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participação

por Sérgio de Almeida Correia, em 21.03.23

Uma notícia de ontem, do matutino Ponto Final, dava conta de que um antigo deputado, advogado, conhecido homem de negócios e actual presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Advogados de Macau, em declarações ao jornal Ou Mun, órgão oficioso da República Popular da China em Macau, em língua chinesa (há também outros dois órgãos oficiosos, um em português e outro em inglês),  que, e cito, "a participação política da população da China é mais elevada do que nos países europeus".

Inicialmente não percebi. Pensei que a participação fosse em excursões para a Rua do Cunha. Depois li melhor e fiquei a saber que era mesmo à participação política que Leonel Alves se estava a referir. E, segundo o simpático benfiquista, "noutros países, incluindo países da Europa, nunca vi uma participação política tão forte e um nível político tão elevado".

Não sei se Leonel Alves estava a referir-se à participação política convencional, à não-convencional ou à ilegal, nem se à nominal, à instrumental, à representativa ou à transformativa, como distinguiu uma autora, nem que indicadores utilizou para medir na China a participação política, nem que outros países, incluindo países europeus, foram objecto da sua perscrutante "observação" política e científica, nem se está a preparar-se para apresentar uma tese inovadora nesse âmbito.

Do pouco que aprendi, estou certo que Arend Lijphart, Tilly, Campbell, Converse, Miller, Downs, Putnam, Inglehart, a Susan Tarrow ou Verba e Nie, entre tantos outros, nunca tiveram essa percepção da participação política na China ao longo de muitas décadas de estudo. Agora os tempos mudaram.

Trata-se de uma pecha que urge colmatar, levando o conhecimento às academias espalhadas pelo mundo.

Nessa medida, com toda a amizade, sugiro-lhe humildemente que escreva um artigo para uma revista científica da área da Ciência Política, mesmo chinesa, já que tratando-se de um cidadão chinês, representante da "minoria étnica" de Macau na Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, deverá privilegiar as publicações da sua pátria, para assim dar corpo ao resultado da análise académica em que certamente investiu muito tempo, dando-a a conhecer em primeira mão aos compatriotas das universidades chinesas, pois que será essa a única forma de se poder ter acesso a esses dados e compará-los com as menos conseguidas experiências europeias, americanas e africanas ao nível da participação política.

Na minha modesta condição de residente de Macau, que continua a investigar a participação política em diferentes cenários, ficarei a aguardar que o Ou Mun nos informe desses resultados, fruto da experiência democrática chinesa sob a égide do regularmente escrutinado, em eleições livres, competitivas e participadas, Partido Comunista Chinês. 

Seria para mim uma honra poder comunicar esses dados e resultados, de forma seminal, ao Professor André Freire, à Professora Ana Espírito Santo, à Professora Marina Costa Lobo, ao Professor Pedro Magalhães, ao Professor Marco Lisi, à Professora Emily van-Haute, ao Professor Juan Rodriguéz Teruel, da Universidade de Valência e que foi o meu arguente,  bem como a todos aquelas sumidades que andam há décadas, sem sucesso, percebe-se hoje, a estudar a participação política em todo o mundo e desconhecem os resultados do estudo do "camarada" Leonel Alves. Depois poderia organizar-se um seminário na Europa, tendo-o como convidado especial, ou então, se ele se despachar, convencê-lo a participar no 27.º Congresso Mundial da IPSA, International Political Science Association, em ingês, ou Association Internationale de Science Politique, em francês, que terá lugar, este ano, em Buenos Aires (Argentina). 

Seria interessante comprovar-se, num fórum internacional adequado, que sempre há democracias para além da democracia, e que há uma outra forma, que pelos vistos funciona e até aqui era desconhecida, de encarar a participação política.

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pândegos

por Sérgio de Almeida Correia, em 30.12.22

(créditos: Macau Daily Times)

Até há algumas semanas, os estrangeiros estavam impedidos de entrar na China, qualquer que fosse a porta e a razão para quererem entrar, mesmo não estando infectados com Covid e com todas as doses e reforços de vacinas que a Medicina colocou aos dispor das nações. Pais ficaram anos sem poder ver os filhos, casais foram separados, filhos impossibilitados de acompanharem os pais à sua última morada. Mesmo aos nacionais e residentes permanentes que se ausentassem para o estrangeiro foram impostas quarentenas de 28, 21, 14, 10 e 5 dias, códigos vermelhos e amarelos, e inúmeras despesas supérfluas para se garantir a política de tolerância zero ou "zero dinâmico".

Agora, perante uma vaga de infectados sem precedentes na China, com milhões doentes, sem qualquer controlo, e com vacinas de eficácia muito questionável, há dois aviões procedentes deste país que à chegada a Itália apresentam cerca de 50% de infectados. E que faz o país de destino? Impõe restrições à entrada de viajantes, sem discriminação de nacionalidade, exigindo que sejam feitos testes de despistagem. Os EUA fazem o mesmo, anunciando que a partir de 5 de Janeiro de 2023, quem quiser entrar nesse país, procedente da China,  de Hong Kong ou Macau, terá de apresentar um teste PCR negativo. E tal como estes, outros mais (Espanha, Malásia, Coreia do Sul, Japão) farão o mesmo.

Não me parece que seja algo de excessivo ou incompreensível perante a situação que actualmente se vive e que os próprios órgãos de comunicação chineses têm difundido. A TDM tem passado no seu Telejornal algumas reportagens bastante esclarecedoras, algumas da CCTV, como sucedeu, por exemplo, nos passados dias 26 (minuto 12:40), 28 (minuta 13:40) e 29 de Dezembro (minuto 07:50). Repare-se que apresentar testes com resultado negativo para se entrar num país não é o mesmo que fechar fronteiras aos estrangeiros e não-residentes permanentes, ou criar obstáculos à saída de nacionais e obrigar os residentes a fazerem quarentenas pagas em hotéis e baterias de testes PCR à sua custa e com pagamentos antecipados para se poder viajar.

Curiosamente, depois de tudo aquilo que as autoridades chinesas fizeram, e das limitações que impuseram às suas próprias populações, aos residentes estrangeiros e a todos os nacionais de outros países que queriam entrar no país, até por razões humanitárias, veio o porta-voz do MNE chinês, Wang Wenbin, naquele estilo e com o adorável tom a que já nos habituou, com a maior desfaçatez deste mundo, dizer que, "para todos os países, as medidas de resposta à COVID têm de ser baseadas na ciência e proporcionais, e aplicar-se igualmente às pessoas de todos os países sem afectar as viagens normais e o intercâmbio e cooperação entre as pessoas", esperando que "todas as partes sigam uma abordagem de resposta baseada na ciência e trabalhem em conjunto para assegurar viagens transfronteiriças seguras, manter estáveis as cadeias industriais e de fornecimento globais, e contribuir para a solidariedade global contra a COVID e a recuperação económica mundial".

Para quem fez exactamente o contrário daquilo que afirma, inclusive contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde, e que ainda em Outubro, no XX Congresso do PCC, reafirmava a linha da tolerância zero, não deixa de ser curioso que perante uma situação de quase catástrofe interna haja quem queira, agora, que os outros países deixem entrar livremente os seus infectados, com todas as variantes e mais algumas, e que façam aquilo que a China não fez durante quase três anos: acreditar na ciência, respeitar a proporcionalidade das medidas de contenção do vírus e não discriminar.

É só olhar para os exemplos recentes de Macau e de Hong Kong e para os custos sociais e económicos que foram impostos a estas regiões e às suas populações.

Há coisas que, de facto, não lhes faltam. Mas hoje vou respeitar a quadra, e o Pelé, e poupar-vos a lê-las.

Bom Ano para todos. Sem Covid, com saúde.

