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khmers (4)

por Sérgio de Almeida Correia, em 30.12.16

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Se viajar é também uma arte e um prazer, há algumas regras que devem ser seguidas para se extrair o máximo da jornada. Paul Theroux, um reconhecido escritor de viagens, escreveu um dia que há três regras básicas para o viajante – aquele que não sabe para onde vai, ao contrário do turista que não sabe onde esteve – e que se resumem a viajar por terra sempre que possível, de preferência sozinho e tomando notas. Como não gosto de voar e só o faço por obrigação sabia que não iria de avião para Phnom Penh. Contudo, estava indeciso sobre a melhor forma de seguir caminho, se de barco, descendo o Mekong até à capital, se fazê-lo por estrada.

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Descer o rio teria sempre o aliciante de poder tirar boas fotografias, mas revelava-se uma opção pouco gratificante porque me iria afastar das pessoas, da estrada, do contacto com a terra e com os campos ao longo do caminho. As referências sobre as embarcações que fazem esse percurso não eram as melhores, nem em termos de salubridade nem de segurança. Por estrada, as alternativas eram várias mas acabámos por fazer essa parte da viagem num dos autocarros da Giant Ibis, uma excelente companhia, com um registo impecável em termos de segurança, um site na Internet e que que providencia o transporte dos seus passageiros dos hotéis para os terminais. Os veículos da Hyundai que utiliza são relativamente novos. Tem um serviço de bordo melhor do que algumas companhias aéreas a que tenho recorrido, bons motoristas, pessoal atencioso e, inclusivamente, distribui logo pela manhã uns magníficos brioches e os nossos conhecidos caracóis com passas, acompanhados de uma garrafa de água. Os autocarros têm wi-fi, ar-condicionado, são limpos e cómodos. Por 15 USD iria fazer o percurso de 340 km entre as duas cidades, sabendo que iria ter três paragens pelo caminho, uma delas para o almoço. 

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A escolha foi acertada. Vi uma paisagem diferente daquela que conhecera na região de Siem Reap e Angkor Wat e pude ir apreciando as estradas, o casario, as dezenas e dezenas de escolas, vendo o movimento das pessoas e veículos, os pais à espera dos mais novos, os mais velhos seguindo a pé ou de bicicleta, alguns de mota. A estrada nacional está em muito bom estado e o percurso, que acaba por durar cerca de 6 horas e 30 minutos, faz-se bastante bem.

20161221_173137.jpgAo longo do caminho também aproveitei para ler mais alguma coisa, dando particular atenção ao livro de Ben Kiernan ("The Pol Pot Regime – Race, Power, and Genocide in Cambodia under the Khmer Rouge, 1975-1979"), de leitura obrigatória para quem quer saber alguma coisa sobre o que ali se passou quando em Portugal se defendia a democracia e a liberdade na Alameda. Ao mesmo tempo ia observando as pessoas, recordando trechos do filme de Joffé e pensando na cidade que iria encontrar.

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O corrupio de pessoas, motociclos, tuk-tuks, carros, bicicletas e autocarros de turismo carregados de chineses e coreanos aumentava à medida que nos aproximávamos de Phnom Penh. A confusão nas ruas à beira dos cruzamentos era grande e rapidamente compreendi que a cidade ocupava uma área bastante extensa e tinha uma população muito substancial. Mais tarde esclareceram-me que deve andar pelos dois milhões de almas. thumb_P1080020_1024.jpgAo chegar a Phnom Penh dirigi-me de imediato ao meu hotel, situado mesmo junto ao Palácio Real e ao Museu Nacional, próximo do Boulevard do Príncipe Sihanouk (Preah Sihanouk Blv.) e na zona onde até 1975 ficava a Embaixada dos EUA. Foi só o tempo de largar a bagagem, refrescar-me e começar a palmilhar a cidade. 

