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carlos

por Sérgio de Almeida Correia, em 23.02.18

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 (créditos: Sul Informação)

Esta tarde, no final de mais uma viagem, entrei no terminal do aeroporto e desactivei o modo de voo. Liguei o telemóvel e a notícia caiu de chofre. Fulminante como um raio vindo sabe-se lá de onde. Desta vez não houve tempo para nada. Nem um abraço. Apenas distância.

Conheci-o por intermédio de um casal de amigos comuns que haviam sido seus contemporâneos em Coimbra, na Faculdade de Direito. Há muito que me falavam dele, mas nunca se proporcionara. E quando nos conhecemos foi pelas razões mais estúpidas.

Eu era arguido. Um fulano que exercia (ou exerce) funções no MP, usando o seu soslaio olhar, formalmente correctíssimo, deduzira contra mim uma acusação. Devido ao modo, note-se, como o mandato fora exercido num processo findo. Por puro acinte, o que quem gere a corporação na altura não conseguiu vislumbrar. Não sei se ainda será assim, mas naquele tempo aconteceu.

Daquela vez calhara-me a mim. Acusado de difamação, se bem me recordo. Na contestação, como se impunha, mais a mais estando em causa um fulano que fora acusado de desde a década de Oitenta — altura em que teria aí uns cinco anos de idade — ter participado na constituição de uma associação criminosa, eu fora duro para com a instituição a que ele pertencia, verberara o simulacro de investigação que havia sido conduzido pelas polícias e, como não podia deixar de ser, fora contundente durante o julgamento para com quem patrocinara aquele espectáculo. Quando esse julgamento chegou ao fim, e o meu constituinte foi absolvido das magnas acusações que sobre si impendiam, sobrou para mim.

Houve quem tomando as dores de terceiros se tivesse queixado, para assim se desencadear o processo contra mim, o advogado. E eu lá tive que me ir defender, entrar em despesas, incómodos e chatices, pois claro.

De imediato recebi o apoio do então Bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, logo depois seguido pelo do seu sucessor. E no meu julgamento lá estiveram arroladas como testemunhas, entre outras, um magistrado do MP, entretanto jubilado, aquele que foi o juiz-presidente do tribunal colectivo no tal julgamento do sujeito que fora o meu constituinte — que foi lá para dizer que sim, que era verdade, que eu tinha sido advogado naquele processo, que o meu constituinte fora absolvido e que o vertido nas peças processuais, onde descobriram a pretensa ofensa depois do processo concluído, até fora depois confirmado no acórdão final —, mais o presidente do Conselho Distrital de Faro da Ordem dos Advogados, o meu estimado António Cabrita, e mais uns quantos, entre companheiros de profissão, colegas de curso e amigos.

No dia das alegações finais o senhor procurador que me acusara resolveu não aparecer. Envergonhou-se. Quem veio em representação do MP foi um magistrado mais jovem, novo na comarca, que não acompanhara o processo nem o julgamento, mas que tendo lido o processo e sabendo da prova que havia sido produzida teve a hombridade de pedir logo a minha absolvição. Fui, evidentemente, absolvido. E na sentença lá estava, preto no branco, a afirmação de que fizera, é certo, uma defesa veemente, dentro dos limites, respeitando escrupulosamente as regras deontológicas, actuando como qualquer “bom advogado” se comportaria se colocado perante a mesma situação. Isto é, perante a falsidade, o agravo, em suma, fazendo um uso adequado da toga e dos instrumentos jurídicos, pugnando pela justiça, com arrojo, com dignidade, com frontalidade.

Naturalmente que fiquei satisfeito com o que se apurou. E com dúvidas não fiquei de que, apesar das despesas e dos incómodos por que passei, essa decisão honrou a magistratura portuguesa, reconhecendo o profissionalismo e a seriedade do mandato exercido.

