Argentina). 

Seria interessante comprovar-se, num fórum internacional adequado, que sempre há democracias para além da democracia, e que há uma outra forma, que pelos vistos funciona e até aqui era desconhecida, de encarar a participação política.

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ler

por Sérgio de Almeida Correia, em 02.12.22

Breve História da Democracia - John Keane - Compra Livros na Fnac.pt

"(...) a democracia posiciona-se contra todas as formas de húbris. Considera o poder concentrado cego e, consequentemente, perigoso; pressupõe que aos humanos não deve ser confiado um domínio incontido sobre os seus semelhantes, nem sobre os biomas que estes habitam" (p. 175)

 

O australiano John Keane resolveu escrever um livro que sendo simples, claro e acessível não deixa de ser rigoroso. Fê-lo com elegância e os seus vastos conhecimentos sobre a matéria que aborda, dando-nos uma visão global da evolução daquilo a que se convencionou chamar democracia desde as primeiras assembleias de que há notícia, na Síria-Mesopotâmia, cerca de 2500 a.C., até aos dias hoje.

Basicamente, dividiu a sua história em três grandes períodos que correspondem na sua óptica a diferentes modelos de democracia: democracia de assembleia, democracia representativa e aquilo a que chama de democracia monitorizada.

É esta última que pode suscitar mais controvérsia.

O autor interroga-se sobre o próprio da democracia liberal e não deixa de referir, enaltecendo, apesar de todos os seus defeitos, o exemplo indiano, quando afirma que a Índia constituirá o exemplo acabado de como milhões de pessoas pobres e analfabetas, "sobrecarregadas por uma miséria de proporções confrangedoras", "rejeitaram o preconceito de que um país tem de ser rico antes de ser democrático" (p. 143).

Apoiando-se no teólogo estado-unidense Reinhold Niebuhr, remete-nos para uma frase famosa deste ("A aptidão do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a tendência do homem para a injustiça torna a democracia necessária") que em seu entender terá estado na base de uma nova compreensão da democracia "como um contínuo escrutínio público, moderando e controlando o poder segundo padrões 'mais profundos' e mais universais do que os antigos princípios de eleições periódicas, governo pela maioria e soberania popular".

Segundo Keane, a democracia monitorizada "está associada às sociedades saturadas pelos meios multimédia – cujas estruturas de poder são acompanhadas e combatidas de forma permanente pelos cidadãos e seus representantes no âmbito dos ecossitemas dos meios digitais", numa espécie de "mundo de abundância comunicativa" que é estruturado por "dispositivos mediáticos que combinam o texto, o som e a imagem", permitindo uma "comunicação por vias de múltiplas plataformas de utilizadores, no âmbito de redes globais moduladas, acessíveis a muitas centenas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo"; afirmando-nos que "a democracia monitorizada e as redes mediáticas informatizadas são gémeas siamesas".  "Se a nova galáxia de abundância comunicativa implodisse subitamente, é provável que a democracia monitorizada não sobrevivesse" (p. 156).

A pandemia e as suas implicações, cada vez mais presentes pelo que se está a passar na China, a tal "democracia que funciona" e que os seus arautos propagandeavam, teve, e tem, implicações na distribuição de riqueza, no bem-estar e no emprego, sendo por isso mesmo questões políticas incontornáveis.

Com evidente oportunidade, cita James Mill e remete-nos para a lembrança de que "se o fim do Governo é produzir a maior felicidade do maior número, esse fim não pode ser alcançado fazendo o maior número de escravos" (p. 187).

Trata-se, afinal, como ele escreve, de "pensar a democracia como guardiã da diversidade do pensamento livre e defensora do poder publicamente responsabilizado", o que tornará a sua ética mais capaz, "mais universalmente tolerante das diferentes e conflituosas definições de democracia", capaz, por isso mesmo, de "respeitar a frágil complexidade dos nossos mundos humanos e não humanos" (p. 174).

Ideias interessantes, conceitos discutíveis, num livro que abre novas pistas de discussão e acaba por ser, nessa medida, intelectualmente estimulante.

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parabéns

por Sérgio de Almeida Correia, em 05.03.20

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Desconheço em que dados (científicos) a autora se baseou, porque não os apresenta, para concluir que "[e]xiste, no mundo ocidental, uma generalizada desconfiança e um generalizado desencanto com a Democracia". 

Não sei mesmo de que "mundo ocidental" fala, nem se Hong Kong, por exemplo, cabe nesse seu conceito, percebendo-se pela prosápia que a articulista confunde o desencanto com os partidos e os dirigentes políticos com o desencanto com a democracia. 