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leitura

por Sérgio de Almeida Correia, em 29.11.22

f4121930-6776-45c1-aba5-0576dd2c3e40_206e403d.jpg(fonte: Getty Images/TNS)

My Take, by Zhou Xin (South China Morning Post, 29/11/2022)
China faces moment of truth on its zero-Covid-19 policy amid public defiance, pandemic fatigue

"China’s zero-Covid drive is not going as smoothly as Beijing wished: the country has found itself locked in an impossible battle after trying for nearly a year to contain the Omicron variant, using its old playbook of mass lockdowns and mandatory testing to fight a faceless enemy that cannot be eradicated.
That approach, which had once convinced Beijing of the supremacy of its governance system, is looking increasingly cumbersome, costly and unsustainable.
A well-implemented zero-Covid policy is supposed to do the trick of containing the virus while keeping economic activities humming and ensuring that development is on track. But the hard reality is that the virus is now out of control, the economy is in tatters, and angry citizens are showing public defiance.
The Chinese government this month relaxed some Covid-19 controls and introduced what is known as the “20 measures”, offering hope that the country is finally pivoting to living with the virus. But if this counts as a pivot, it is a weak one, as Beijing’s overall guiding principle remains unchanged. Unsurprisingly, the move has created confusion and the big question lingers: what does Beijing really want?
For local governments, it is a burning question that awaits a clear answer. If Beijing’s ultimate goal continues to require rooting out virus transmissions in communities as quickly as possible, local authorities have no choice but to maintain universal testing, impose snap lockdowns and drag patients into makeshift hospitals deemed by some people as “coronavirus gulags” that often consist of hundreds of beds crammed together under one big roof.
A number of Chinese cities, including Shanghai, have even imposed fresh restrictions, such as keeping domestic travellers away from restaurants and pubs – a clumsy upgrade of a similar three-day ban in Hong Kong directed at international arrivals. That means tourists at the Shanghai Disney Resort can have fun taking rides and watching character parades, but they cannot dine in indoor restaurants.
Yet under the new “20 measures”, local authorities are explicitly told to refrain from imposing additional restrictions. In other words, they are directed to steer left even when the destination is on the right. Some grass-roots officials have resorted to the informal way of governance by giving out verbal instructions for lockdowns so as to leave no written evidence for people to file complaints to higher-level authorities.
Such tricks, however, have backfired as residents under lockdowns demanded proof of authorisation. In Beijing, several communities tried to negotiate over the weekend with grass-roots Communist Party committees, which are legally self-organised bodies without government authority, to lift lockdowns. Piece by piece, China’s zero-Covid system is crumbling under its own weight.
t has been a year since the World Health Organization declared the arrival of Omicron, calling it a new and different variant that would change the pandemic trajectory. Since then, many countries are forced to, or have voluntarily chosen to give up on zero-Covid-19 as a strategy.
But China, which achieved stellar performance in minimising death while maintaining economic growth in 2021, neglected the warnings and doubled down on its approach, wrongly assuming that Omicron would make no difference.
China earlier this year budgeted a 5.5 per cent GDP growth target for 2022, a clear sign of excessive confidence, and it briefly pushed for mainland-style universal testing in Hong Kong. In May, the government promptly quashed debates about Shanghai’s painful two-month lockdown by declaring war against any words or actions that “doubt, distort and negate” zero-Covid.
A lot of things have happened over the past year. China’s pursuit of zero-Covid is losing support and no longer resonates with the great majority of the population, who have had enough lockdowns and testing. It is time for Beijing to face the reality and make the right choice."

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ler

por Sérgio de Almeida Correia, em 31.10.22

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"(...) Depois de mais de setenta anos no exercício do poder, o PCC logrou constituir-se como uma dinastia orgânica – a primeira dinastia orgânica da história da China. Essa osmose com a cultura política tradicional viu-se fortalecida com a adopção de uma institucionalidade própria que assegura uma série de regras para evitar que os processos de sucessão, tão delicados nestes sistemas, gerem lutas fratricidas." (p.373) 

O que ali se escreveu já perdeu, entretanto, actualidade com a revogação da regra da limitação de mandatos ou a incerteza da idade de aposentação em relação a alguns dirigentes, mas o nome de Xulio Ríos é suficientemente importante entre os estudiosos e analistas do fenómeno chinês actual para não poder passar despercebido.

Natural seria, por isso mesmo, que o seu último trabalho merecesse a devida atenção, tanto mais que foi traduzido e publicado em português. Não havia desculpa para não estar incluído na minha lista de prioridades.

Tivesse aguardado mais uns meses e o autor poderia ter alargado a sua análise ao XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC). Seria interessante conhecer a sua interpretação do episódio Hu Jintao.

Não obstante, e pese embora uma incorrecção e uma ligeireza na parte que diz respeito à geografia de Macau e a Luís de Camões (vd. p. 149), trata-se de um trabalho de fôlego, produzido com isenção e independência, embora nem sempre possa estar de acordo com o autor.

Xulio Ríos passa em revista toda a história do PCC, nos seus momentos mais marcantes, desde a sua fundação, congresso a congresso; sem esquecer as influências externas, o conflito com o KMT, a fundação da RPC, até chegar à situação de Hong Kong, aos problemas do Tibete, de Xinjiang e Taiwan, a reaproximação ao confucionismo e ao legismo, e o processo de sinização do marxismo até ao neo-mandarinato actual e ao xiismo.

Irrepreensível divisão histórica, capítulos bem alinhados, conclusões pertinentes e a merecerem discussão. No final, possui uma interessante bibliografia, alguns números relativos aos congressos e um índice onomástico para ajudar os leitores menos comprometidos com a realidade chinesa e as dinâmicas do PCC a compreenderem os papéis de alguns dos protagonistas.

Valeu a leitura, recomendo-a, e agradeço à minha amiga F. a generosa oferta que me fez.

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curtas

por Sérgio de Almeida Correia, em 06.05.21

An employee at the German pharmaceuticals company BioNTech works in a facility for mRNA production in Marburg, Germany.(Photograph: Biontech Se Handout/EPA)

Interrompo a ausência dos últimos dias chamando a vossa atenção para três curtas notas, que são ao mesmo tempo evidências do contraste entre a actuação do novo inquilino da Casa Branca face ao seu antecessor, à retórica confrontacional de Pequim e aos abusos que estão a ser cometidos em nome do rule of law na RAE de Hong Kong.

A primeira diz respeito à decisão ontem revelada pela Embaixadora dos Estados Unidos junto da Organização Mundial do Comércio (WTO no acrónimo inglês), Katherine Tai, de que o Presidente Biden deu instruções no sentido da suspensão das protecções da propriedade intelectual, de maneira a que possam ser disponibilizadas para todo o mundo, ricos e pobres, as patentes das vacinas da COVID-19, no que constitui um passo extraordinário no combate à pandemia.

Mas mais do que isso, os EUA não estarão apenas a partilhar patentes e tecnologia. Este é o culminar dos primeiros cem dias de governo do novo presidente, a pérola que brilhou quando se abriu a ostra.

Não sei qual será o efeito prático deste movimento. Estou, todavia, convicto de que este é um sinal muito forte no sentido do desanuviamento da tensão internacional, uma ajuda consistente aos países menos desenvolvidos e a transposição de um discurso inflamado e balofo para acções que podem fazer a diferença, ajudando os EUA a limparem a má imagem internacional deixada por Trump e a sua pandilha de cantinfleiros.

Em sentido oposto, o discurso cada vez mais belicista do mais alto responsável chinês. Pode ser que seja apenas um discurso para dentro e destinado a impressionar os seus fiéis, Taiwan e Hong Kong, em ano de grandes comemorações internas, embora seja difícil acreditar nisso.

A retórica da invencibilidade não é própria de quem defende a paz e uma coexistência pacífica e cooperante com todas as nações e povos do mundo, em especial se for acompanhada daquelas conferências de imprensa surreais dos porta-vozes do MNE chinês, plenas de ameaças e acompanhadas de exibições de força no Mar do Sul da China e no estreito da Formosa.

A forma como Pequim reagiu anteriormente a um simples pedido feito por Canberra de realização de uma investigação independente ao surgimento da COVID-19, que viria depois a permitir no âmbito da OMS/WHO, e o modo como agora suspendeu toda a cooperação com a Austrália a propósito do China-Australia Strategic Economic Dialogue, revela a utilização de dois pesos e duas medidas.

Iguais reacções não surgem quando em causa estão decisões da União Europeia ou dos EUA que colocam em crise interesses chineses, o que mostra como é fácil ser contido com os mais fortes e desabrido com os mais pequenos. Ou como se as razões de segurança nacional, quando seriamente invocadas, e não com uma cortina para outro tipo de actuações à margem do justo e do legal, constituíssem um exclusivo de um qualquer país. 

Quando começar a fase da contenção de danos talvez seja tarde para se alterarem os sentimentos que, desgraçadamente, amiúde começam a surgir em diversos países relativamente a tudo que traga a marca identitária chinesa. É mau para a imagem do país, é mau para o seu povo, é mau para o desenvolvimento e o equilíbrio global.

Uma última nota para a decisão proferida pelo District Court de Hong Kong de aplicar penas de prisão a alguns activistas. Isso seria expectável tendo presente a natureza do regime, tudo o que aconteceu nos últimos dois anos e a forma desastrada como as autoridades locais e o Governo central lidaram com o problema.

Cada um fará a sua leitura, alguns apenas aquela que será compatível com os seus interesses pessoais.