O meu advogado nesse processo, logo a seguir à instrução e por impedimento do primeiro mandatário e nosso comum amigo que o indicara, acabou por ser o Carlos Silva e Sousa, que embora acompanhado pelo Paulo Freitas fez todo o julgamento e as alegações finais. Podia perfeitamente ter recusado o patrocínio. E tinha todas as razões para isso. Era um homem muito ocupado, com uma vida profissional intensíssima, desdobrando-se entre o trabalho no escritório, no partido e na autarquia, sem esquecer os assuntos ligados ao(s) consulado(s). Além de que na altura não me conhecia de lado nenhum e o processo era uma estopada. Nem no dia da leitura da sentença me deixou pagar-lhe o almoço.

Graças a esse episódio por que passei — triste no início, feliz na conclusão — ficámos amigos. Depois disso fiz vários julgamentos em Albufeira. O Carlos tinha aí o seu escritório, do outro lado do Tribunal e da Câmara Municipal. Na altura, creio, já era também o Presidente da Assembleia Municipal. Não obstante, estive com ele muitas vezes. Arranjou sempre tempo para tomar um café comigo, para dois dedos de conversa, para discutir a actualidade política, muito embora soubesse que eu na altura era activo numa agremiação concorrente. Comentava, ria-se, piscava o olho, puxava de um cigarro. E sorria, o Carlos sorria muito, serenamente (entre homens de bem não é a política nem o futebol que os separa porque o carácter é mais forte, é o carácter que os motiva e cria laços).

Foi assim com o Carlos Silva e Sousa. Falou-me dos seus vinhos, das propriedades para os lados de Tavira e da Fuzeta, do processo de regeneração das vinhas, do seu amor à terra e ao que esta produzia, do seu gosto em andar de botas aos fins-de-semana, campo fora, sem preocupações, sentindo os cheiros que chegavam avermelhados na imensidão do azul e da serra. O Carlos Silva e Sousa produziu alguns magníficos néctares. Um dia encontrei-o num pequeno expositor da Feira de São Brás, promovendo os vinhos que ele próprio produzia. Lá estivemos à conversa. Perguntava-me pelos amigos comuns que não via há anos. Comprei-lhe umas caixas de vinho, que o filho me ajudou a transportar até ao carro. Ficámos de combinar uma almoçarada, na quinta dele, com mais alguns. Acabou por nunca se proporcionar.

Ainda nos encontrámos nalgumas outras ocasiões. Tomávamos um café, às vezes, quando eu ia a Albufeira, subia a escada, do outro lado da rua, e passava pelo escritório dele. Ocupado como era raramente estava. E eu também não podia ficar à espera. Falávamos à distância. O abraço ficava adiado. Até hoje. Quando me chegou a notícia do seu falecimento.

O Carlos Silva e Sousa era um tipo de uma correcção extrema, com um humor corrosivo, de sorriso sempre aberto, de uma disponibilidade total para o trabalho, aliando a argúcia e a inteligência do advogado com o equilíbrio e o bom senso dos bons juízes, talvez fruto da herança paterna. Hoje perdemos todos. O Algarve perdeu um cidadão exemplar. E eu fiquei a dever um abraço ao Carlos Silva e Sousa. Um abraço fraterno. De gratidão. A um homem de bem. Um grande abraço.

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medina

por Sérgio de Almeida Correia, em 04.07.17

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(14/1/1931- 3/7/2017)

Advogado, militante socialista, depois independente, fiscalista, homem de Estado, professor, comentador televisivo, cronista, acima de tudo um cidadão interveniente. Com o correr dos anos tornou-se visceral, mais amargo, mas as suas preocupações eram as de sempre: Portugal e os portugueses. Lutou como pôde, sempre com lealdade e frontalidade, de forma corajosa e desassombrada por aquilo em que acreditava. Em Portugal, no mundo, fazem sempre falta homens como ele. Que o seu exemplo cívico, numa terra de gente acomodada, bem comportada e onde não abundam os exemplos possa perdurar. E que descanse em paz.  