É natural que assim seja para quem veio dos cafundéus do marxismo-leninismo.

Não sei se em breve nos brindará com um texto em que concluirá supinamente pela excelência das conquistas dos regimes autoritários e totalitários, certamente os mais adequados à gestão de sociedades globalizadas, de ciganos, negros e refugiados económicos. 

Mas em dia de aniversário do Público, sabendo-se do contributo que este jornal deu para que os órfãos do maoísmo pudessem pregar nas suas páginas as virtudes do liberalismo puro e duro e do capitalismo desenfreado, mantendo o seu espaço na imperfeita democracia que ainda assim construímos, nada melhor do que o texto de hoje a questionar a adequação da democracia aos tempos da globalização.

Enquanto o People's Daily não promover a tradução para chinês, deixo aqui o link para a bonifácia homenagem aos trinta anos do Público. Um jornal, como se escreve no editorial desta manhã, "que não prescinde de cultivar a diversidade de opinião", o "cimento das sociedades livres".

Melhor homenagem e prova da sua importância na construção de uma sociedade plural, tolerante e democrática, e num mundo globalizado, não poderia haver.

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diferenças

por Sérgio de Almeida Correia, em 05.12.19

One enjoyed a sunny Canadian mansion while the other enjoyed the cold and damp detention cell in Shenzhen"

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democracia

por Sérgio de Almeida Correia, em 14.08.19

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Desconheço qual seja o critério de José Pacheco Pereira (Visão, 14/09/2019, p.35) para classificar Hong Kong como uma democracia.

Se uma terra onde o Chefe do Executivo, que tem de merecer aprovação de Pequim, e o órgão legislativo não são escolhidos por sufrágio directo e universal pode ser considerada uma democracia, então as teses do cronista estão muito próximas das do PCC e da Dra. Sónia Chan, que ainda há dias na Assembleia Legislativa também considerou Macau uma democracia.

Hong Kong, como Macau, não é, nunca foi, uma democracia. Por mais cambalhotas que se dê. E é exactamente por Hong Kong não ser uma democracia, e ter sido prometido à sua população, nos artigos 45.º e 68.º da Lei Básica, a democracia e o sufrágio universal, que ali se luta. Não é pela manutenção do status quo deixado pelos ingleses que se trava o combate. Fosse isto e a senhora Carrie Lam e as forças pró-Pequim estariam felizes e contentes.

Um cronista não se pode deixar iludir pelas bandeiras que vê nas reportagens televisivas.

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leituras

por Sérgio de Almeida Correia, em 29.08.18

"In politics, you have to wear your choices"

 

"Politicians will often have to choose which of their commitments to prioritise in a given context, and this decision is likely to be conditioned by both the strength of their endorsement and basic strategic considerations. Two key points follow. First, that the refusal to fall victim to wishful thinking about what can be achieved is an epistemic virtue politicians of integrity must display. Second, as the dirty hands literature suggests, good political leaders may often have to act in direct contravention of some of their deepest convictions to avoid serious disasters (Walzer, 2007). Given that political integrity is a matter of balancing the demands of one’s role, and one’s deep commitments, such decisions do not necessarily betray one’s political integrity, because avoiding great disasters is one of the most central role-based obligations at play."

 

Por o tema ser de todos os tempos e não se tratar de um texto muito denso, hoje achei por bem aqui deixar uma pequena sugestão de leitura.

O texto é de Edward Hall, bastante recente, tem por título "Integrity in democratic politics", saiu no The British Journal of Politics and International Relations, 2018, Vol. 20 (2), 395-408, e temos a sorte de o ter disponível em acesso livre. Não sei se assim permanecerá por muito tempo, por isso o melhor é aproveitarem. Os que se interessam pelo tema, obviamente.

Tenho muitas dúvidas sobre as conclusões a que Hall chega, talvez porque eu tenha uma concepção do conceito demasiado antiquada, dirão alguns, ou excessivamente rígida, apostarão outros.

De qualquer modo, serviu para me ajudar a fazer uma reflexão sobre o tema e olhar para hipóteses que nunca me tinham ocorrido. Eventualmente até poderão estar correctas, mas não é isso que por agora importa.

Ler os outros para se aprender e se pensar um pouco melhor é um dos exercícios mais salutares que conheço. E dos mais baratos.

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rio

por Sérgio de Almeida Correia, em 20.01.18

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 (DN/Pedro Grandeiro/Global Imagens)

 

Da vitória de Rui Rio, neste momento, pouco mais se poderá dizer de que ainda estão todos a digeri-la. Os militantes e simpatizantes do PSD e os dos outros partidos.