Em todo o caso, não deixa de ser preocupante que um tribunal se permita, independentemente de se poder discutir se foi um motim ou não, condenar afirmando expressamente que não existe qualquer prova de que os arguidos tenham desempenhado qualquer papel efectivo no tumulto (riot).

Se a isto se somar a dispensa de uma jornalista por colocar perguntas difíceis em conferências de imprensa, começa-se a ter o filme completo da extensão da substituição do rule of law pelo rule by law.

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efeméride

por Sérgio de Almeida Correia, em 26.03.21

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Foi há exactamente trinta e quatro anos, em 26/03/1987, que foi rubricado em Pequim, pelo embaixador Rui Medina e pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da RPC, Zhou Nan, o texto acordado entre as delegações de Portugal e da China para a Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau, o qual viria a ser assinado em 13 de Abril seguinte e regeria até 1999 o modo como se processaria a reversão do território para o seu legítimo soberano. A partir daí seria a Lei Básica da Região Administrativa Especial a marcar os segundos, os minutos e as horas.

Este aniversário ocorre num momento de fricção entre a China e os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido; e entre aquela e alguns dos aliados dos outros na Ásia e no Pacífico.

Macau, apesar do clima de paz, estabilidade e segurança de que beneficia desde há mais de duas décadas também tem sofrido as consequências da conjuntura internacional e da geografia em que se insere. E estas fazem-se sentir ao nível das liberdades, em especial em matéria de direitos fundamentais, os quais têm sido objecto da imposição de constrangimentos, nuns casos mais dissimulados do que noutros, e de acções que transformaram uma região de cariz mediterrânico, numa extensão rica do estado autoritário, policial, censor e persecutório que comanda os destinos do sistema socialista e controla os mais ínfimos e inócuos movimentos dos seus cidadãos.

De um ponto de vista formal poucas coisas mudaram. Numa perspectiva substancial mudou quase tudo. E há muita coisa que até agora ou não foi cumprida de todo – continua a não haver sindicatos e a inexistir uma lei da greve –, ou está a ser restringida em termos nunca antes previstos – liberdade de imprensa, direito de reunião, manifestação e desfile –, muito embora o discurso oficial seja muitas vezes, tanto o português – cada vez mais desvalorizado e desrespeitado na comunicação oficial, na administração pública, nas polícias e nos tribunais – como o chinês, um discurso que continua a querer fazer passar uma mensagem que não corresponde a realidade, por vezes destinado a compô-la para os olhos externos ou a disfarçá-la para os internos que se habituaram a comer sofregamente e sem nada questionarem tudo o que lhes põem no prato.

A pandemia do Covid-19 tem servido de cortina para muita coisa. A coberto desta e da contribuição da RAEM para a segurança nacional foram criados sistemas de controlo dos residentes dignos de uma novela de Orwell, não raro complementados com decisões kafkianas e com uma visão do segundo sistema incompatível com o princípio da separação de poderes.

A aceleração do processo de integração na RPC comportou mudanças em relação às quais não se ouviu uma palavra dos responsáveis de Portugal, aliás na linha daquele que é o entendimento de alguns compatriotas, de que não obstante os compromissos internacionalmente assumidos, consideram que a permanência da nossa comunidade residente é uma situação de favor e que esta justifica todos os silêncios e atropelos que sejam cometidos, dos mais ligeiros aos mais graves, desde que no final apareça um prato de lentilhas, haja um arraial anual, vinho tinto e chouriço.

Mudanças que merecem a compreensão e até são aplaudidas por alguns contorcionistas, que os há em todo o lado, em todos os tempos e de todas as nacionalidades, ou por um ou outro titular de currículo menos recomendável por aqui estabelecido, mas que para a maioria trabalhadora, que só se manifesta discretamente nas reuniões familiares, em rodas de amigos ou que de todo evita manifestar-se, é um peso suportado mais com desgosto, tristeza, abnegação e fé do que com sacrifício.

Afinal os mesmos sentimentos que emergem de cada vez que se vê partir um rosto querido da comunidade, levando consigo a história dos lugares e a memória das suas gentes, se ouve um embaixador desculpar os atropelos, um ministro asneirar (o acordo entre Portugal e a China não se chama Lei Básica; Portugal não tem quaisquer obrigações a cumprir no âmbito desta, e também não podia ter visto que se trata de uma lei interna chinesa), ou se vêem os cronistas do império acordarem estremunhados e desinformados para realidades longínquas, para as quais de quando em vez são despertados, que os ultrapassam e que para eles continuam desconhecidas ao fim de tantos anos. 

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leitura

por Sérgio de Almeida Correia, em 23.07.20

O artigo de Arvind Subramanian (China Has Blown Its Historic Opportunity) reflecte aquilo que muita gente pensa sobre o assunto, incluindo eu próprio.

Tenho pena que a liderança chinesa não o tivesse visto antes, mas o caminho empreendido em 18 de Outubro de 2017 só podia conduzir a uma situação como a actual. Ou pior, a ver vamos. 

Para já vale a pena ler e pensar na forma como todas as suas conquistas têm sido hipotecadas, não obstante a ausência de liderança nos EUA. 

Que o mundo estava perigoso não era novidade. Que havia muitos loucos à solta também. A novidade é que houve quem com a sua gula quisesse torná-lo ainda mais perigoso.

Duvido que no fim, quando o Covid-19 passar e Trump sair de cena, a China tenha conseguido alguma coisa que não tivesse já antes do XIX Congresso do PCC.

Bem pelo contrário, até agora só tem perdido. Em dinheiro, prestígio internacional, credibilidade, confiança e soft power

Vão ser muitos os anos para recuperar os erros cometidos, se entretanto não forem cometidos mais uns quantos, e voltar ao caminho que a projectou nas últimas duas décadas.

Cada um sabe de si, é bem verdade, mas não deixa de ser triste que depois sejam milhões a pagar, dentro e fora das fronteiras do país. A teimosia e a falta de visão estratégica têm na política um preço muito elevado. Qualquer que seja a dimensão do país.

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lido

por Sérgio de Almeida Correia, em 01.07.20

"A pandemia acabou com qualquer ilusão europeia — e sobretudo alemã — sobre a China, que exercita sem máscara a sua crescente ambição mundial e que não hesita em impor a lei do mais forte em Hong Kong ou se entrega à repressão brutal e desumana da minoria uigur no Oeste do país. O silêncio deixou de ser opção. Merkel adiou sine die uma cimeira entre a União e a China, que chegou a ser um dos pontos altos previstos para a sua presidência. A última, há uma semana, correu bastante mal.

Mas, com um novo Presidente na Casa Branca, a proposta de Mike Pompeo aos europeus para uma estratégia comum destinada a conter os avanços da China nos mais diferentes domínios, passa a fazer todo o sentido." (Teresa de Sousa, Transformar a crise numa oportunidade, Público, 01/07/2020, p. 6)

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perspectivas

por Sérgio de Almeida Correia, em 13.01.20

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(Philip FONG / AFP)

Os tempos que aí vêm vão ser muito difíceis. Dentro e fora da China.

Para quem vive neste canto tranquilo, “super-vigiado”, controlado e policiado, e cada vez mais poluído do império do Meio, os acontecimentos dos últimos meses e dias não nos podem ser indiferentes. Seria bom, por isso mesmo, que todos estivessem conscientes das dificuldades que vamos enfrentar.

Estamos a assistir aos primeiros resultados a que conduziu a reforma constitucional de 2018, saída do XIX Congresso do PCC. Como muitos se recordarão, em Outubro de 2017 foi aprovada a linha de rumo a seguir nos anos seguintes, tal como desejado pelo Presidente Xi Jinping e a elite dirigente.

Os últimos anos reforçaram o poder do Presidente, tornando-o num dos magníficos cuja doutrina mereceu assento constitucional e implicou, a coberto de uma pretensa vontade de acertar o período de exercício dos mandatos do Presidente da República e do Secretário-Geral do PCC, a eliminação da proibição do exercício de mais do que dois mandatos consecutivos no cargo de Presidente da República.

Como não existia limitação de mandatos para o Secretário-Geral do partido, em vez de se manterem as coisas como estavam, ou então de também se limitarem os mandatos do Secretário-Geral, alinhando-os com o de todos os restantes dirigentes dos principais órgãos de Estado, cujos termos continuam a ter acolhimento constitucional, optou-se por satisfazer a vontade do Presidente dando-lhe carta branca.

Sabemos que o combate à corrupção recebeu um forte impulso interno e o controlo da fuga e branqueamento de capitais reforçou-se, o que também contribuiu para o início de uma limpeza do aparelho central, regional e local que, todavia, ainda necessita de continuar e de se aprofundar a todos os níveis para que se acabem de vez com os maus hábitos do laissez faire anterior.