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Visitar o Palácio ou o Museu nesse dia estava fora de questão, visto que fecham cedo (17 horas), pelo que agendei essas visitas para mais tarde e tirei partido da localização do hotel para conhecer as ruas adjacentes, dar um rápido passeio pela marginal junto ao rio, e fazer a pé todo o percurso desde ali até ao Monumento da Independência. De caminho vi dezenas de estudantes e candidatos a monges, da Universidade Budista de Phnom Penh, vi as novas embaixadas altamente protegidas e fui olhando para os rostos, tentando perscrutar nos sorrisos que me cruzavam o que teria sido a sua vida há algumas décadas.

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De novo me voltaram à cabeça as cenas da película de Roland Joffé, em especial as das filmagens no interior da embaixada e da chegada dos Khmer Rouge às suas portas. Embora o filme tivesse sido rodado na Tailândia, as casas, as ruas e a arborização que nele aparecem correspondem na perfeição ao que encontrei em Phnom Penh.  

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A cidade tem uma localização privilegiada junto ao rio, espraiando-se já pela outra margem, de onde se pode ver um excelente pôr-do-sol sobre os telhados do Palácio Real. Os problemas do lixo, da higiene urbana e dos cheiros, de que me apercebera em Siem Reap, tinham aqui continuação. Existe um conjunto de edifícios de arquitectura colonial, muitos deles degradados ao lado de outros excelentemente preservados, que conjuntamente com as esplanadas, numerosos cafés e muitos e bons hotéis e restaurantes dão-lhe um toque ocidental e mediterrânico. A luz durante os dias em que ali estive foi imensa, em especial durante as manhãs, o que me trouxe um misto de satisfação e saudade pela inigualável e penetrante luz das manhãs do meu país. 

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O contraste entre alguns muito ricos, os ricos e os pobres é visível, notando-se que os mais abastados têm traços étnicos chineses. Estes e os de origem vietnamita eram os principais habitantes da cidade e foram os primeiros a ser dizimados e expulsos para o campo, como a maioria da população das cidades, obrigada a trabalhos forçados e de "reeducação" pela cegueira resultante de uma amálgama de extremismo ideológico, racismo e xenofobia que aniquilou etnias e classes urbanas, acusando-as de traição em resultado da contaminação provocada pelas influências estrangeiras. Apesar da cidade estar a crescer, ainda não atingiu o ritmo de desenvolvimento do vizinho Vietname. O novo Casino Naga tem atraído um conjunto de investidores e jogadores chineses e de outras regiões da Ásia, como Singapura e Coreia do Sul, pelo que é natural que nos próximos anos a cidade dê um salto. Deverá ser essa a razão para a Rolls Royce já ter um representante e expositor na cidade.

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A população aprecia os jardins, gosta de ficar na cavaqueira, fumando e bebendo, nos passeios, vendo-se imensas crianças. Crianças e jovens, pois que praticamente não se vêem velhos. Alegres, correndo de um lado para o outro atrás das suas bolas, envergando camisolas contrafeitas de clubes de futebol europeus e até da nossa Selecção Nacional, emulando Cristiano Ronaldo nos seus toques de bola. 

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Durante os dias em que andei por Phnom Penh conheci mais alguns restaurantes. Gostei bastante do La Pergola, no hotel The Plantation, onde pernoitei. Um óasis confortável no centro da cidade, que recomendo vivamente, decorado com gosto, com um bar de tapas no rés-do-chão, um ambiente cosmopolita, de gente simples mas que se vê ter mundo e maneiras pela maneira como come, como fala, como se comporta perante os empregados e pela educação com que lida com os outros com que se cruza. Esses são os primeiros sinais de civilização de um homem. 

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Estive também no afamado Chinese House, do qual não fiquei com saudades. Pena que um local diferente e bem decorado, popular entre os expatriados, tenha uma cozinha com uma confecção tão má e tão pretensiosa. Caro para a qualidade. Mau para se amesendar. Salva-se o bar do rés-do-chão, por sinal às moscas na noite em que lá fomos. 

Amanhã será um novo dia. Não sei o que irei encontrar, embora me tenha vindo a preparar para tal. Veremos se depois do que vi e li não ficarei demasiado maltratado.  