Em o todo caso, o resultado alcançado não deixa de ser lisonjeiro para o vencedor. Participaram menos militantes do que em 2010, mas bem mais do que nas três anteriores eleições, tendo o líder sido eleito com mais votos do que Passos Coelho nos três anteriores escrutínios, ou do que aqueles que foram obtidos, respectivamente, por Marques Mendes, Menezes e Ferreira Leite em 2006, 2007 e 2008.

O partido sai dividido, mas o resultado apresentado por Rio é melhor do que inicialmente se poderia esperar, atendendo aos anti-corpos que contra si existiam. O carisma de Santana Lopes, a sua experiência, a empatia com as bases, e o facto de ser um antigo líder e ex-primeiro ministro foram insuficientes para derrotarem Rui Rio. O resultado de Santana Lopes, acima dos 45%, longe de ser uma humilhação – Paulo Rangel obteve 34,44% em 2010 – coloca um ponto final nas suas ambições. Talvez esteja na hora de deixar de "andar por aí".

Claramente fracturado – a sul do Tejo, Rio só venceu em Faro – o partido vai ter necessariamente de se unir para construir uma alternativa de Governo, embora a perspectiva de lá chegar, salvo uma catadupa de erros políticos de António Costa, se afigure por agora como remota.

Rio tem desde já a tarefa de começar a arrumar a casa, libertando o partido dos "emplastros" de que se rodeou Passos Coelho e que ajudaram a afundar a anterior liderança, trocando-os por gente mais bem preparada, politicamente mais qualificada e que seja capaz de navegar pelas questões de actualidade sem ignorância e arremedos populistas. A ver se com Rio não aparece outro deputado a dizer que o Governo anterior tinha "proibido" a legionella.

A presença ao lado de Rio, no discurso de vitória, para além do presidente da sua Comissão de Honra, do experiente Nuno Morais Sarmento, que nos últimos anos tem sido um dos críticos do caminho trilhado pelo PSD e da forma como o partido se deixou enredar pela estratégia de grupos, grupinhos e grupelhos ligados aos jotinhas e ao poderoso lobby autárquico, não pode deixar de ser visto como um sinal da necessidade de mudança e de ser conferido outro peso, político e jurídico, à direcção do partido.

Para o CDS-PP a ascensão de Rio à liderança do PSD será factor de risco acrescido para o seu crescimento e sobrevivência com alguma dimensão que lhe permita voltar a aspirar a ser governo. As hipóteses do CDS-PP manter o actual protagonismo tenderão a esfumar-se. Com Rio, o acantonamento à direita tornar-se-á mais evidente, ficando mais difícil a pesca nas águas do centrão.

Quanto ao PS convém que tenha presente que a aliança à esquerda começará a ser mais periclitante à medida que nos formos aproximando do final da legislatura e o cenário eleitoral for ganhando contornos. A novela da Auto-Europa está aí a prová-lo, funcionando como balão de ensaio de alguns movimentos à sua esquerda. Neste cenário não será de colocar de lado um reforço da liderança de António Costa, com o consequente cerrar de fileiras dos seus indefectíveis e do partido em torno do líder. A evolução da conjuntura económica e os resultados em matéria de finanças públicas têm ajudado a manter a vela enfunada, mas daqui para a frente vai ser preciso algo de mais sólido. A margem de tolerância ficará cada vez mais reduzida.

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polónia

por Sérgio de Almeida Correia, em 09.08.17

"The PiS left a long trail of documentary evidence of its hostility to the liberal-democratic model and its preference for paternalistic authoritarianism, probably closest to Salazar-era Portugal, perhaps: an all-pervasive state, backed by a state church, with corporatist economic and social arrangements, presided over by a “father of the nation” figure, and with the loyalty of key groups — including party functionaries, the military and security services — secured by opportunities for self-enrichment familiar from other cases of authoritarian clientelism."

Penso que vale a pena ler o artigo do Washington Post, apesar de já ter uns dias, e aceder aos links. Os comentários ficam para os sabichões do costume.

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lisura

por Sérgio de Almeida Correia, em 21.07.17

O que é relatado pelo Observador numa reportagem que tem o sugestivo título de "Carrinhas, listagens e cacicagem" deve dar inspiração e autoridade aos líderes do maior partido da oposição para se pronunciarem sobre a transparência dos acordos dos "geringonços".

Infelizmente, é disto que tem sido feita a democracia interna dos nossos maiores partidos. É assim que se chega ao poder.