A personalidade forte e o carisma do Presidente Xi, que é ao mesmo tempo cultivada com uma aura simpática e bonacheirona, tem-lhe granjeado crédito e prestígio interno e externo. No entanto, se nesta última vertente isso é por demais compreensível, atento o estatuto que a RPC aspira vir a desempenhar na cena internacional, é na frente interna que se avizinham as maiores dificuldades da liderança chinesa. E não serão os inflamados, e cada vez mais distanciados da realidade, editoriais e artigos do China Daily, da Xinhua ou do Global Times que irão transformar más decisões em boas políticas.

Na verdade, toda a gente já percebeu, incluindo os mais fiéis, acríticos e submissos, que o desastre (não há que ter medo das palavras e continuar a escamotear a realidade) do princípio “um país, dois sistemas”, em Hong Kong, foi o resultado da intransigência e da falta de visão estratégica e política dos responsáveis pelos assuntos da Região vizinha, aliada a uma ostensiva incapacidade de obter conselho junto de gente informada, com capacidade, lealdade, espírito crítico e conhecimento da realidade social; preferindo-se antes ouvir a desde sempre desinteressada, egoísta e oportunista oligarquia política-empresarial local, que se curva hoje a Pequim da mesma forma como antes dobrava a espinha perante a potência colonial, procurando aproveitar o melhor dos dois mundos para se safar e aos seus. Nada de novo.

A entrega a essa visão mesquinha, comprometida com os seus próprios botões e com as corporações familiares e empresariais, só podia dar mau resultado, tanto mais que os seus enviados, tanto para Hong Kong como para Macau, isto é, os representantes oficiais, foram rapidamente capturados por essas elites locais, tornando-se seus íntimos e começando a beneficiar e a gozar os luxos do segundo sistema, não curando devidamente dos interesses de Pequim e das regiões que, de acordo com a velha tese de Deng, seriam também os interesses do PCC e das suas populações.

Os resultados que começam a chegar não podiam ser mais desanimadores: falta de estabilidade ao nível dos representantes oficiais locais em Hong Kong e Macau, maus resultados eleitorais sucessivos nas duas regiões, caos económico e social em Hong Kong, contestação elevada e sempre na rua, embora mais contida em Macau (veja-se o que se passa com os trabalhadores dos casinos, por exemplo), situações agora agravadas com os resultados eleitorais de Taiwan que deixaram de rastos o partido do Kuomintang, reelegendo à primeira volta e sem apelo nem agravo a Presidente Tsai Ing-we do Partido Progressivo Democrático, cujas ideais se encontra nos antípodas de Pequim.

É claro que a reacção da Agência Xinhua, fruto do seu impenitente seguidismo e teimosia, que a leva a ver uma realidade paralela e em perfeito delírio, vindo afirmar a existência de fraude eleitoral, que só ela viu, e que toda a gente logo se percebeu não ser verdade quando se ouviu o discurso do líder derrotado do partido do Kuomintang, e o seu reconhecimento da justeza da derrota sofrida ao apresentar um pedido de desculpa aos seus eleitores, indiciam o mau serviço que alguns órgãos oficiais e oficiosos continuam a prestar ao País e à sua liderança.

Naturalmente que na próxima reunião de Março da Terceira Sessão Anual da Assembleia Popular Nacional, que terá lugar em Pequim a partir do dia 5, muita coisa vai estar em discussão, a menor das quais será a análise da situação económica, da evolução verificada e as perspectivas de futuro. A maior será o acerto de contas dos últimos dois anos e meio.

A conclusão da primeira fase de negociações com os Estados Unidos da América e a assinatura de um novo acordo que abra caminho à melhoria das relações comerciais entre os dois países, libertando alguma tensão acumulada, pode contribuir para uma distensão do ambiente pesado que se vive.

Porém, como ainda esta manhã se viu pela crónica de Alex Lo, no South China Morning Post*, até os mais nacionalistas e patriotas que mantêm algum discernimento e espírito crítico, não se deixando engolir pela retórica oficial, já perceberam que o Partido vai te de pedir responsabilidades à actual liderança pelos resultados insuficientes a que tem chegado.

O sonho da unificação com Taiwan está agora cada vez mais distante; não se adivinham avanços na direcção correcta em Hong Kong, quer pela reafirmação de confiança no actual Governo, que perdeu o controlo da situação, quer pela nomeação de Luo Huining para o Gabinete de Ligação do Governo Popular Central em Hong Kong, um político tecnocrático sem qualquer conhecimento e experiência da realidade do segundo sistema e da forma de actuar que se exige neste para se garantir um módico de legitimidade que permita a realização das tarefas que se impõem, o que não augura grandes auspícios.

Como ainda há relativamente pouco tempo era sublinhado, “the Rule of Law has not been realized, despite the considerable progress made in building a legal system in China in the post-Mao era. In particular, it seems that the Chinese legal system is not moving towards a system in which top Party leaders who violate the law would be equally treated by the law and before the courts as others, and dissidents and others targeted by the regime would be accorded the same fair trials and due process that are accorded to others. It is probably true that China is making progress in extending some form of governance by law and adjudication in accordance with law in some domains of social and economic life. But insofar as the Party reserves the right to intervene selectively in any “politically sensitive” matter or case relating to the Party’s important interests and in which the Party leadership considers it necessary, expedient or desirable to intervene, the system cannot be regarded or described as “Rule of Law”, because Rule of Law is the antithesis of arbitrary power” (Chen, Albert, 2018). Este é um ponto crucial que continua a merecer atenção e que tem vindo a ser descurado, pelo que seria bom que, por exemplo, em relação a Macau fossem enviados alguns “recados” consistentes para alguns dos que agora tomaram posse.

Ninguém espera por aqui uma “caça às bruxas” embora seja evidente que há situações que precisam de ser devidamente esclarecidas. E se for necessário mandar mais alguém fazer companhia a alguns condenados, respeitando escrupulosamente o império da lei, a independência e autonomia dos tribunais, não fazendo interpretações manhosas e abusivas, e fazendo prova com factos cristalinos, então que se mande.   

A população de Macau precisa de reconquistar a confiança nos seus dirigentes. Para que não aconteça o que se está a passar em Hong Kong. De qualquer modo, vamos aguardar para ver o resultado das mexidas que se começaram a verificar.

A nomeação de André Cheong para a Secretaria da Administração e Justiça e como porta-voz do Conselho Executivo, bem como as indicações para as novas pastas da Economia e dos Assuntos Sociais e Cultura poderão vir a revelar-se boas apostas a partir do momento em que dominem os respectivas assuntos.

Há aqui, claramente, um reforço do pragmatismo e a compreensão da necessidade de se realizarem reformas urgentes, controlando o despesismo, a corrupção que continua latente e a medrar na sombra, dando maior transparência e vigor à acção governativa.

A manutenção dos actuais Secretários para a Segurança e Obras Públicas vejo-a como um compromisso com Pequim, mas que ninguém se iluda porque também vão ser pedidas responsabilidades a breve trecho.

Por isso mesmo, é a meu ver totalmente contraditória com esta postura de introdução de mais rigor a nomeação do agora caído em desgraça Alexis Tam, admoestado em público em termos a que não estávamos habituados, para a sinecura de Lisboa e Bruxelas, onde continuará a decidir da aplicação de verbas do erário que acabou há semanas de ser acusado de não saber gerir.

Como incompreensível é a criação de um gabinete para colocar a ex-Secretária Sónia Chan. Quanto a esta decisão continuo a pensar, volvidos todos estes anos, que a fiscalização das contas públicas devia ser feita por um órgão totalmente independente, isto é, entregue a um verdadeiro tribunal, a um verdadeiro tribunal de contas, composto por magistrados e que pudessem fiscalizar com autonomia, informação atempada, transparência e competência a acção do Chefe do Executivo e dos serviços que dirige, já que a AL se tem mostrado incapaz de fazê-lo, em parte também devido à passiva acção do anterior presidente e actual Chefe do Executivo enquanto conduziu os seus trabalhos, e à fraca qualidade geral e impreparação da maioria dos parlamentares.

Convém, finalmente, ter presente o momento delicado e a efervescência que se começa a verificar no sector do jogo, face à indefinição actual. Muitas das apostas feitas por alguns, em termos pessoais, não irão dar os frutos esperados. As apostas em homens, e não em princípios e valores, sempre deram mau resultado. Os bons resultados, quando surgem, são meramente conjunturais, e só se reflectem nos bolsos dos mamões habituais. Basta olhar para o desperdício das terras concessionadas ao longo destas décadas, e para o que serviram e a quem beneficiaram, e o desastre a que se chegou em termos sociais, urbanos e ambientais. 