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khmers (3)

por Sérgio de Almeida Correia, em 29.12.16

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O desenvolvimento de Angkor ficou a dever-se ao génio do Rei Jayavarman II (790-835) que inicialmente estabeleceu a capital em Roluos, depois mudada para as montanhas Kulen. Até então a história dos khmers era uma história de pequenos estados independentes, por vezes transformados em impérios, mas sempre durante períodos relativamente curtos. Consta que desde o período neolítico a região foi ocupada devido à fertilidade dos solos em redor do chamado Grande Lago, da riqueza piscícola e abundância de água, mas foi a partir de 1908 e das descobertas da Escola de Arqueólogos Franceses do Extremo-Oriente, em particular de Jean Commaille, que escreveu em 1912 o primeiro guia de Angkor, que se tornou conhecida. O que hoje se vê é apenas uma pequena amostra do que existiria, sabendo-se das inscrições nos relevos dos templos que, por vezes, as construções se atrasavam durante anos devido à ausência de fundos para serem concluídas. 

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Não vou aqui descrever em detalhe o que por ali vi, importa talvez dizer que quem quiser explorar a região de Angkor e visitar os templos, declarada Património da Humanidade desde 1992, após a celebração dos Acordos de Paris, tem primeiro de munir-se de um bilhete, cujo preço varia entre os 20 USD, para um dia, e 40 USD, para três dias, sendo possível obter passes de uma semana. Convém que quem lá for não se iluda e não se arme em chico-esperto, resolvendo começar a circular livremente por toda aquela vasta área para poupar no custo do bilhete, confiando na sorte, porque na estrada e à entrada das zonas onde estão os principais templos é feito o controlo dos bilhetes pela Polícia do Turismo, bilhetes que depois são frequentes vezes pedidos para verificação da identidade do titular e confirmação de que a foto dele constante, tirada na hora, corresponde ao visitante que se apresenta. O controlo é amigável e simpático para os viajantes sem deixar de ser rigoroso para os infractores que sejam apanhados sem bilhete.

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Depois de três dias passados nesta região, onde aproveitei para observar os fabulosos frescos, respirar todo aquele verde e visitar o Museu Nacional D'Angkor, reservando para outra ocasião o centro dos Artisans Angkor e as oficinas dos ceramistas, comecei a aperceber-me do grau de destruição e rapina provocado quer pelo regime de Pol Pot, e após a queda deste, em 1979, quer pela ocupação vietnamita que se lhe seguiu. Muitas das figuras das belíssimas apsaras (ninfas), que representam na perfeição a generosa e enigmática beleza da mulher cambodjana, das cabeças de esculturas centenárias, das divindades, serpentes e leões foram mutiladas, decepadas, desfiguradas. Galerias inteiras foram destruídas, provavelmente para estarem hoje a ornamentar casas e jardins fora do Cambodja. Algumas peças foram entretanto recuperadas depois de terem aparecido ao fim de muitos anos em leilões e exposições por esse mundo fora, mostrando a importância da cooperação internacional na defesa do património cultural que a todos pertence.

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Antes de rumar ao Sul ainda ensaiei uma primeira aproximação ao que foram os anos de guerra e genocídio, primeiro com a ditadura do direitista Lon Nol, que alegadamente chegou ao poder através de um golpe apoiado pela CIA e os EUA, acusação que alguns dizem ter falta de provas e que foi rejeitada por Kissinger, para quem os EUA terão sido apanhados de surpresa, e depois com o infame regime de Pol Pot.

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Quanto a Lon Nol é duvidoso que não tivesse obtido prévio apoio dos EUA atenta a forma como as coisas aconteceram, a começar pelas manifestações promovidas pelo próprio governo para justificar o golpe militar e o suporte que os EUA deram de imediato ao novo poder. Muito resumidamente, o que aconteceu foi que na sequência de uma votação na Assembleia Nacional cambodjana, Lon Nol derrubou a monarquia e atirou o Príncipe Norodom Sihanouk para o exílio. Invocando poderes extraordinários, aquele que era ao tempo primeiro-ministro, tomou o poder, proclamou a República Khmer e substituiu uma monarquia clientelar e corrupta, que abrira o porto de Shianoukville aos vietcongs, pela instauração de uma férrea ditadura, igualmente corrupta, dirigida por um nacionalista místico e chauvinista que queria ser tratado por “Black Papa” devido à cor da sua pele, o que segundo o próprio faria dele um verdadeiro khmer. O golpe conduziu a uma intervenção directa na Guerra do Vietname e à perda de mais umas centenas de milhares de vidas entre cambodjanos, com particular incidência sobre as comunidades dos etnicamente de origem vietnamita, inocentes ou culpados, que viviam no Norte, e que iam sendo atirados ao Mekong à medida que eram eliminados na tentativa de conter o avanço comunista.