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inércia

por Sérgio de Almeida Correia, em 18.08.15

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O preço da inércia (HojeMacau, 18/08/2015)

Muitas têm sido as vozes que em Macau se têm lamentado do constante e inexplicável aumento de preços em relação a bens e produtos de consumo corrente, sejam bebidas engarrafadas ou alimentos, pacotes de sumos, vegetais, legumes, queijo, iogurtes, carne ou peixe, sendo indiferente que estejamos a falar de supermercados, mercados, restaurantes ou de bares e cafés.

Há quem explique esse aumento de preços com a pressão especulativa do imobiliário, argumentando que a carestia excessiva reflecte os altos valores das rendas. Esta poderá ser uma parte da verdade. Todavia, não a esgota, nem serve de justificação para que o mesmo produto, e tanto podem ser iogurtes como queijos, sumos de frutas ou conservas, de uma semana para a outra sofra um aumento de 20, 30 ou 40% no mesmo estabelecimento.
O alto valor que os cidadãos estão a pagar por produtos de supermercado, de pastelaria e café e refeições de má qualidade nos restaurantes, torna-se mais incompreensível quando se tem a possibilidade de comparar aquilo que é oferecido em Macau com o mesmo tipo de produtos e serviços em cidades cuja qualidade de vida é idêntica ou superior, mas em que a carga fiscal é muitíssimo mais alta.
Se em relação a Portugal é possível justificar as diferenças de preços com o empobrecimento verificado nos últimos cinco anos, devido às exigências da troika e à acção do seu governo, o que introduziu um factor de distorção das habituais regras do mercado, já no que respeita a outros países essas diferenças são absurdas. Para melhor se perceber do que falo tomemos alguns exemplos.
Estamos em pleno Agosto, há muita gente de férias e a viajar. Na semana que findou, depois de uma breve passagem por Tóquio, estive em Shimizu, município de Shizuoka, onde fiz várias refeições nos restaurantes locais. O preço por refeição – almoço ou jantar – variou entre 1300 (almoço) e 3714 ienes (jantar), ou seja, entre MOP 84,00 e MOP 239,00.
Pegando no segundo caso, que foi a refeição mais cara, esse valor diz respeito a uma steakhouse, serviu para pagar uma imperial, um bife de vaca (prime US beef filet), com cerca de duzentos gramas, acompanhado de batatas fritas, dois copos de vinho tinto de razoável qualidade e um leite-creme. O valor pago por esta refeição não chegava em Macau para comer apenas um bife, mesmo de qualidade inferior, numa das cantinas da praxe. Prova disso está no facto de depois de regressar ter almoçado num conhecido restaurante português da Taipa, dos económicos, e por um almoço para duas pessoas, composto por uma salada de polvo, dois nairos grelhados, um jarro pequeno de sangria, um pudim e dois cafés ter sido cobrada a quantia de MOP 694,00, em linha com os preços praticados em estabelecimentos similares de Coloane ou Macau. Um bife da vazia custa em regra mais de MOP 200,00, ainda sem taxas, e se for de lombo, quando há, cerca de MOP 300,00 ou mais.
Em Shimizu, um jantar com uma entrada de duas espetadas pequenas de espargos verdes e bacon, um prato principal composto por duas espetadas de camarões, lulas e vieiras, uma dose de batatas fritas e duas cervejas, num restaurante médio recomendado no meu hotel, custou 2440 ienes. Quer dizer, esta refeição ficou por menos de MOP $ 160,00.
Numa cervejaria da Taipa, só uma cerveja de pressão custa cerca de MOP 50,00, a que haverá que acrescentar as taxas respectivas. A mesma cerveja no Japão custou 518 ienes, isto é, MOP 33,00! Uma garrafa de vinho que em Portugal custa menos de 5 euros, custa cá num supermercado MOP 150, e num restaurante mais de MOP 250. Não é o transporte ou o seguro que a encarecem. Um café expresso em Narita fica em 200 ienes, qualquer coisa como MOP 12,80. A mesma bebida num café da cidade custa facilmente mais do que isso. Há dois meses, no Aeroporto de Barajas, em Madrid, paguei menos de MOP 80,00 por um hambúrguer grelhado (que não era de pacote) com batatas fritas e salada. Falo de aeroportos onde em regra os preços são mais altos do que no exterior.