É por isso de esperar que os novos cadernos de encargos se afigurem mais pesados e rigorosos, e com muito menos poder para as concessionárias, obrigadas como serão a abrir mão de alguns dos seus privilégios para ajudarem à dinamização e diversificação da economia local, contribuindo para a criação de novas oportunidades no sector dos serviços e dos transportes, ajudando a dinamizar a iniciativa empresarial local, quem sabe, e talvez seja isso o desejável, associada a empresas do continente e de outras partes do mundo que transfiram efectivo know-how para Macau, com estruturas tecnologicamente avançadas e bem geridas, o que também implicará uma nova filosofia na contratação da mão-de-obra externa qualificada. Para todas as tarefas. Das mais humildes às mais exigentes.

As concessionárias não podem ser responsabilizadas pela má gestão pública, nem por não terem dado um contributo mais duradouro à RAEM – nenhuma comunidade sobrevive à custa de elefantes brancos. Tivessem-lhes sido dadas as indicações devidas e o resultado teria sido outro. A iniciativa a esse nível tem de partir do Governo. O Governo tem de ter gente e ideias com cabeça, tronco e membros. Chega de artolas.

De igual modo, Macau não pode ficar eternamente prisioneira de uma política de contratação de mão-de-obra que apenas serve os interesses de alguns empresários e de uma meia-dúzia de agências de emprego, que com outro Governo já teriam sido encerradas por manifestamente nefastas ao interesse público, sendo prejudiciais quer a empregadores quer, ainda mais, aos trabalhadores.

Em todo o caso, estas serão contas para outro lençol, pelo que me restará desejar, desde já, votos de bom trabalho ao novo Chefe do Executivo e à sua equipa.

Macau precisa como de pão para a boca de uma boa governança. Espero que o novo CE aproveite o momento e apresente um programa suficientemente sério para conquistar a confiança dos cidadãos.

As ideias do seu antecessor, e a incapacidade de gestão que penosamente se arrastou até final do mandato, só trouxeram atrasos, incómodos, despesa e má gestão, como foi aliás reconhecido na entrevista que o Chefe do Executivo recentemente deu.

Não fosse, como alguém dizia, o investimento feito pelos concessionários do jogo e seríamos hoje um subúrbio de Zhuhai e Shenzhen, tão grande foi a falta de vistas e a má gestão dos dinheiros públicos na última década.

É tempo de arrepiar caminho e de se construir rapidamente algo decente para as gerações futuras.

Algo que não envergonhe o futuro e não desmereça a confiança depositada e reforçada nos residentes por ocasião da última visita do Presidente Xi Jinping. Tirando, finalmente, partido do contributo que ao longo destes anos foi realizado por algumas das concessionárias do jogo para transportarem a RAEM para um outro patamar. Seria uma pena que tivesse sido em vão e que todo esse trabalho se voltasse a perder por falta de adequada planificação, provincianismo e incapacidade da Administração Pública, enredada nas suas burocracias, em realizar o básico.

A começar pela limpeza da cidade e pela purificação do seu ar e das suas águas. Para que todos nos sintamos melhor na nossa pele.   

 

* “(...) Beijing must readjust its cross-strait-policies”; “Beijing old game of playing nice with the KMT and rough with Tsai’s Democratic Progressive party no longer works. In fact, it has become counterproductive”; “Beijing must learn to work with both parties, no matter which one is in power”; “Beijing should stop thinking about Taiwan in terms of Hong Kong and vice versa”; “After 2047 when the guarantee of 50 years of no change ends, China can do whatever it likes in the city. In other words, Beijing can make all the mistakes possible and still gets to keep Hong Kong, even if the city is reduced to wasteland”; “One country, two systems is dead as political option for the island voters”; “the diplomatic isolation of Taiwan is a pyrrhic victory for Beijing (…)”(SCMP, 13//01/2019, 2)  

(texto editado para correcção de gralhas)    

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infelizes

por Sérgio de Almeida Correia, em 13.07.19

Compreende-se que deslocando-se a Macau e à China a convite do Embaixador da RPC em Portugal, a delegação parlamentar portuguesa chefiada pelo deputado Sérgio Sousa Pinto, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas na AR, esteja limitada nas declarações que faz. Aliás, seria tão incompreensível que fossem deselegantes para com quem os convidou como que para o agradecimento tivessem de repetir a anterior distribuição de lambidelas.

Mas, convenhamos, dizer que o que se está a passar em Hong Kong com as leis da extradição não é preocupação da Assembleia da República, sendo preocupação dos parceiros europeus de Portugal, do Parlamento Europeu e dos portugueses, que ainda são, que aqui vivem, e ao mesmo tempo, e na posição em que está, vir discutir com a Secretária para a Administração e Justiça questões relativas ao protocolo entre a Ordem dos Advogados e a AAM, é não ter a mínima noção das prioridades. Nem dos dislates.

Com tanta coisa importante e a preocupar quem cá vive, até parece que esse seria assunto para os fulanos tratarem com a Dra. Sónia Chan.

Já não bastava José Luís Carneiro não ler jornais, e ter dito que nenhum português lhe fez chegar quaisquer preocupações sobre a eventual aprovação de uma lei de extradição, o que era mentira, como agora temos os assalariados parlamentares, dependentes profissionais dos compadrios da paupérrima política nacional, a colocarem-se na posição habitual dos meias-lecas de cada vez que saem em excursão para fora da pátria.

É o que dá andarem a ouvir quem não devem, sem se informarem convenientemente, antes de botarem discurso. Há mais mundo para fora das irmandades e confrarias habituais.

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situação

por Sérgio de Almeida Correia, em 19.02.19

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(Fonte: SCMP)

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legalidades

por Sérgio de Almeida Correia, em 22.01.18

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 A legalidade não tem valor de mercado

Toute Société dans laquelle la garantie des Droits n’est pas assurée, ni la séparation des Pouvoirs déterminée, n’a point de Constitution” – Artigo 16.º, Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789

1. Como escreveu Vieira de Andrade, há na actualidade um conjunto de direitos cuja raiz se faz remontar aos estóicos e a Cícero, que foi depois objecto de densificação com o Cristianismo e as doutrinas de S. Tomás de Aquino, continuando historicamente no Iluminismo e no Liberalismo, e cujos marcos mais recentes podem ser encontrados nas revoluções americana e francesa. Estes direitos acabaram por ser acolhidos em textos de características para-universais, como é o caso de diversos documentos da ONU, entre os quais o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, documento que a RPC, enquanto país fundador daquela organização subscreveu em 1998, concordando que fosse posto em vigor em Macau, através de consagração expressa na Lei Básica (LB), como parte da garantia da existência de um “segundo sistema”.

2. Pela sua origem histórica e importância, esses direitos atravessaram os anos e os séculos e devem ser hoje considerados “património espiritual comum da humanidade“. Assim, impõem-se em quaisquer circunstâncias, não admitindo várias leituras de acordo com pretextos de natureza social, económica ou política para permitirem violações do respectivo conteúdo.

3. Convirá por isso referir que a LB de Macau contemplou a existência desses direitos em diversas disposições, mas o problema que tem vindo a colocar-se nos últimos tempos com mais acuidade é que esses direitos não são os únicos: a sua vigência na ordem interna tem de ser articulada, quer com outros direitos, quer com a acção dos órgãos do poder político, visto que podem tornar-se conflituantes quando colocados em confronto perante determinadas situações concretas. Em causa estão os chamados actos políticos enquanto afirmações de poder decorrentes do exercício da função política.

4. Como vários autores têm destacado (F. do Amaral, G. Canotilho, E. de Oliveira, J. Miranda, M. Rebelo de Sousa, entre outros e para referir só a doutrina portuguesa), o que caracteriza a função política enquanto actividade pública de um Estado é o seu fim específico como definidora do “interesse geral da colectividade” (F. do Amaral), correspondendo à prática de actos que, “com grande margem de liberdade de conformação” (G. Canotilho), fazem a “definição primária e global do interesse público” (J. Miranda), “exprimindo opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade (…) e que respeitam, de modo directo e imediato, às relações dentro do poder político e deste com outros poderes políticos” (M. Rebelo de Sousa). Para este último, a “essência do político reside na realização das escolhas“, não visando projectar-se em termos imediatos sobre os cidadãos. Nesta linha, no Acórdão do STA de 06/02/2011, proferido no Processo 045990 (2ª secção do CA), escreveu-se que actos políticos são “actos próprios da função política e cujo objecto directo e imediato é a definição do interesse geral da comunidade, tendo em vista a conservação e o desenvolvimento desta“.