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Fui então visitar o denominado “War Museum” que se encontra instalado na Região Militar de Siem Reap, a poucos quilómetros da cidade. Recebido à entrada pelo seu responsável, com o tradicional traje negro dos antigos guerrilheiros khmer, perguntou-me se precisava de guia, tendo eu retorquido que não. O que eu já sabia dispensava-o de me esclarecer sobre aquilo que ali estava patente. Material militar desactivado, tanques, granadas, lança-roquetes, morteiros, praticamente todos os modelos de metralhadoras ligeiras, com destaque para as AK-47, pistolas dos mais diversos fabricantes e modelos, incluindo israelistas, até um helicóptero e um velho Mig russo usados em combate, dispensavam explicações adicionais por parte de qualquer guia. De um lado e do outro vários barracões com fotografias, memórias dos conflitos, registo de tragédias pessoais e colectivas e um vasto conjunto de todos os tipos de minas que se encarregaram de ceifar, e que continuam a ceifar, centenas de milhares de vidas, de toda a espécie de gente, novos e velhos, homens e mulheres, gente inocente. Tudo ali exposto em fotografias, cartazes, relatos biográficos e relatórios para que a memória não se perca por falta de informação. Para todos e a começar pelos jovens locais, para que se possam aperceber do que foi o passado, do preço da paz e do drama do seu povo.

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Existe também um museu dedicado às minas a 25 km de Siem Reap. Não estava nos meus planos lá ir até porque a guerra contra as minas continua no presente, não faz parte do passado. Há ainda vastas áreas minadas, admitindo-se que haja cerca de seis milhões de minas (este número não é engano) espalhadas pelo país. Há minas colocadas pelos vietnamitas durante a ocupação, usando mão-de-obra forçada local, ao longo dos 700 km da fronteira com a Tailândia. Há minas colocadas pelos Khmer Rouge nas florestas, a partir do momento em que foram afastados do poder para protegerem os locais onde se refugiaram, e há minas colocadas pelos governo nacional para proteger cidades, vilas e aldeias e as suas próprias posições. São por isso frequentes os avisos de perigo, incluindo em caminhos aprazíveis pelas florestas e nalgumas zonas das províncias de Banteay Meanchey e Oddar Meanchey, por exemplo, num país que tem o mais alto número de amputados devido às minas. A média de amputados mensal é actualmente de cerca de 15, num total superior a 40 000, agravando-se a situação na época das chuvas, em especial nas zonas rurais, onde os mais atingidos são os desgraçados dos agricultores.

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À sombra das árvores, com os pássaros e mosquitos por companhia, com um guia nos seus trinta anos que mostrava nos olhos e no rosto, para um pequeno grupo de turistas que nos seguia, os pergaminhos da sua história pessoal e a do seu pai, mais uma vítima dos Khmer Rouge, todo aquele material exposto tornou-se inofensivo. Está ali a memória da sua infância e da sua juventude, se é que de tal se poderá falar. Longo e doloroso foi o caminho que o trouxe até àquele cemitério. O que para trás ficou será sempre irrecuperável. Em vidas e em sofrimento. Não há preço para isto.

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khmers (2)

por Sérgio de Almeida Correia, em 28.12.16

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O aeroporto de Siem Reap fica relativamente perto da cidade. Em vez de um táxi tinha um simpático e rechonchudo motorista local à minha espera, disponibilizado pelo primeiro hotel onde fiquei, que logo tratou de acomodar a escassa bagagem que trazíamos no tuk-tuk que nos iria transportar. Foi este o primeiro contacto com o mais popular meio de transporte daquelas terras. Táxis, daqueles que conhecemos, não vi um único e desconheço se a Uber já se aventurou por tais paragens, apesar de também ter andado em jipes da Lexus.