Não vou incomodar os leitores com mais números e exemplos (os preços praticados nos mercados locais em relação ao peixe, ao marisco ou até um a simples ramo de salsa, bem como nalguns estabelecimentos de congelados quanto à carne importada ou em supermercados em relação a vinhos ordinários ou enchidos portugueses são obscenos). Estes chegam para demonstrar como os preços praticados em Macau estão claramente acima do que seria aceitável. E já não vou ao ponto de comparar a qualidade da confecção de muitos restaurantes de Portugal ou do Japão com os congéneres locais que praticam o mesmo nível de preços.
E há, ainda, mais uma agravante nisto tudo: a qualidade e simpatia do serviço prestado em Macau estão a anos-luz do que se pratica noutros locais de veraneio da Ásia. Aqui é vulgar ser necessário pedir – não me refiro a restaurantes de hotéis de 5 estrelas – para se trocarem pratos e talheres, como se fosse normal que depois de se petiscar uma entrada de camarões fritos ou um prato de peixe os mesmos talheres devessem depois ser directamente depositados em cima da mesa ou da toalha para a seguir se comer a carne de porco à alentejana…
Numa cidade que tem uma escola superior de turismo, que aposta nesta indústria como uma bandeira e cujos governantes fazem juras de preocupação com a qualidade de vida dos residentes e a oferta turística, é inaceitável que se pratiquem preços como os que estão a ser seguidos e que não haja fiscalização eficaz em relação àquilo que se oferece. É inaceitável que num estabelecimento de hambúrgueres com pretensões modernistas, na zona do NAPE, os clientes se quiserem limpar a boca tenham de pedir e pagar à parte um simples guardanapo de papel, como se o normal fosse uma pessoa usar a toalha da mesa ou a manga do casaco.
Sei que há quem esteja milionário com o desvario que por aí vai, tirando partindo da ausência de fiscalização, da inércia, do conúbio entre os poderes fácticos que impõem as suas regras à revelia e na ausência de leis adequadas. Desconheço as razões para o descontrolo dos preços em mercados, supermercados e restaurantes, embora saiba que nada justifica uma tão grande inacção por parte de quem tem a obrigação de zelar pela qualidade de vida dos residentes e pela oferta turística. O preço que os cidadãos de Macau pagam hoje pela inércia de alguns responsáveis é demasiado elevado para que essa atitude continue a passar despercebida.
Viver numa cidade com qualidade de vida, com um bom nível de oferta e uma procura adequada, com preços fiscalizados e serviços aceitáveis, não pode ser um luxo numa cidade como Macau que pretende que a aposta num turismo diferenciado seja para valer. Convenhamos que só labregos e pacóvios sem termo de comparação estão dispostos a pagar muito para serem mal servidos. E se por acaso os que aparecem não o são, e por aqui passam uma vez, depois não regressam. Cidades de dimensão similar, sem casinos, com receitas públicas infinitamente inferiores às de Macau e cargas fiscais mais pesadas, conseguem fazer muito melhor. Porquê?
Seria bom que quem governa pensasse nisto. E que os cidadãos se tornassem mais exigentes para com aqueles que lhes prestam maus serviços. Dos seus governantes e deputados aos restaurantes, dos cafés aos supermercados. Isto sem esquecer a péssima limpeza das ruas e a oferecida em muitos edifícios – cheiro a urina dos cães junto aos acessos, elevadores sujos, patamares imundos, condutas de lixo a tresandar, baldes com esfregonas desfeitas mergulhadas em águas sujas e sem detergentes, etc. – pelas empresas de condomínios, cujos miseráveis serviços são na maioria dos casos realizados sem prestação de contas e sem correspondência nos altos preços cobrados aos condóminos.
O preço pago pela inércia e a falta de exigência de quem o paga está a ser demasiado elevado. Com o arrefecimento das receitas do jogo, a curto prazo, os danos infligidos à RAEM podem tornar-se irreversíveis.