5. Mas ao lado destes actos que definem a essência da actividade política, também há os chamados “actos auxiliares de direito constitucional“(Afonso Queiró, Esteves de Oliveira) que são aqueles que se destinam a “pôr, manter, modificar ou fazer cessar o funcionamento de um órgão ou regime”, nele se incluindo, por exemplo, a nomeação ou exoneração de um primeiro-ministro, a dissolução de um órgão legislativo ou a marcação da data de umas eleições (cfr. J. de Sousa, Poderes de Cognição dos Tribunais Administrativos relativamente a Actos Praticados no Exercício da Função Política, Julgar, 3, 2007).

6. A LB esclarece-nos que os tribunais da RAEM têm jurisdição sobre todas as causas judiciais (cfr. art.º 19.º), com excepção das que respeitem aos “actos do Estado”, dando-se como exemplo destes as relações externas e a defesa nacional. Por seu turno, a Lei de Bases da Organização Judiciária (LBOJ) estatui que estão excluídas do contencioso administrativo as questões que tenham por objecto os actos “praticados no exercício da função política e a responsabilidade pelos danos decorrentes desse exercício, quer este revista a forma de actos quer a de omissões“.

7. Não resta, assim, qualquer dúvida de que os actos praticados no exercício da função política estão excluídos do contencioso administrativo, não sendo para isso necessária uma qualquer absurda resolução para atestar esta realidade.

8. Mas, pergunta-se agora, desse contencioso estão excluídos todos os actos? Aparentemente dir-se-ia que sim. Só que é aqui que reside o problema, dado que importa compatibilizar o que está vertido na LB (jurisdição sobre todas as causas judiciais) com a LBOJ (exclusão de actos da função política). O facto de um acto ser praticado por um órgão que habitualmente pratica actos inseridos na função política não faz com que todos os actos sejam actos políticos. Uma ordem do Presidente da AL para que um funcionário lhe leve um copo de água no decurso de uma reunião não é um acto político, embora esse pedido possa ocorrer no exercício de uma função política como é a direcção de um Plenário.

9. O controlo jurisdicional dos actos políticos ou de “natureza política” tem sido uma magna questão do direito político-constitucional e administrativo e objecto de muitas discussões. A noção de acto político radica no direito francês e no velho Conselho de Estado, constituindo criação da jurisprudência deste (uma das “escassas máculas da sua história exemplar“, escreveram García de Enterría e Fernández Rodriguez, 1997) quando, após a queda de Napoleão, a dinastia dos Bourbons volta ao poder e aquele órgão decide autolimitar as suas competências para conseguir sobreviver.

10. O conceito evoluiu, tendo passado por concepções distintas – na teoria da motivação ou do móbile político como acto de “alta política“(Arrêt Lafitte de 1/05/1822); depois classificado em função da “natureza do acto“, no Arrêt Prince Napoléon de 19/02/1875; finalmente, abandonando uma definição geral por uma análise empírica de natureza casuística ­ (cfr. B. M. Acuña, El Control Jurisdiccional de los actos politicos del Gobierno en el derecho español, RIEDPA, 2, 2015; J.L. Carro e Fernandéz Valmayor, La doctrina del acto politico, 1967; K. Navarro e M.A. Sendín Garcia, El Control Judicial de los actos politicos en España y Nicaragua, http://biblio.juridicas.unam.mx), até se admitir na actualidade que a diferença entre actos políticos e administrativos estará apenas no grau de discricionariedade, o qual depende da diferente densidade normativa da sua regulação, e não da vinculação positiva ou negativa à norma jurídica. Num caso com discricionariedade mais forte, no outro mais fraca.

11. Certo é que existem mecanismos de controlo do acto político, vertidos nas Constituições e nas leis, que condicionam o processo da sua elaboração, produção e aplicação, obrigando ao cumprimento de determinados requisitos: há órgãos próprios aos quais compete a sua emissão, exigências de forma e de motivação a respeitar, há que conformá-los com os princípios e valores constitucionais, sem esquecer as regras a obedecer para que quando produzidos possam ser escrutinados e conhecidos de todos.

12. É aos tribunais que cabe, em qualquer sistema moderno de direito, o controlo do princípio da legalidade, pois todos os órgãos do Estado estão submetidos à lei. A RAEM não constitui excepção, constituindo um chiste dizer que “qualquer irregularidade eventualmente cometida até chegar ao Plenário está coberta pela deliberação do Plenário” (JTM, 18/01/2017). Já foi assim, já houve quem assim pensasse em tempos remotos, mas não está mais, e mal seria que ainda estivesse.

13. O papel dos parlamentos e dos tribunais é na actualidade diferente daquele que desempenharam no passado. A AL, pese embora todas as suas insuficiências e deficiências de composição, enquanto órgão parlamentar, não é “una corporación medieval, sino un órgano del Estado sometido, ni más ni menos que los otros órganos y los ciudadanos, a los principios y a las normas de la Constitución” (Torres Muro, 1986, El Control Jurisdiccional de los Actos Parlamentarios. La Experiencia Italiana), que é como quem diz da LB. A AL não pode ser vista, por muito que isso custe a alguns “legisladores”, como uma fortaleza isenta de todo e qualquer controlo e na qual se podem cometer os maiores desmandos, incluindo a violação de direitos fundamentais universalmente consagrados, por meras razões de circunstância. Há valores mais altos.

14. Em Itália, o fim do fascismo e a aprovação da Constituição de 1947 deram corpo a um novo posicionamento, que levou a considerar ao lado dos interna corpori acti, a necessidade de equilibrar a defesa da autonomia das assembleias com a “tutela contra a lei viciada pelo procedimento” (Manzanella, Il Parlamento, Bolonha, 1977). Só é lei a que obedece a determinado processo de produção. E não é, ao contrário do que alguns pensam, a unanimidade parlamentar que transforma em lei qualquer borrão que seja colocado à votação do Plenário. Existem normas jurídicas que regulam a formação da vontade legislativa. A submissão à lei, escreveu Boneschi, é a base do “procedimento de formação da vontade pública“.

15. Daí que, também, de há muito se admitiu que haja ao lado das normas “di organizzazione procedurale” outras que “regulan la fase de la decisión parlamentaria (norme sulla decisione)“. É verdade, como diz Pizzorusso, que “as finalidades de controlo não se podem pôr todas ao mesmo nível ao longo do procedimento legislativo, havendo que distinguir entre as mesmas”, em termos tais que a distinção não possa “basear-se em circunstâncias extrínsecas, mas sim derivar da posição dos diferentes actos do procedimento, com base na sua estrutura, em relação às funções que lhes são cometidas pelo ordenamento jurídico e os seus efeitos”.

16. Com a autoridade que lhes é reconhecida, e que há muito ultrapassou as fronteiras atlântica e pirenaica, García de Enterría e Ramón-Fernandéz sublinharam que até a regra da irrecorribilidade dos actos de trâmite é uma simples regra de ordem, não uma regra material absoluta que seja absolutamente infiscalizável pelos tribunais.

17. E quando em causa estão direitos fundamentais parece evidente, até para o homem da rua, e ainda que o acto final seja político, que não se podem permitir atropelos devido à precipitação e à incompetência dos executores para atingirem os fins que pretendem. Que em qualquer caso sempre seriam politicamente discutíveis: “[a] independência do Poder Judicial e a sua vinculação exclusiva ao Direito tornam-no, nas sociedades democráticas, o guardião próximo dos direitos individuais perante os poderes públicos e nas relações entre privados. (…) Os tribunais (os juízes) encarnam a consciência jurídica da comunidade e constituem a última instância de defesa da liberdade e da dignidade dos cidadãos” (Vieira de Andrade, 2010).

18. Refira-se ainda que o Comité Permanente (CP) do 12.º Congresso do PCC, na sua 24.ª Sessão, analisou o disposto no art.º 104.º da LB de HK, tendo concluído, de relevante para o que aqui se trata, que devem ser seguidos os procedimentos legais relativamente à forma e ao conteúdo para um acto poder ser considerado válido. Ora, ninguém duvida que um juramento de investidura de um deputado é um acto político. E foi esse o sentido que também lhe quiseram atribuir os prevaricadores ao desrespeitarem o que estava legalmente estabelecido. Ou seja, no caso concreto sobre o qual se pronunciou, o [que o] CP veio dizer foi que se os procedimentos legais não foram seguidos o juramento prestado é inválido. Independentemente daquilo que os tribunais de HK pudessem, eventualmente decidir sobre a questão que lhes fora confiada. E, acrescento eu, mesmo que esse juramento fosse eventualmente confirmado por unanimidade pelos deputados do Legislative Council de HK, as invalidades nunca seriam consumidas pelo acto político final. Se dúvidas havia, elas dissiparam-se com a interpretação feita.