Lá onde estão, homens da estirpe de um Francisco Sá Carneiro, de um Miguel Veiga ou de um Magalhães Mota, apesar de tudo o que aconteceu, não devem ter palavras para caracterizar a situação a que esse partido de Pedros chegou. Talvez seja hora de dizerem aos seus enviados na terra para arranjarem outro, deixando o que hoje existe com os Pedros que controlam as carrinhas e as quotas. 

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westminster

por Sérgio de Almeida Correia, em 03.02.17

Falar de democracia é falar do que se passa no Reino Unido e no parlamento britânico. Neste caso numa das suas câmaras, a House of Commons. Ontem foi votada a lei que permitirá à primeira-ministra Theresa May iniciar o processo negocial de saída do Reino Unido da União Europeia. Depois de suceder a David Cameron na liderança dos Tories, em Julho passado, May foi obrigada pelo Supremo Tribunal, na sequência de uma decisão que teve 8 votos favoráveis e 3 contra, a pedir autorização ao parlamento para desencadear o mecanismo legalmente previsto para o abandono. Na sequência dessa autorização, o assunto foi levado ao parlamento que ontem deu o seu acordo à lei e autorizou a primeira-ministra a accionar o processo do artigo 50.º do Tratado de Lisboa.

Theresa May não chegou ao poder em resultado de uma qualquer vitória eleitoral, mas em consequência do referendo conduzido pelo seu antecessor David Cameron, mas nem por isso tem menos legitimidade política de acordo com as regras vigentes em Westminster. Já se esperava que a lei fosse aprovada e isso veio efectivamente a ocorrer com uma votação esmagadora de 498 a favor e 114 contra. Entre estes últimos estão os 49 votos dos deputados do Scotish National Party. Dir-se-á que uma vez mais a democracia funcionou, embora possa haver quem estranhe o resultado desequilibrado da votação tendo em atenção a distribuição de deputados entre os diversos partidos. Mas sobre este ponto a explicação é simples: a democracia funcionou. Apesar de 47 deputados trabalhistas terem violado a disciplina de voto imposta pela direcção do Partido Trabalhista aos seus parlamentares, o Labour votou a favor.

Em tudo isto, apesar do que possa à primeira vista parecer, há uma coerência notável. Até mesmo por parte daqueles que votaram contra o diploma mantendo-se fiéis às suas convicções. E encontra explicação naquele que terá sido, porventura, um dos mais notáveis discursos dos últimos anos proferido naquela casa. Refiro-me ao discurso de Sir Keir Starmer, deputado do Partido Trabalhista eleito pelo círculo de Holborn and St. Pancras. Convido os leitores a ouvirem esse discurso na íntegra e as explicações que ele dá para o sentido de voto do Labour, apesar da sua oposição à saída da União Europeia, e que se resume numa única frase: "We are in the Labour Party, above all, democrats". E como democratas limitaram-se a respeitar a vontade do povo cumprindo o formalismo necessário.

Quando oiço as palavras de Starmer e recordo o que ele disse, ao olhar para o que habitualmente se passa em Portugal, na Assembleia da República, não posso deixar de registar o quanto estamos longe disto. O Reino Unido poderá sair da União Europeia, certamente irá fazê-lo, mas a Europa jamais se livrará do exemplo que vem do outro lado da Mancha, do espírito de Westminster. Democracia foi o que ali se passou ontem. Tomem nota.

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livros

por Sérgio de Almeida Correia, em 12.01.16

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O desaparecimento, ausência, rapto, fuga não esclarecida, chame-se-lhe o que se quiser, de Lee Bo dura há quase duas semanas e continua a fazer manchetes. Famoso por editar e vender livros críticos para com o regime chinês, o facto é que decorrido todo este tempo continuam a faltar as explicações para o que aconteceu. O livreiro e editor Lee Bo não morria de amores pela "democracia" vigente do outro lado, sendo conhecidas desde há muito as suas posições críticas para com o governo chinês e as políticas de Pequim em matéria de liberdades e direitos humanos. Dizer que foi raptado parece à partida uma explicação demasiado simplista. Numa entrevista relativamente recente o visado dera a entender que não se preocupava com o que lhe pudesse suceder porque em Hong Kong (HK) se sentia confortável e não fazia tenções de viajar para o lado de lá da fronteira que separa HK de Shenzhen. O mistério parece insolúvel, não havendo quem do lado da RPC preste os esclarecimentos necessários sobre o que possa ter sucedido.