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mediações

por Sérgio de Almeida Correia, em 30.07.15

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(edição de 31/07/2015)

Para que serve a mediação imobiliária em Macau?

Muito se tem falado sobre os preços exorbitantes – a nível mundial – que atingiu o mercado imobiliário na RAEM. Pouco se tem dito sobre o papel das empresas de mediação imobiliária e seus agentes para a desregulação desse mesmo mercado.

Se em relação à compra e venda de imóveis as comissões praticadas andam por volta de 1% do valor do imóvel transaccionado, já no mercado de arrendamento esse valor anda pelo equivalente a um mês de renda por contrato, sendo de metade do valor da renda no caso do inquilino, findo cada período de dois anos, se mantiver no mesmo local.
Na RAEM a actividade da mediação imobiliária é, aparentemente, disciplinada pela Lei 16/2012 (Lei da Actividade de Mediação Imobiliária), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 7/2014, pelo Regulamento Administrativo n.º 4/2013 e pelos Despachos do Chefe do Executivo n.ºs 60 e 61/2013. Aparentemente, digo eu, porque na verdade esses normativos se limitam a definir em que consiste a actividade, a reger o licenciamento e condições do exercício, a elencar um conjunto de direitos e de deveres, penalidades para as infracções e a fixar as taxas devidas pelo seu exercício.
No entanto, o que na prática se verifica é que fica fora desse regime o controlo daquilo que se afigura importante a um exercício honesto e sério da actividade. Refiro-me à falta de transparência que envolve o exercício da actividade e no valor das comissões que devem ser pagas por um serviço que é prestado tanto aos proprietários, senhorios, como aos arrendatários.
O primeiro ponto em que se verifica a opacidade do regime reside na prática dos mediadores impedirem o contacto directo entre senhorios e inquilinos. Na maioria dos casos funciona como uma barreira ao entendimento entre as partes. Essa opacidade começa logo no momento da visita ao imóvel e negociação, onde o senhorio nunca aparece, estendendo-se depois ao próprio contrato, que normalmente é levado aos então ainda futuros arrendatários pela agência de mediação ou agente já depois de assinado pelo senhorio. Isto é, senhorio e inquilino nunca se encontram, nem falam directamente, e quanto ao primeiro normalmente apenas se sabe o nome e quando muito o número do respectivo documento de identificação, já que os modelos de contratos, aliás decalcados e muitas vezes mal dos modelos de Hong Kong, usados pelas agências e que circulam por aí, omitem a morada dos primeiros. Se os inquilinos forem diligentes conseguirão, por sua iniciativa e recorrendo aos registos públicos, obter os dados do imóvel, podendo então confirmar a titularidade do mesmo. Mas jamais terão acesso ao número de telefone ou morada do senhorio para se tiverem necessidade de lhe enviar uma carta ou quererem contactá-lo poderem fazê-lo. Não são poucos os inquilinos que tentam, até para resolverem problemas que se prendem com o mau estado de conservação dos locados, por vezes exigindo reparações urgentes por falta de manutenção, entrar em contacto com os senhorios, sem que todavia o consigam, mais do que não lhes restando a alternativa de, em última instância, avisar a agência de mediação, que entretanto deixou de responder aos telefonemas e “sms” após a celebração dos contratos e o recebimento da comissão, de que no mês seguinte as reparações serão feitas a expensas do inquilino, sendo o custo descontado na renda, ou que não será efectuado de todo o pagamento desta até que a situação se resolva. Nessa altura aparecem para, a contragosto, enviarem um biscateiro que servirá para reparar esquentadores, dar um jeito nos eléctricos, no exaustor ou nas canalizações.
Depois, a opacidade continua no momento da renovação dos contratos, altura em que os agentes reaparecem, sorridentes, para anunciarem aumentos de renda, em nome dos senhorios, e relembrarem o seu sagrado direito à comissão em caso de renovação.
Ultimamente são frequentes os casos em que a iniciativa do aumento de renda parte dos próprios agentes, que contactam os senhorios para lhes recordarem o final dos contratos e sugerirem os valores dos aumentos a propor aos desgraçados inquilinos, que ainda terão de suportar os custos da “actividade de mediação”. Não se vê, aliás, por que razão a renovação de um contrato em curso, quando tal acontece por simples ajustamento do valor da renda, há-de conferir ao mediador o direito ao recebimento de uma nova comissão, igual a 50% do valor de um mês de renda, numa espécie de lenocínio imobiliário.
Já anteriormente sugeri uma intervenção legislativa, no sentido dos custos da actividade de mediação serem repartidos entre senhorios e inquilinos, ou apenas suportados pelos primeiros que são quem beneficia com os valores da rendas, como aliás acontece noutros países, em vez do custo das comissões ser integralmente suportado pela parte mais fraca, em termos económicos e negociais, acrescendo em abono deste entendimento ser também aos primeiros que os mediadores prestam, nos casos em que tal acontece, o serviço de acompanhamento do arrendamento e aqueles com quem os senhorios contactam. Não se vê porque hão-de ser os inquilinos a pagar os custos desses contactos a que são alheios e que não foram por si solicitados.
Seria igualmente importante que as relações directas entre senhorios e inquilinos, em especial quando ambos residem na RAEM, não fosse impedido e dificultado pela acção dos mediadores, devendo tornar-se obrigatório, sob pena de nulidade, inserir nos contratos os números de telefone e endereços de uns e outros para o caso de necessitarem de entrar em contacto, tanto mais que há mediadores que não asseguram o acompanhamento dos arrendamentos durante a sua vigência. Em muitos casos, se o inquilino pretender enviar uma carta registada ao senhorio não tem como fazê-lo, pois que não raro a única morada conhecida é a que consta do registo predial, ou seja, a do próprio local arrendado.
Importaria ainda que o legislador clarificasse as situações em que os mediadores devem ter um direito à comissão, como contrapartida de um serviço efectivamente prestado, regulando os seus termos, isto é, valor e prazo de pagamento, se possível diferindo este pelo tempo de vigência do contrato.
A mediação imobiliária, nos termos em que actualmente existe, é uma forma de inflacionar o mercado, contribuindo para os preços especulativos que se praticam e para o descontrolo destes. É isso que justifica o aparecimento, como cogumelos, de novas agências e franchisings. Tal como está, funcionando sem rei nem roque e à mercê dos impulsos especulativos, a actividade de mediação contribui para a cartelização dos valores das rendas e das comissões, explicando o aumento da pressão sobre os arrendatários e o desaparecimento de estabelecimentos do comércio tradicional, substituídos, à medida que vão fechando, por novas agências que hoje ocupam os melhores espaços comerciais de Macau.