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A cidade é pequena e só começou a desenvolver-se quando se tornou conhecida depois da descoberta de Angkor Wat. Ao tempo sob domínio francês, consta que terá recebido os primeiros turistas a partir do início do século XX. O Grand Hotel d´Angkor abriu as suas portas em 1932. Hoje tem à volta de 200.000 habitantes, de acordo com o último censo (2008), mas os que chegam para visitar a região são cada vez mais. O maior fluxo chega da China, que à sua conta representa cerca de 80% dos visitantes, mas também os há do Japão, da Coreia do Sul, do subcontinente indiano, australianos, estado-unidenses e europeus, em especial franceses e ingleses.

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Aqui apercebi-me do primeiro grande problema do país: o pó. O pó está em todo o lado e o ideal quando se circula de tuk-tuk, entre milhares de outros veículos idênticos, autocarros de excursionistas, camiões velhos e automóveis que largam enormes nuvens negras, é ir prevenido com uma máscara para a boca e nariz ou um lenço que nos proteja as vias respiratórias. Os tradicionais lenços khmer, em algodão, são baratos e custam entre 3 e 6 USD, dependendo do tamanho, o que é ridículo face à sua qualidade. O dólar tem curso legal, dentro ou fora das cidades. É normal só haver preços em dólares e o câmbio informal em qualquer lado é de 40.000 Riéis para 1 USD, o que me levou a arrepender-me de ter trocado alguns dólares no balcão de câmbios do aeroporto a 38.000. 

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A oferta hoteleira e culinária é vasta. Não faltam hotéis acolhedores das cadeias internacionais, alguns depositários da escola colonial, e pequenos locais de muito bom nível, com pessoal qualificado, afável e de uma educação extrema em quaisquer circunstâncias, a preços muitos razoáveis para a qualidade do serviço. Eu prefiro hotéis calmos e sossegados, sem a confusão dos excursionistas. Em Siem Reap e Phnom Penh há imensos. Os hotéis-boutique estão na moda. Aqui, onde iniciei a minha jornada, são quase todos “D´Angkor” ou de “Indochine”, ou as duas coisas, para todas as bolsas e com diferentes níveis de sofisticação, mas convém ter cuidado porque por vezes o nome ilude uma espelunca a 20 ou 25 USD ou um hostel entre os 5 os 10 USD para aqueles que não se importam de viajar sem tomar banho e convivem sem pruridos com a abundante fauna rastejante, roedora e voadora. Sinais, aliás, de outro gravíssimo, e de mais difícil solução, problema nacional: o tratamento dos lixos. Jazendo a céu aberto, sem contentores, por vezes dentro de sacos plásticos largados à beira dos passeios, sujeitos à fúria da cachorrada e dos desgraçados que remexem o seu interior, na maioria dos casos atirado para a beira dos passeios, das estradas ou dos cursos de água ou, nesta altura do ano, os leitos secos dos ribeiros, assume contornos assustadores, o que explica epidemias, doenças e o cheiro nauseabundo de que quando em vez nos assole.

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O assunto não é tabu, mas o convívio de diferentes tradições culturais e heranças religiosas naquela zona de cruzamento ente o hinduísmo e o budismo, onde a cristandade sempre teve dificuldade em se afirmar, não se afigura fácil. Talvez isso também explique a inexistência de discussões, de vozes alteradas, gritos, gestos obscenos ou empurrões, em cidades onde o trânsito é caótico, a confusão imensa, não raro com vacas e cães que circulam pachorrentamente pelo meio da via, mas que apesar disso flui, e onde se vêem piscas-piscas, braços esticados e raramente se ouvem buzinas. As que se ouvem não são de protesto, tratando apenas de saudar ou avisar quem circula que convém manter o rumo e o ritmo para não haver uma desgraça. 