As declarações prestadas pelas autoridades de HK, para além de não fugirem à subserviência habitual, deixam no ar a ideia de que nem tudo o que pode ser feito para desvendar o imbróglio está a ser conduzido. Escasseiam as informações e a confusão tornou-se maior quando a mulher do ausente, depois de ter participado o desaparecimento do marido às autoridades, foi ela própria desistir da participação apresentada alegando que um amigo do marido recebera um fax e lhe telefonara a esclarecer que estava tudo bem. A explicação soou a falso e evidentemente que qualquer outra pessoa colocada na situação da mulher de Lee não ficaria satisfeita com o telefonema recebido. Lee Bo também não era polícia nem investigador criminal não se percebendo a que propósito iria prestar apoio às autoridades chinesas numa investigação sobre a qual a RPC nada diz.

Em Taiwan, a Central News Agency publicou a carta que se supõe ter sido manuscrita por Lee e enviada por fax para a Causeway Bay Books, onde o livreiro pede aos trabalhadores que continuem a laborar normalmente. Mais estranho é que tivesse telefonado para a mulher e lhe tivesse falado em mandarim quando na antiga colónia britânica a comunicação se faz normalmente em cantonense e fosse neste dialecto que normalmente se entendesse com ela. Por agora há apenas uma certeza: Lee não saiu de HK pelos postos fronteiriços oficiais.

Este dado não tem passado despercebido e quaisquer que sejam as razões para o que está a acontecer mereceu ontem, finalmente, uma tomada de posição mais firme durante a cerimónia de abertura do ano judicial de HK por parte de Rimsky Yuen Kwok-keung, o Secretário para a Justiça, quando afirmou que não seriam toleradas investigações não autorizadas nem prisões ilegais, e que as preocupações da sociedade são totalmente compreensíveis e devem ser tratadas adequadamente.

Também o principal magistrado, o Chief Justice Geoffrey Ma Tao-li, recordou a protecção constitucional de que gozam os direitos e as liberdades dos cidadãos de HK através da sua mini-constituicão. No domingo, 3500 pessoas marcharam pelas ruas da ilha em protesto contra o desaparecimento de Lee e dos outros associados exigindo a sua "libertação", a despeito de um vídeo que aparentemente foi enviado por aquele à sua mulher pedindo às pessoas que mantivessem a calma e não se manifestassem.

Quaisquer que sejam as razões para o que se está a passar, os dias passam sem que o mistério se desvende e a população seja tranquilizada, numa altura em que se aproxima rapidamente 16 de Janeiro, data em que terão lugar as eleições em Taiwan para escolha do Presidente, do vice-Presidente e de 113 deputados. Como estas coisas andam todas interligadas, esta manhã, o editorial do influente South China Morning Post voltava a colocar o dedo na ferida e de forma contundente afirmava que as autoridades dos dois lados da fronteira "não fazem nada para manter a confiança no princípio "um país, dois sistemas" que é o fundamento da governação de Hong Kong", logo acrescentando que "o público precisa de respostas e garantias de autoridades credíveis", pois que continua a aguardar por "explicações convincentes" para o desaparecimento de Lee e dos outros, um após outro, desde há um ano.

Contrastando com a atenção e preocupação da população de HK sobre o desaparecimento de Lee Bo, mas dando mostras do seu apreço pela herança portuguesa nessa matéria, em Macau, a cultura cívica dos seus cidadãos continua a manifestar a habitual indiferença e alheamento sobre a sorte dos vizinhos. Porventura por isso é que também nenhum corajoso condecorado com a Torre e Espada tenha até agora dito qualquer coisa sobre o silêncio de Pequim e o que se está a passar. Compreende-se que depois da prontidão manifestada para condenar os milhares de cidadãos de HK que saíram à rua com o movimento "Occupy Central", que clamavam por democracia, nesta altura, para alguns, os euros ou os dólares acabem por falar mais alto. Livros, editores, combate político, democracia e direitos humanos nunca foram coisas que dessem dinheiro. A não ser para esses mesmos alguns.

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yes-men

por Sérgio de Almeida Correia, em 19.06.15

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Em Pequim ainda devem estar a pensar se o que aconteceu ontem em Hong Kong, no Legislative Council (Legco), com a votação do pacote de medidas preparado pelo Governo de C.Y. Leung, através da Secretária Carrie Lam, tendente a uma pseudo-reforma democrática das leis eleitorais, resultou de um guião mau preparado, de dificuldades de comunicação ou da pura e simples má qualidade dos actores que a China escolheu para defender os seus interesses naquela Região Administrativa Especial.

De há muito que se sabia qual é que seria, previsivelmente, o sentido de voto dos deputados: de um lado estariam os pró-Pequim, sempre prontos a apoiarem todas as indicações que lhes chegassem da "Mãe-Pátria", do outro os hongkongers do campo democrático (Pan-democrats), que depois das manifestações de rua do ano passado, que tantos incómodos causaram, já tinham anunciado que iriam votar contra e bloquear a reforma semi-democrática que lhes era oferecida.