19. Como bem diz pessoa que muito estimo, a RPC não pode permitir que na RAEM as coisas se possam passar de modo diferente daquele que ocorreu em HK relativamente aos critérios de interpretação das respectivas Leis Básicas. O CP não vai fazer uma interpretação para HK, em 2016, e outra diferente para Macau, em 2018, se questão idêntica lhe vier a ser suscitada sobre o cumprimento das formalidades de um acto político.

20. Admitir que procedimentos consagrados na lei poderiam ser desrespeitados, ainda que por unanimidade dos decisores, e que existem áreas vinculadas da actuação do Governo ou da AL que se furtam ao controlo dos tribunais – inclusivamente espezinhando direitos fundamentais consagrados na LB ­–, seria um grave retrocesso. Um retrocesso não pode ser motivo de satisfação da RPC. E em nada contribuiria para a dignificação do “segundo sistema”.

Haja tino. E, por uma vez, vergonha e patriotismo (para os que não forem “patriotas de circunstância”).

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yes-men

por Sérgio de Almeida Correia, em 19.06.15

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Em Pequim ainda devem estar a pensar se o que aconteceu ontem em Hong Kong, no Legislative Council (Legco), com a votação do pacote de medidas preparado pelo Governo de C.Y. Leung, através da Secretária Carrie Lam, tendente a uma pseudo-reforma democrática das leis eleitorais, resultou de um guião mau preparado, de dificuldades de comunicação ou da pura e simples má qualidade dos actores que a China escolheu para defender os seus interesses naquela Região Administrativa Especial.

De há muito que se sabia qual é que seria, previsivelmente, o sentido de voto dos deputados: de um lado estariam os pró-Pequim, sempre prontos a apoiarem todas as indicações que lhes chegassem da "Mãe-Pátria", do outro os hongkongers do campo democrático (Pan-democrats), que depois das manifestações de rua do ano passado, que tantos incómodos causaram, já tinham anunciado que iriam votar contra e bloquear a reforma semi-democrática que lhes era oferecida.

Para quem não acompanhou o início da discussão, convirá esclarecer que à semelhança do que acontece em Macau só uma parte dos membros do Legco é que é eleita por sufrágio directo. Dos seus membros há trinta que são eleitos por sufrágio indirecto. De acordo com a Lei Básica de Hong Kong, texto para-constitucional da Região, hoje vista como a Magna Carta dos seus cidadãos, o artigo 68.º estatui como objectivo último a eleição por sufrágio universal de todos os membros do Legco, havendo idêntico artigo para a eleição do Chefe do Executivo. O que o Governo de Hong Kong preparou, de acordo com as directivas de Pequim, foi um pacote de reformas que previa, entre outras coisas, um sufrágio universal condicionado para a escolha do próximo Chefe do Executivo, que terá lugar em 2017. Condicionado porque o princípio "one man, one vote" iria depender de um esquema de pré-aprovação, por parte de Pequim, dos candidatos que se apresentassem a sufrágio, com o seu número limitado a três. Importa também referir que o número de forças políticas representado no Legco é elevado (16), dividindo-se entre os dois campos (Pró-Pequim e Pan-democratas) e que dos Independentes há 8 pró-Pequim e 3 que não alinham com nenhum dos lados e procuram manter-se equidistantes, pelo menos em teoria.

Os democratas sempre rejeitaram reformas mitigadas, muitas vezes recordando que existia um compromisso político e legal que devia ser respeitado e que a introdução de uma democracia com regras distorcidas, que não contemplasse a eleição directa e por sufrágio universal, sem condicionamentos de qualquer ordem, do próximo Chefe do Executivo, seria uma violação das garantias constitucionais da Região e da palavra de Pequim. Alguns ainda argumentaram que apesar dos constrangimentos introduzidos sempre seria preferível uma eleição em que todos os cidadãos participassem - coisa que nunca aconteceu no tempo da administração colonial - com candidatos pré-escolhidos, do que a continuação do actual esquema que, pelos vistos, também não tem dado bons resultados, tantos e tão graves têm sido os problemas ocorridos em Hong Kong, quer numa perspectiva política, com sucessivos casos de corrupção envolvendo os mais altos dirigentes escolhidos com o aval da China, quer numa perspectiva estritamente económica.

A aprovação do pacote de medidas estava, em todo o caso, dependente de uma maioria de 2/3, que só seria atingível com votos do campo democrático. Logo, o risco à partida já era grande se os 27 deputados do campo Pan-Democrático votassem. Mas o que aconteceu foi que momentos antes da votação, 31 dos membros apoiantes do governo de Hong Kong, alegando o atraso de um dos seus (Lau Wong-fat) para a votação, ao que parece retido em razão do congestionado trânsito da cidade, abandonaram o hemiciclo confiando que a votação iria ser adiada, logo aí revelando desconhecimento do regimento do Legco. Sucedeu que a votação não era passível de adiamento e a seguir teve lugar o chumbo da proposta do governo de Hong Kong. A votação registou 28 votos contra, 27 votos do lado democrático complementados com mais um voto de um membro pró-Pequim, oito a favor e nenhuma abstenção. 

Para lá da ignorância e falta de coordenação que as forças pró-Pequim revelaram, para o governo de Hong Kong e para Pequim o resultado, como escrevia esta manhã o South China Morning Post, foi um fiasco. Mas mais importante do que a risada geral que provocou  -  "Alliance chairman Andrew Leung Kwan-yuen said he went to Beijing's liason office yesterday afternoon with several party colleagues to tell a deputy director what happened. Meanwhile, according to Liberal Party sources, senior liaison office officials called party leader Vincent Fung Kang at about 1pm yesterday to praise its lawmakers." (SCMP) -, é saber que consequências podem daqui resultar. Para Hong Kong, para Macau e para a própria China.

O campo político da Hong Kong há muito que está extremado, não havendo sinais que permitam pensar que daqui para a frente vai ser diferente. O impasse deverá continuar, salvo se alguém tiver o bom senso de propor uma solução transitória que salve a face das duas partes e permita o recomeço do diálogo, eventualmente assente noutras bases e novos compromissos. Em todo o caso, um endurecimento das posições de Pequim e uma revisão daquela que tem sido a sua política em relação a Hong Kong não será de excluir. 

Para a China, numa perspectiva interna, as consequências serão nenhumas. A não ser em relação àquilo que já era conhecido. Isto é, a confirmação de que existe dificuldade em aceitar as regras do jogo democrático e confiar a gestão de Hong Kong ao seu povo. E se é assim em Hong Kong, é natural que os democratas de um lado e do outro lado dos Novos Territórios tenham razões para continuar apreensivos, tanto mais que Pequim já veio ridiculamente criticar os Pan-democratas por estarem, imagine-se, a obstruir o desenvolvimento democrático de Hong Kong.

Quanto a Macau, as consequências podem também ser nenhumas. O que aconteceu em Hong Kong poderá, quando muito, tornar mais medrosa, mais acomodada e mais subserviente uma governação - e refiro-me à última década - que tem dado constantes mostras de fraqueza, obediência, falta de arrojo e de visão estratégica. E, ao mesmo tempo, acalmar as hostes democráticas locais, mantendo-as na expectativa sobre o que se irá passar em Hong Kong antes de decidirem avançar com novas formas de pressão e renovadas exigências, no que só revelarão bom senso.

Há, ainda, uma outra conclusão a extrair. E esta diz respeito a todos, quer estejam em Hong Kong, em Macau, na China, em Portugal ou em qualquer outro lado: o recurso aos yes-men para garantir a permanência no poder e concretizar políticas, além de revelar a pouca inteligência de quem os escolhe, é sempre um risco muito grande. A idiotia, como a verdade, vem sempre à superfície e, normalmente, sob as formas menos esperadas e mais caricatas. 

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china

por Sérgio de Almeida Correia, em 17.01.15

Sentado na cadeira do otorrino, uma espécie de banco dos réus, de goela aberta e luz nas ventas. Deitado de bruços numa marquesa enquanto as mazelas são tratadas por mãos experientes. Há sempre uma sensação de fragilidade. Também de entrega a quem nos faz bem. Em quem acreditamos.

Vou passando ligeiramente pelas brasas, olhando para o que fica, imaginando o devir. Agora um gel e a coisa continua. Brassens chegando de mansinho. A música? Fui eu que escolhi. Toco violino. Compro os discos em Taipé.

