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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Regresso à leitura da actualidade local. Com excepção das habituais tiradas, começam a saltar à vista as "trapalhadas" do concurso que decorre para atribuição de seis concessões de jogo em casino.
A infelicidade de algumas das alterações introduzidas na legislação, o tempo que aquelas demoraram a ser paridas pelas entidades competentes, a deficientíssima técnica legislativa e as lacunas que ainda assim foram imediatamente perceptíveis, aliadas, mais recentemente, à confusão entretanto gerada com a ausência antecipada de critérios quanto ao peso dos factores de ponderação que deveriam ser seguidos na análise das propostas, colocando em causa a sua transparência, só por si não augurariam nada de bom.
Se a tudo isto juntarmos a tomada de posição da Asian American junto da Comissão do Concurso, as notícias veiculadas a partir de Pequim, em vésperas do XX Congresso, por Liang Wannian, de que não existe um calendário para saída da política de tolerância zero, sufragadas por declarações de Wang Changbin e Sonny Lo, e na linha de afirmações anteriores do Chefe do Executivo, que quer continuar alinhado com a política de Covid-19 do interior do país, o mínimo que se pode esperar é a continuação do caminho do Governo da RAEM em direcção à irrelevância e ao abismo.
O secretário-geral adjunto do Fórum Macau, ainda em Setembro, teve a coragem de apontar o dedo ao irrealismo oficial. Desconfio que poucos, e certamente nenhum dos que devia ter tomado atenção, terá percebido o que se disse sobre o conteúdo dos discursos.
É por isso mesmo estranho, ou talvez nem tanto, que no cenário actual, numa altura em que as acções das concessionárias descem a todo o vapor, ainda haja quem queira saber "qual a calendarização dos investimentos das futuras concessionárias e quanto é que as operadoras estão dispostas a investir ao longo dos próximos anos". Haja sentido de humor.
Não sei se alguém ligado às concorrentes, desses de quem se espera que "abram os cordões à bolsa", já terá tentado explicar à Comissão que nenhum investidor é louco, e que ninguém está disposto a apostar no escuro, prometendo mundos e fundos, empenhando a sua palavra e o seu património sem saber quando e quantos potenciais clientes irá ter. Nem digo daqui a dois ou três anos, mas daqui a seis ou oito meses.
Sem se saber quando é que Macau abrirá as suas fronteiras, quando voltará a ter uma relação normal com Hong Kong, com carreiras marítimas e de helicóptero, nem quando é que o aeroporto retomará o funcionamento a que nos habituou e se acabará com esta loucura das quarentenas, verdadeira sangria de dinheiros públicos e privados, descendo-se por um dia à realidade e reentrando-se no mundo dos vivos e das pessoas normais, não será possível dar descanso às múmias, aos feiticeiros, aos "académicos", aos moços de recados, e nem mesmo aos censores e polícias encartados da imprensa e das redes sociais.
Gostava de poder pensar que todos têm a noção do que andam a dizer e a fazer. Infelizmente, chego à conclusão de que há quem não veja grande diferença entre organizar um concurso para notários privados ou um festival de fogo de artifício e um concurso internacional que coloca à prova a reputação da China, as suas responsabilidades perante terceiros, e o futuro da RAEM e dos seus residentes.
Enfim, não são coisas que se resolvam levando os investidores internacionais, a Bloomberg, a Reuters ou a France Press numa excursão aos campos de algodão. Isso só resulta com alguns filibusteiros e montanheses que não aprenderam nada nos tempos do garimpo. No mundo empresarial, em especial do jogo, duvido que ainda haja adoradores de totens quando em causa está o valor de títulos cotados em bolsas internacionais. Títulos bilingues e trilingues.
Se alguma virtude teve o anterior concurso, que trouxe a Macau a prosperidade que agora tão facilmente e em tão pouco tempo se delapida, foi a de ter sido conduzido por profissionais.
Esse é hoje, perante aquilo a que se assiste, o maior elogio que nesta matéria — tenho dúvida que haja outras — pode ser feito ao primeiro Chefe do Executivo da RAEM. Apesar de tudo.
E já então foi muito, objecto de crítica e ainda hoje discutido nos tribunais.
Constitui um enigma saber até quando se prolongarão os folhetins ainda em curso, e para quê, se no final nada sobrar de relevante do sistema aqui deixado e se tornar indiferente viver na Taipa ou em Zhuhai. O pastel de nata não sabe ao mesmo na Garrett e em Cantão.
Dir-me-ão que há muitas maneiras de fazer pastéis de nata, é verdade; mas também conheço muitas pastelarias, em locais centrais, que foram ao fundo em pouco tempo. E não foi preciso patrão novo. Bastou mudar a criadagem e entregar a gestão a um chefe de messe.
Espero, de qualquer modo, que alguém se tenha lembrado de distribuir uns coletes aos membros da Comissão. Cheira-me que nem todos saberão nadar.
E, em todo o caso, convirá ter presente que se o barco se afundar nem os pastéis de nata se salvarão. Ninguém come pastéis molhados. E não faltará quem, noutros locais, aparecerá a produzi-los com mais elegância e sem necessidade de coletes ou aventais.
Um barco só se afunda uma vez. A confiança também.
Num país que continua a ter meio milhão de analfabetos, isto é, gente que não sabe ler nem escrever, a desastrada (e inaceitável) intervenção do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior na Assembleia da República pode ter muitas explicações. A começar pelo nervosismo. Essa será uma parte da história mas que, apesar de tudo, não a tornará desculpável.
A um primeiro-ministro que conjugava o verbo haver no plural junta-se agora um ministro que diz "interviu", em vez de interveio, e "tinhemos", em vez de tenhamos. O currículo do ministro pode ser o melhor do mundo, mas não há acordo ortográfico nem reforma educativa que remedeie o que aconteceu.
O ideal era voltarmos todos à Cartilha de João de Deus, a uma edição actualizada e aumentada, e que as televisões organizassem alguns concursos que, em vez de mostrarem analfabetos a dizerem asneiras e a exibirem os cus e as mamas à hora do jantar, ou que ande a perguntar aos concorrentes o preço dos electrodomésticos, os obrigasse a responder a questões sobre a cultura e a língua portuguesa. Um concurso que atribuísse prémios chorudos, em euros, e levasse os concorrentes a estudarem os tempos verbais, os advérbios, os pronomes e a fazerem provas de composição, talvez pudesse operar milagres. E, quem sabe, se até não poderia contar com o patrocínio do Presidente da República eleito e das fundações que por aí temos para levar todo o país a reaprender a ler, a escrever e a dizer. Eu também; que com estes exemplos que nos chegam em cada dia que passa vou desaprendendo e esquecendo o pouco que me ensinaram.