Para quem não acompanhou o início da discussão, convirá esclarecer que à semelhança do que acontece em Macau só uma parte dos membros do Legco é que é eleita por sufrágio directo. Dos seus membros há trinta que são eleitos por sufrágio indirecto. De acordo com a Lei Básica de Hong Kong, texto para-constitucional da Região, hoje vista como a Magna Carta dos seus cidadãos, o artigo 68.º estatui como objectivo último a eleição por sufrágio universal de todos os membros do Legco, havendo idêntico artigo para a eleição do Chefe do Executivo. O que o Governo de Hong Kong preparou, de acordo com as directivas de Pequim, foi um pacote de reformas que previa, entre outras coisas, um sufrágio universal condicionado para a escolha do próximo Chefe do Executivo, que terá lugar em 2017. Condicionado porque o princípio "one man, one vote" iria depender de um esquema de pré-aprovação, por parte de Pequim, dos candidatos que se apresentassem a sufrágio, com o seu número limitado a três. Importa também referir que o número de forças políticas representado no Legco é elevado (16), dividindo-se entre os dois campos (Pró-Pequim e Pan-democratas) e que dos Independentes há 8 pró-Pequim e 3 que não alinham com nenhum dos lados e procuram manter-se equidistantes, pelo menos em teoria.

Os democratas sempre rejeitaram reformas mitigadas, muitas vezes recordando que existia um compromisso político e legal que devia ser respeitado e que a introdução de uma democracia com regras distorcidas, que não contemplasse a eleição directa e por sufrágio universal, sem condicionamentos de qualquer ordem, do próximo Chefe do Executivo, seria uma violação das garantias constitucionais da Região e da palavra de Pequim. Alguns ainda argumentaram que apesar dos constrangimentos introduzidos sempre seria preferível uma eleição em que todos os cidadãos participassem - coisa que nunca aconteceu no tempo da administração colonial - com candidatos pré-escolhidos, do que a continuação do actual esquema que, pelos vistos, também não tem dado bons resultados, tantos e tão graves têm sido os problemas ocorridos em Hong Kong, quer numa perspectiva política, com sucessivos casos de corrupção envolvendo os mais altos dirigentes escolhidos com o aval da China, quer numa perspectiva estritamente económica.

A aprovação do pacote de medidas estava, em todo o caso, dependente de uma maioria de 2/3, que só seria atingível com votos do campo democrático. Logo, o risco à partida já era grande se os 27 deputados do campo Pan-Democrático votassem. Mas o que aconteceu foi que momentos antes da votação, 31 dos membros apoiantes do governo de Hong Kong, alegando o atraso de um dos seus (Lau Wong-fat) para a votação, ao que parece retido em razão do congestionado trânsito da cidade, abandonaram o hemiciclo confiando que a votação iria ser adiada, logo aí revelando desconhecimento do regimento do Legco. Sucedeu que a votação não era passível de adiamento e a seguir teve lugar o chumbo da proposta do governo de Hong Kong. A votação registou 28 votos contra, 27 votos do lado democrático complementados com mais um voto de um membro pró-Pequim, oito a favor e nenhuma abstenção. 

Para lá da ignorância e falta de coordenação que as forças pró-Pequim revelaram, para o governo de Hong Kong e para Pequim o resultado, como escrevia esta manhã o South China Morning Post, foi um fiasco. Mas mais importante do que a risada geral que provocou  -  "Alliance chairman Andrew Leung Kwan-yuen said he went to Beijing's liason office yesterday afternoon with several party colleagues to tell a deputy director what happened. Meanwhile, according to Liberal Party sources, senior liaison office officials called party leader Vincent Fung Kang at about 1pm yesterday to praise its lawmakers." (SCMP) -, é saber que consequências podem daqui resultar. Para Hong Kong, para Macau e para a própria China.

O campo político da Hong Kong há muito que está extremado, não havendo sinais que permitam pensar que daqui para a frente vai ser diferente. O impasse deverá continuar, salvo se alguém tiver o bom senso de propor uma solução transitória que salve a face das duas partes e permita o recomeço do diálogo, eventualmente assente noutras bases e novos compromissos. Em todo o caso, um endurecimento das posições de Pequim e uma revisão daquela que tem sido a sua política em relação a Hong Kong não será de excluir. 