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sampaio

por Sérgio de Almeida Correia, em 25.07.15

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UM PRÉMIO À CIDADANIA

Este ano, o Dia Internacional Nelson Mandela não terá lugar a 18 de Julho, data do seu aniversário natalício, mas sim a 24 de Julho, coincidindo com a primeira atribuição do prémio instituído em nome daquele pela 69.ª Assembleia Geral da ONU. O prémio, atribuído de cinco em cinco anos e repartido entre um homem e uma mulher, visa reconhecer os sucessos obtidos por aqueles que dedicam as suas vidas ao serviço da humanidade, promovendo as Nações Unidas e os seus princípios, ao mesmo tempo que se presta homenagem à extraordinária vida de Madiba, ao seu legado político e à transformação social que ajudou a promover.

O simples facto deste prémio ser atribuído a Jorge Sampaio (o outro galardoado foi a oftalmologista namibiana Helena Ndume), escolhido de entre um conjunto de cerca de 300 personalidades, já seria motivo de satisfação para os portugueses e para todos aqueles que vêem no diálogo ente diferentes gerações, culturas e civilizações, independentemente do credo, da cor da pele ou da linhagem, uma conquista da humanidade. Não vou aqui desfilar o rosário biográfico do ex-Presidente da República, nem o rol de cargos exercidos ou de condecorações e títulos que lhe foram atribuídos. Isso é o que menos interessa, e estou certo que ele comungará de idêntica perspectiva. Nem irei, igualmente, misturar a atribuição desse prémio, a meu ver merecido, com a análise do exercício dos seus mandatos enquanto titular de cargos políticos internos.