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Normalmente, onde há especiarias é possível comer bem. O Cambodja não foge à regra e é possível aliar a tradicional culinária khmer, o saborosíssimo peixe amok no coco, sem pele nem espinhas, os caris vermelhos e verdes, o camarão, o coco, os lagostins, as perninhas de rã ou as vieiras com a excelência da herança culinária francesa, as influências vietnamita, chinesa, indiana e tailandesa com os sabores tradicionais, onde pontifica o incontornável travo de “lemon grass”, a erva aromática que produz um óleo deliciosamente perfumado a limão que é de utilização obrigatória em muitas cozinhas asiáticas. Aqui é especialmente saborosa e o seu uso, como noutros locais onde estive, vai muito para além da culinária, sendo frequente o seu aproveitamento em saboaria e cosméticos, chás, bebidas refrescantes, produtos medicinais e como óleo para alguns tipos de massagens, já que a massagem tradicional khmer é a seco.

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Não há nada de mais confortável do que entrar numa casa recuperada, com a velha arquitectura colonial, ou com as linhas simples e modernas de algumas das novas construções, num spa ou casa de massagens, num quarto limpo, decorado de forma simples, impregnado com a luz e as cores do fim de tarde, de onde se liberta o refrescante aroma a “lemon grass”. Uma bênção para os sentidos depois de um dia de tuk-tuk, subindo e descendo as escadarias de templos, percorrendo museus vivos e palácios com a roupa colada ao corpo, observando a vida nos fascinantes mercados onde é possível tudo comprar e obter, de objectos de prata a peças para motas, de sedas a pedras semi-preciosas, lado a lado com os vernizes para as unhas, as estatuetas de cobre ou as fardas escolares, antes de um bom banho ou de umas braçadas retemperadoras numa qualquer piscina escondida num jardim interior disfarçado pela abundante vegetação que os cerca. 

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Na maioria dos locais onde merendei ou jantei vi muitas cozinhas abertas e asseadas, mesas limpas, toalhas de pano e jogos americanos sem manchas. Mesmo em restaurantes de estrada, onde a comida ficava a desejar, como num que é habitual parar para quem vai por estrada para Phnom Penh e cujo nome “Banyan Tree” homenageia a frondosa árvore da frontaria e não pretende confundir-se com a afamada cadeia de hotéis de luxo, não se vê louça lascada ou há talheres encardidos como é habitual encontrar em muitos dos nossos tascos com pretensões a restaurantes finos. Em Siem Reap há várias casas que se recomendam. Para além do F.C.C., o famoso clube dos correspondentes estrangeiros, também com aposentos para viajantes, elogiado pelo The Guardian e por onde passaram tantos escritores, jornalistas e simples curiosos, de que falarei noutra altura e que não se confunde com o seu homólogo da capital, gostei do Embassy, em King´s Road, perto do Hard Rock, numa casa só de mulheres, com uma Chef oriunda da escola do Sofitel e com experiência anterior em Singapura, que tem um excelente menu de degustação, onde sem qualquer rebuço me substituíram o pato que aparecia lá pelo meio pela carne decente de um animal sem penas. 

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Em lugares onde o Sol nasce muito cedo é também natural que tudo termine mais cedo. É por isso normal que se jante mais cedo, por volta das 20:00, e a vida nocturna também antecipe os seus períodos de abertura e termo, o que é gratificante para quem gostando de dias intensos não dispensa estar sentado numa esplanada acolhedora, ouvir um pouco de música entre dois dedos de conversa com outros viajantes, trocando experiências e conhecimentos na língua que se proporcionar.

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khmers (1)

por Sérgio de Almeida Correia, em 27.12.16

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A primeira sensação foi de estranheza. Ali, tão longe, enquanto aguardava pela pouca bagagem que normalmente transporto em viagem, as imagens que tinha diante dos meus olhos eram do Aeroporto Humberto Delgado, da velha Portela, em Lisboa. Imagens de rostos e paisagens familiares, de aviões da TAP na descolagem e de intermináveis e desesperantes tapetes rolantes carregados de malas maltratadas e viradas ao contrário. Rapidamente percebi que se tratava de um filme promocional dos actuais concessionários do aeroporto onde acabava de chegar. Os mesmos que gerem Lisboa. Coincidência, claro, nem por isso menos estranha naquele momento. Mas era o que eu via e disso não podia fugir.