Para a China, numa perspectiva interna, as consequências serão nenhumas. A não ser em relação àquilo que já era conhecido. Isto é, a confirmação de que existe dificuldade em aceitar as regras do jogo democrático e confiar a gestão de Hong Kong ao seu povo. E se é assim em Hong Kong, é natural que os democratas de um lado e do outro lado dos Novos Territórios tenham razões para continuar apreensivos, tanto mais que Pequim já veio ridiculamente criticar os Pan-democratas por estarem, imagine-se, a obstruir o desenvolvimento democrático de Hong Kong.

Quanto a Macau, as consequências podem também ser nenhumas. O que aconteceu em Hong Kong poderá, quando muito, tornar mais medrosa, mais acomodada e mais subserviente uma governação - e refiro-me à última década - que tem dado constantes mostras de fraqueza, obediência, falta de arrojo e de visão estratégica. E, ao mesmo tempo, acalmar as hostes democráticas locais, mantendo-as na expectativa sobre o que se irá passar em Hong Kong antes de decidirem avançar com novas formas de pressão e renovadas exigências, no que só revelarão bom senso.

Há, ainda, uma outra conclusão a extrair. E esta diz respeito a todos, quer estejam em Hong Kong, em Macau, na China, em Portugal ou em qualquer outro lado: o recurso aos yes-men para garantir a permanência no poder e concretizar políticas, além de revelar a pouca inteligência de quem os escolhe, é sempre um risco muito grande. A idiotia, como a verdade, vem sempre à superfície e, normalmente, sob as formas menos esperadas e mais caricatas. 

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cuba

por Sérgio de Almeida Correia, em 11.05.15

Llegada-al-Vaticano-del-Presidente-cubano-Foto-580

 (foto: Vaticano)

O modo como Cuba está a fazer a transição do socialismo puro e duro, herdado de Fidel, para um modelo, que ainda não se sabe qual é, mais consentâneo com os valores globalizadores da liberdade e da democracia, tem vindo a afirmar-se de forma discreta e, ao mesmo tempo, a meu ver, inteligente.

Não sei até onde poderá ir a abertura cubana, nem se o restabelecimento de relações diplomáticas normais entre Cuba e os Estados Unidos da América conduzirá à implantação da democracia. De qualquer modo, penso que não será difícil imaginar, pelos sinais que nos chegam, que o que vier terá todas as condições para ser melhor, do ponto de vista dos direitos humanos, da liberdade, da democracia, do apoio da comunidade internacional e da qualidade de vida dos cubanos, do que o testemunho que foi recebido.

Sem grande alarido, nem declarações excessivas, Cuba parece reencontrar o seu espaço, que no caso implica também uma mudança no seu relacionamento com o Vaticano, o que é capaz de deixar apreensivos os mais fiéis guevaristas. E, às vezes, são pequenos (grandes) pormenores que, passando despercebidos na comunicação social, vão marcando a diferença. É certo que persistem algumas contradições quando tudo isto acontece ao mesmo tempo que é publicado um artigo de Fidel com o sugestivo título de "Nuestro derecho a ser Marxistas-Leninistas", mas essas serão arestas que o tempo se encarregará de limar.

Embora tenha sido assinalado o carácter privado da visita de Raúl Castro ao Vaticano, não deixa de ser irónico que o Presidente cubano se tenha feito acompanhar, para além de um vice-presidente do Conselho de Ministros e do chanceler Bruno Rodriguez Parilla, do ministro das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba, Leopoldo Cintra Frías. Notar-se-á que Castro também chegou ao Vaticano num belíssimo Maserati, com a bandeira de Cuba, para visitar um Papa que se tem afirmado, entre outras coisas, pelo seu desapego ao luxo e aos sinais exteriores de opulência, aliás em coerência com aquilo que tem publicamente defendido, é a sua prática e constitui o seu pensamento.

Sem colocar em causa o caminho que está a ser seguido, que vejo com satisfação pelos benefícios que poderá trazer a todos os cubanos e pelo clima de paz e segurança que transporta para as Caraíbas, espero igualmente que em nome da verdade, e por respeito para com todos aqueles que sofreram os horrores da ditadura, o facto da Revolução Cubana e das suas Forças Armadas Revolucionárias passarem a estar abençoadas não faça Francisco esquecer-se dos excessos que em nome delas foram cometidos. 

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provocação

por Sérgio de Almeida Correia, em 08.01.15

sabir-nazar1.jpgJá andava há uns meses tentado a escrever algumas linhas sobre uma reflexão que ultimamente me causticava o espírito em razão de textos e comentários que por aí vou lendo. O absurdo episódio de ontem obrigou-me a não deixar passar mais tempo. De certa forma, revejo-me nos que foram surpreendidos pela barbárie e que pagaram com a vida o preço de uma liberdade que as democracias se revelam cada vez mais incapazes de defender.