No entanto, à laia de registo de interesses direi que de entre todos aqueles que exerceram o cargo de Presidente da República no pós-25 de Abril, e eu conto até hoje apenas três, Jorge Sampaio foi aquele que a meu ver – e sei que Pedro Santana Lopes não partilhará a mesma opinião – melhor desempenhou o cargo. Ramalho Eanes foi o homem, o militar sério e leal que garantiu a transição. Soares foi o político maduro da consolidação da democracia e da adesão europeia. Jorge Sampaio foi “o Presidente”. E estou certo que um desempenho infeliz – naquilo que ficou aquém e que podia e devia ter corrido muito melhor e só não correu por falta de adequada informação – na transição de Macau, não ofuscará o brilho e o mérito da sua acção cívica e pedagógica. Macau foi para Jorge Sampaio um acidente de percurso. A transição de Macau correu mal e assim-assim naquilo que dependia só de nós. Correu bem no que dependia de Portugal e da China. Disso Sampaio não se apercebeu ao longo do processo porque lhe faltaram interlocutores à altura, gente que tivesse a noção do tempo e tivesse olhado para a língua, a justiça, o direito, com olhos menos economicistas. E que tivesse sabido tirar partido colectivo, e não pessoal, das circunstâncias.

Entendo, por isso mesmo, que aquilo que deve ser valorizado na atribuição a Jorge Sampaio do Prémio Nelson Mandela 2015 é o que desde sempre o caracterizou e valorizou a sua acção aos olhos de todos: falo do seu empenho na afirmação dos valores da civilização – democracia, direitos humanos, cultura, educação, paz – através de uma cidadania activa. E é isto aquilo que também o aproxima do exemplo e da herança do homenageado que deu nome ao prémio.

A coragem na luta pela afirmação da justiça, a defesa dos direitos políticos, que são também e acima de tudo direitos de cidadania, a entrega pro bono do seu saber e da sua acção aos injustiçados desta vida, a procura da decência na pós-modernidade e na sociedade do risco de que Ülrich Becker falava, o desapego aos valores materiais, tudo isso faz parte das suas marcas. Jorge Sampaio é e sempre foi um institucionalista, como o foram à sua maneira Gunnar Myrdal, John K. Galbraith ou Jean Monnet, no sentido de atribuir valor ao papel desempenhado pelas instituições, por quem as serve nos cargos e nas interacções que por uns e outros podem ser geradas na construção de sociedades equilibradas. Mas sendo-o, ao contrário de muitos outros cuja acção também será meritória, sempre desvalorizou o penacho institucional, a mordomia parola, a pose afectada. Porque nenhum de nós, nenhuma nação, nenhum homem está sozinho neste mundo. E os homens servem as nações e as suas instituições para interagirem, para se entenderem, para afirmação colectiva e bem-estar dos povos, não para deleite egocêntrico ou puro exercício diletante.

O papel de Jorge Sampaio na afirmação universal das regras do jogo democrático, casos da Turquia e de Timor-Leste, bem como a sua intervenção nos debates e problemas que interessam e que afectam as sociedades contemporâneas – HIV-AIDS, combate à corrupção, reformas para combater o flagelo das drogas e do seu tráfico, defesa dos direitos das crianças e dos mais carenciados, luta contra a tuberculose, apoio aos estudantes sírios refugiados para poderem prosseguir os seus estudos –, sempre na procura de soluções inclusivas, foi incontornável, granjeando-lhe prestígio, estima e reconhecimento por parte da comunidade internacional. Como portugueses, só temos que nos sentir honrados com o seu trabalho.