No meio do desconforto, do incómodo, momentos únicos enquanto eles e elas, carinhosas, fazem o seu trabalho. A China tem destas coisas que longe me fazem bem. Confortam. Pieguices.

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confiança

por Sérgio de Almeida Correia, em 10.10.14

20120704_51b0c6b5a8d395e33407t8R02hzlJ5VQ.jpgEm 2012 muita gente se interrogou sobre se Leung Chun-ying seria digno de confiança. Em causa estava na altura a realização de um conjunto de obras ilegais nas suas casas do Peak. Depois da assunção de responsabilidades e de um pedido de desculpas o assunto morreu. Mas hoje volta a ser pertinente colocar a mesma questão e a resposta mais óbvia parece ser "não, não pode confiar".

Os movimentos desencadeados em Hong Kong em torno da escolha do futuro Chefe do Executivo daquela poderosa Região Administrativa Especial da RPC, no sentido da escolha por sufrágio universal e directo já em 2017, agudizaram-se a partir do momento em que foi conhecida a decisão de 31 de Agosto do Congresso Nacional Popular que determinou que a escolha dos candidatos a sucessores de C. Y. Leung ocorresse no seio do Comité de Eleição em termos idênticos aos verificados em 2012, isto é, sendo aquele órgão escolhido e controlado por Pequim a determinar quem seriam os candidatos que poderiam depois apresentar-se à eleição.

Esta decisão foi vista por largos milhares de pessoas como um grave desvio à letra e ao espírito do artigo 45.º, n.º 2, da Lei Básica de Hong Kong. Recorde-se que este normativo estatui que o objectivo último é a escolha do Chefe do Executivo de HK através do sufrágio universal por parte de um comité escolhido de acordo com as regras democráticas.  Nada mais se dizendo, a única forma que Pequim encontrou para obviar à apresentação de candidaturas saídas dos movimentos e partidos democratas que se lhe opõem foi a de tirar com uma mão o que aparentemente dava com a outra. Ou seja, o que Pequim disse foi que para haver sufrágio universal em 2017 o número e o nome dos candidatos seria previamente aprovado pelo órgão da sua confiança, devendo os três candidatos (número máximo) que viessem a ser aprovados obter o consenso de mais de 50% dos membros do Comité de Eleição.

Se em Maio, Junho e Julho a cena política já estava quente, e não apenas pela impiedosa canícula e humidade, tendo-se os campos extremado após o anúncio do movimento "Occupy Central" e a manifestação pró-Pequim de 17 de Agosto, que trouxe para as ruas centenas de milhares de pessoas, como que a dizer que em Hong Kong não havia só oposição mas também apoio na rua às intenções de Pequim, o final de Setembro colocou as autoridades locais perante novos desafios. A ocupação e paralisação de vastas zonas do centro nevrálgico de Hong Kong por movimentos cívicos e de estudantes veio chamar ainda mais a atenção internacional para a situação da antiga colónia britânica.

Durante algumas semanas, em virtude de ter andado por outras paragens, foi-me impossível acompanhar ao vivo e em directo o que se ia passando, ficando limitado ao que surgia nos jornais e nos ecrãs das televisões por onde passava, e era divulgado via Internet, mormente através de blogues e redes sociais. Apesar disso, creio que qualquer observador externo, que não acompanhasse a realidade local, sem dificuldade perceberia o que se estava a passar e perguntaria até quando as autoridades chinesas estariam dispostas a permitir o caos numa das mais importantes praças financeiras do mundo, numa das cidades mais belas e mais visitadas da Ásia.

Aos poucos foi possível perceber que o movimento desencadeado estava dependente de frágeis lideranças e de uma estratégia que, para além de reclamar o cumprimento de promessas e do artigo 45.º da Lei Básica, fosse mais do que a simples decisão de ocupação pacífica do centro da cidade. Muitos apontaram-lhe falta de consistência política. No entanto, e depois de um período em que o cansaço se começou a tornar evidente nos manifestantes, nas autoridades e em vastos sectores da população, as revelações do passado dia 8, do Sidney Morning Herald, voltaram a colocar a população em polvorosa e podem funcionar como um novo impulso para um reagrupar de forças e um endurecimento do movimento "Occupy Central" contra Pequim e a protecção que tem sido conferida à sua gente em Hong Kong.

Em causa está o recebimento por parte do Chefe do Executivo de Hong Kong de cerca de 4 milhões de libras, cerca de 50 milhões de dólares de Hong Kong, em dois pagamentos que lhe foram efectuados pelos australianos da UGL. De acordo com o que entretanto foi conhecido, C. Y. Leung dois dias antes de se demitir da DTZ, a entidade para a qual trabalhava e de que era director antes de se tornar Chefe do Executivo de HK, assinou um contrato secreto para ser "referee and adviser" do grupo australiano e para prevenir que formasse e/ou se associasse a uma empresa ou grupo rival contra os seus antigos patrões. Sabendo-se que já em Novembro de 2011 C. Y. Leung apresentara a sua candidatura à corrida para Chefe do Executivo, duvida-se da bondade dos argumentos invocados para os pagamentos, tanto mais que estes só viriam a ocorrer em 2012 e 2013, já em pleno mandato. Fosse para pagamento de comissões, tráfico de influências ou corrupção pura e dura, como parece ser, visto que em 2012 e 2013 havia a certeza de que ele não estava a desempenhar funções para terceiros concorrentes mas a exercer um cargo político em Hong Kong, certo é que este caso segue-se ao de Rafael Hui Si-yuan, outro membro do executivo de Hong Kong caído em desgraça devido às suas relações com os dois irmãos da poderosa Sun Hung Kai Properties, cujos contornos têm tanto de rocambolesco quanto de grave.

Se em Macau a sociedade civil é praticamente inexistente, reconhecidamente fraca e tudo - com excepção dos casinos e do que estes envolvem - funciona numa escala ínfima face ao que se passa em Hong Kong, não deixa de ser preocupante para as autoridades chinesas que, num momento em que na RPC o Partido Comunista e o seu líder máximo desenvolvem um combate sem quartel contra a corrupção (na melhor tradição maoísta designado por "Linha de Massas"), que já levou ao afastamento de mais de 70.000 membros do Partido, não sendo sequer poupados os seus mais altos dirigentes e a elite empresarial, nas duas regiões do delta do Rio das Pérolas se sucedam casos de corrupção envolvendo figuras do establishment, milionários, empresários conhecidos e membros dos executivos locais, em ambos os casos desafiados por jovens muito novos e estudantes - em Hong Kong um dos dirigentes do movimento tem apenas 17 anos e esteve detido durante 46 horas.

As reacções a que até agora temos assistido, que rapidamente vão da tolerância ao uso da força - bastonadas, gás pimenta e gás lacrimogéneo já foram utilizados pelas forças de segurança de Hong Kong -, com o arrastar da contestação de rua e a consequente degradação da imagem de confiança, estabilidade e segurança de Hong Kong, não permitem a ninguém com um mínimo de seriedade prever o que se vai passar a seguir. Tudo é possível.

Um endurecimento das posições de Pequim e o uso indiscriminado da força aumentará a desconfiança da população de Hong Kong, dos observadores externos e dos investidores. Por outro lado, a aceitação nas actuais circunstâncias das exigências dos manifestantes transmitiria sempre uma imagem de fraqueza que retiraria face às autoridades chinesas e poderia constituir um desafio aos movimentos, sistematicamente silenciados e desvalorizados, que no interior da China clamam por mais liberdade e democracia. Qualquer que seja o desfecho, que estou convencido ocorrerá muito em breve, talvez não mais que algumas semanas, nada voltará a ser como dantes.

Do outro lado do estreito da Formosa, apesar dos mais recentes desenvolvimentos nas relações com Taipé, são muitos milhões os olhos que observam o que se vai passando em Hong Kong. Deste lado do delta também. Não é só a confiança em C. Y. Leung e a protecção que a RPC tem dado a alguns sectores corruptos da elite empresarial e política de Hong Kong que suscita interrogações. Torna-se por isso legítimo aos cidadãos de Hong Kong perguntar até que ponto a RPC é confiável. A resposta só poderá ser dada pelas autoridades chinesas e vai depender da forma como se processar a escolha do próximo Chefe do Executivo. O que agora está em cima da mesa também não se resume a um punhado de dólares. E dificilmente estes seriam alguma vez suficientes para comprarem o que se receia ver restringido ou perder e que continua a ser preservado - até quando? - num modestíssimo 5.º andar da Austin Avenue: o direito a escolher. A liberdade.

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