Não tenho qualquer dúvida que a liberdade de expressão, em todas as suas manifestações, não é um valor fundamental das sociedades democráticas. A liberdade de expressão é o valor matricial da democracia. A raiz que saída do pensamento dá luz a tudo o que necessita de se revelar aos olhos e ouvidos dos nossos semelhantes.

Se me pedissem para colocar numa escala hierarquizada as liberdades, confesso que não hesitaria em colocar, logo a seguir à liberdade de pensamento, a liberdade de expressão. É a liberdade de expressão que dá sentido ao que na nossa intimidade, em qualquer solidão, somos capazes de pensar. Sem liberdade de expressão não há pensamento articulável. Sem ela estaremos no campo da ausência de construção, sem instrumentos de composição. Só vale a pena pensar se formos capazes de construir e exprimir o que pensamos. De torná-lo acessível e estimulável pelo permanente exercício da liberdade de expressão. O modo como esta se revela é que pode tornar-se problemático porque nem todos pensamos da mesma maneira, nem todos pensam com a mesma desenvoltura, não escrevem todos o mesmo, com igual facilidade nem sob a mesma forma, e a arte do desenho, da caricatura, da composição gráfica ou gestual não foram distribuídas por igual entre todos nós. Expressamos a nossa liberdade pelas formas que nos estão ao alcance, usando as armas que melhor sabemos manejar.

Acontece que alguns de nós as manejam exemplarmente, o que faz com que a forma como esse exercício se processa também não seja igualmente compreensível por todos nós. Se não segue a mesma bitola também não se rege pelos mesmos cânones. E é aqui que perante a incompreensão, o insulto, a obscenidade, quantas vezes por simples deficiência na recepção da mensagem, somos confrontados com a barbárie. O que aconteceu na redacção do Charlie Hebdo foi o encontro da liberdade de pensamento expressa através do desenho com a incompreensão da mensagem na sua forma mais bárbara.

A dimensão desta incompreensão, antes de ser um problema da democracia, é uma questão que diz respeito a cada um de nós, cartoonista ou não, cuja resposta deverá ser encontrada na formulação de uma simples pergunta: qual o sentido da provocação?

Admito que sou por natureza um provocador. Mais quando pretendo estimular em quem me escuta ou me lê uma reacção, um movimento de resposta, de geração da discussão, de insatisfação. Perante um problema, ao manifestar o meu direito à opinião, gosto de provocar os que me escutam, os que me lêem. Porque entendo que só dessa forma a própria clareza da ideia pode sobressair e ser mais facilmente entendida pelo destinatário. Essa será a única forma, ou pelo menos a mais fácil, à laia de um beliscão, de provocar o receptor acomodado.

A provocação é um risco que só valerá a pena correr se conduzir ao efeito pretendido. Saber até que ponto a provocação vale a pena não é questão de somenos. E há dois pontos em que a provocação se torna irrelevante: 1) quando não é entendida pelo destinatário; 2) quando se torna inócua. A provocação irrelevante deixa de servir os seus propósitos. Por ignorância, incapacidade intelectual ou défice de comunicação a provocação irrelevante conduzirá, em regra, à reacção desproporcionada, desajustada, por vezes ofensiva. Na segunda situação gera a indiferença e nada mais.

Proteger a liberdade de expressão é garantir a liberdade de pensamento. Às democracias, a todos nós, compete-nos proteger a primeira se se quiser continuar a pensar livremente. E a protecção daquela passa por assegurar o exercício do direito à provocação. Até que esta no seu percurso se torne irrelevante. De caminho poderá causar incomodidade, insatisfação, desconforto, até ofender. A ofensa não torna a provocação menos legítima. Ou desmerecedora de protecção. Porque contra a ofensa, nas democracias, há sempre remédio. Talvez seja isto o que nos afaste deles. Quando não se conhece desconfia-se. Quando se ignora não se acredita.

O Estado de direito é hoje o estado da provocação permanente. Por isso se torna tão imperioso protegê-lo. E é preciso que eles o entendam pela única forma que pode tornar a provocação irrelevante: a educação na liberdade e na responsabilidade. Com a Bíblia, a Tora ou o Corão na mão, se necessário for. Como fizeram os cartoonistas do Charlie Hebdo. E como fazem homens como Sabir Nazar. No Paquistão. Até que a provocação se torne irrelevante. Até que gere a indiferença.

A provocação também se educa.

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