Na linha do Prémio Carlos V (2004), do Prémio Norte-Sul (2008), e do VI Prémio Internacional da Fundação Sevilha Nodo (2011), a atribuição do Prémio Internacional Nelson Mandela, prémio instituído sob a égide da mais universal das organizações, ao cidadão Jorge Sampaio deverá ser visto como um exemplo e um estímulo para o serviço à comunidade, para o exercício de uma cidadania cada vez mais participada e mais global, que não fica encerrada nas fronteiras de um país.

Porque o Prémio Nelson Mandela só tem valor e só se distingue dos outros se visto à luz desse trabalho regular, porfiado, quotidiano, empenhado na afirmação dos valores que percorreram os séculos e na procura de soluções para os problemas que nos afectam; trabalho desinteressado, ecuménico, de construção de pontes, não raro solitário e nem sempre valorizado, por isso mesmo também arriscado, mas sem o qual será impossível edificar sociedades mais desenvolvidas, mais justas e mais equilibradas. Acima de tudo mais solidárias e mais humanas. Sociedades que se interroguem, que não nos envergonhem da nossa condição, e que perante a memória dos que nos precederam nos devolvam por inteiro aquilo que de melhor a nossa alma possui e nos trouxe até aqui: a cidadania.

 

(publicado no Ponto Final, em 24/07/2015)

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rasto

por Sérgio de Almeida Correia, em 19.01.15

G7ZldVehtYY.jpgQuem se recorda deles, dos ricos de Roma ou de Atenas? Que se recorda deles? Tirando um ou outro que é referenciado nos livros de história, a maioria viveu e partiu. Sobraram algumas pedras que hoje muitos usam para escolher a luz, o melhor plano, enquanto olham para uma câmara fotográfica. Há outros de quem se sabe o nome e de quando em vez nos recordamos ao folhear um livro. Lá está a citação, uma referência, às vezes também no Borda d'Água. Nada mais. Foram.

Um tipo pode levar a vida a trabalhar, enriquecer, deixar uma prole imensa, uma caterva de livros, como o Paulo Coelho ou o Rodrigues dos Santos, um apelido, escolher uma vida faustosa ou simples, confortável ou estóica, percorrer os caminhos da sombra ou as luzes da ribalta, deixar um monte de tralhas, uma memorabilia. E não deixar nada. Não deixar um rasto. Ou, então, deixar um rasto que se apaga mal o Sol se ponha.

Que pode valer um caminho sem rasto, uma vida sem rasto, quando os outros, os que ficarão, não conhecem os caminhos que foram percorridos, as rotas por que optámos, as veredas por onde nos equilibrámos, por onde espreitámos o ribeiro e tememos a aurora? Que pode isso valer quando não se tem um rasto por onde os que ficam nos possam seguir? Um rasto que diga aos outros por onde andámos, o que fizemos, o que escolhemos. O porquê de uma vida.

O único rasto que vale a pena deixar tem de ser útil. Tem de servir a quem fica. E aos que vierem depois, e depois, e depois, para que não se perca na espuma dos dias ou numa mesa de gamão. O rasto da participação cívica, do trabalho em prol da cidadania, do investimento na educação, a longo prazo, pode não trazer resultados imediatos mas é o único que marca. Como um ferro em brasa. O único que engrandece, o que diz aos outros por onde andámos. O que perdura na prole. Na do próprio. Na dos outros. O que perdura nunca será pó. 

 

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desconforto

por Sérgio de Almeida Correia, em 30.06.14

Detesto a sensação de desconforto seja qual for a razão. As coisas que nos desconfortam são muitas vezes necessárias. Escrever é muitas vezes desconfortável. Não pelo acto da escrita em si; antes porque nos obriga a pensar e a registar o que a consciência nos impõe. Para que esta se mantenha lúcida e a liberdade de pensamento e de análise possam continuar a viver sem se sentirem constrangidas por aquilo e aqueles que nos rodeiam. Para que o exercício da cidadania continue a fazer sentido.

Viver é também a confrontação com o desconforto, para dele nos libertarmos e sentirmos prazer no que fazemos. Por nós. Pelos outros em especial.   

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