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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Desde a criação do mundo que esse desprezível sentimento faz parte das nossas vidas. Foi a inveja que levou Eva à maçã e foi por ela que o diabo se afastou de Deus. Foi deusa romana, que por onde passava tudo secava, está presente em Dante e serviu de objecto de estudo a Tomás de Aquino. Há quem lhe reconheça, de acordo com o judaísmo, na justa medida, qualidades propulsoras do progresso e surge associada a numerosos artistas. Bosch imortalizou-a numa obra de excepção que pode ser apreciada no Prado, e ei-la agora de novo redescoberta na trama do último livro de Carlos Morais José, um pequeno tratado das compulsões da alma humana que viaja pelas desventuras de Camões, Diogo Vaz de Caminha e Diogo Couto, percorrendo Baudelaire, Borges, Leitão de Barros e alguns mais, até desaguar em Malinowski. Escrito com a simplicidade própria da escrita que se quer intemporal, reconhece-se com facilidade a formação antropológica do autor numa espécie de observação participante da história e da literatura na figura do seu protagonista. Editado com cuidado pelos Livros do Oriente, traz na capa uma reprodução do belíssimo Retratto de uomo con libro (1530), de Parmigianino. Agradável surpresa que marca este final de 2016 e será, sem dúvida, uma das estrelas da próxima edição do festival literário Rota das Letras. Deixa-se ler com gosto, o que o recomenda que seja relido numa próxima oportunidade. De preferência à noite e durante o Inverno, para que a viagem da leitura nos transporte aos caminhos percorridos pelo autor. Em Lisboa foi lançado no final de Outubro, em Macau será apresentado no próximo dia 13 de Dezembro, onde contará com a análise sabedora do Prof. Dr. Carlos André.
Passada a estranheza do convite inicial, de onde ressaltava o facto de um jornalista e autor vivo e “os poetas assassinados” convidarem “toda a população de Macau, Taipa, Coloane e Ilha da Montanha para a sessão de lançamento da revista Órphão”, um pouco mais abaixo esclarecia-se que haveria “comício e bebício”, atracções de feira, dramaturgos, criadores, ensaístas, autores, poetas, “etc.”. O local escolhido para tão ecléctico programa era a Livraria Portuguesa de Macau. Em causa estava o lançamento de uma revista de literatura, artes e ideias, com uma tiragem única de cem exemplares, destinada a comemorar, porque nestas coisas o tempo e as pessoas são sempre relativos, os cem anos da Orpheu que haviam passado em 24 de Março de 2015.
Habituado a ver este tipo de acontecimentos entregue a almas errantes e a meia dúzia de curiosos penitentes, estranhei quando cheguei ao local, uns minutos antes da hora agendada, e verifiquei que estava um ajuntamento de dimensões razoáveis no passeio com algumas caras conhecidas e gente da socialite da terra, junto à entrada da livraria, mas logo depois pensei que havendo "bebício", e à borla, poderia ser essa a explicação. Lá dentro, as pessoas aguardavam como podiam pelas escadas sobriamente decoradas com dois painéis a preto e branco que conduziam à pequena sala, ainda encerrada, onde iria ter lugar o evento.
Descidos os rápidos lances de escada, uma cortina negra recebia-nos no final franqueando o acesso a uma sala na penumbra, apenas iluminada por dois pequenos candeeiros. À entrada, que se fazia individualmente junto a uma pequena mesa com copos e garrafas, era-nos perguntado por uma máscara veneziana de capa negra se queríamos um trago de porto, de vodka ou de whisky, enquanto acordes, frases, monólogos, textos vários se iam libertando da aparelhagem sonora. Aos poucos, os convivas foram-se encaixando num espaço que rapidamente se tornou francamente exíguo. Carlos Morais José, também ele de máscara e trajes negros, aguardava junto a uma bancada que a movimentação desse lugar ao espectáculo por onde pouco depois, entre fumos e vapores, desfilaram textos dele próprio e dos seus heterónimos/pseudónimos em diversas roupagens, todos desventuradamente assassinados e dos quais só ficará a memória em artigos de jornal, nas páginas da Órphão, e nos ouvidos de quem lá esteve a música de Schubert, de Laurie Anderson e de mais uns virtuosos que por ali passaram.
No final, perante uma plateia rendida à imaginação do autor, que escreveu, coreografou, leu, declamou, monologou, ficámos a saber, entre outras coisas, que Pedro Magro e Propósitos de Trieste se inspirara no escritor, académico e ensaísta Claudio Magris, e que aconteceu em Macau como poderia ter acontecido noutro lado qualquer. Daqui a cem anos, se nessa altura ainda existirem maltes de respeito, pode ser que se volte a repetir.