Há uma frase de Proust que faz parte do 5.º volume de À La Recherche du Temps Perdu, publicado a título póstumo, que é muito conhecida entre os amantes de viagens e que reza o seguinte: “Le seul véritable voyage, (…), ce ne serait pas d’aller vers de nouveaux paysages, mais d’avoir d’autres yeux, de voir l’univers avec les yeux d’un autre, de cent autres, de voir les cent univers que chacun d’eux voit, que chacun d’eux est (…)”. Nunca como este Natal essa citação foi tão apropriada. Ver com outros olhos. 

O falecimento em Julho passado de Sydney Schanberg, mais um no imenso rol de gente que desapareceu e de catástrofes que marcaram o ano que se prepara para sair, despertara-me a vontade de empreender uma viagem que me ajudasse a compreender um pouco melhor a história e a cultura de um povo marcado, em especial nos anos mais próximos, por regimes opressivos, instabilidade política, conflitos armados e um interminável sofrimento. O impacto que o filme de Roland Joffé rodara sobre a amizade entre o falecido Dith Pranh e Sydney Schanberg, o repórter do New York Times que cobriu em 1975 a queda de Phnom Penh às mãos dos Khmer Rouge, fizera-me pensar, durante muitos anos, na hipótese de um dia conhecer mais de perto aquela que foi a dura realidade vivida por um povo às mãos dos seus próprios filhos.

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Decidi, pois, rumar até ao reino que herdou as tradições do velho império Khmer, outrora estendendo-se desde a Birmânia, actual Myanmar, até ao Vietname, hoje comprimido entre os seus vizinhos (a Tailândia, o Laos e o Vietname) e as águas quentes do golfo da Tailândia. E fi-lo entrando pelo norte do país para depois fazer o percurso em direcção à capital.

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Também há muito que sabia da existência dos templos de Angkor e foi exactamente por aí que comecei, partindo de Siem Reap à sua descoberta, aproveitando a estação seca e as temperaturas mais amenas desta altura do ano.

Não se descreve nalgumas linhas a sensação de esmagamento que causa ao viajante a apreensão da imponência, grau de desenvolvimento e arrojo estético da civilização que floresceu entre os séculos VIII e XIII naqueles terras férteis e ricas em minerais irrigadas pelo Mekong. O que a vista alcança perde-se na imensidão do trabalho esculpido na pedra. Nos detalhes de um tempo cuja engenharia atravessou séculos, praticamente incólume, na forma como se encaixam as pedras que sustentam as abóbadas, nos quilómetros de frescos que recriam lendas, crenças e mitos, batalhas históricas, que se perdem na arenga de guias que aprendem português pela Internet em quatro meses e se fazem entender na perfeição depois de correrem o seu cardápio de idiomas ocidentais enquanto tentam oferecer os respectivos préstimos a quem chega. Sempre sorrindo, com bons modos, educadamente.

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Sem a confusão de outros locais, podendo livremente deslocar-me por entre paredes e corredores, saltando de um local para outro, percorrendo a pé extensas zonas de floresta, perdendo-me na frescura do verde e na quietude dos lençóis de água, onde nenúfares, lótus e uma imensidão de outras flores e plantas vai lutando por um espaço à superfície, vendo as horas correrem silenciosas, tão discretas na sua passagem como os séculos, ali tomados pelos frondosos caules, repousando à sombra de copas monstruosas e prisioneiros de raízes maiores e mais poderosas que o aço, impondo-se à pedra e ao lento trabalho de esculpi-la a que tantos se dedicaram.

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Ali estão elas, aquelas árvores que o tempo não parou, senhoras de tudo, desafiando a trindade suprema de Xiva, Vixnu (Vishnu) e Brama, desafiando a serenidade intemporal de Buda, desafiando os homens, dizendo que estão ali. E que ali permanecerão. Guardando o tempo, marcando-o, assistindo à sua erosão na pedra, mostrando a irreversibilidade do domínio da natureza, da nossa sujeição às suas leis, escutando o seu próprio eco, enquanto uma brisa mansa percorre as ramagens mais altas, entrecortada pelo chilrear de alguns pássaros ou a sombra de uma ave de rapina.

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Lá longe, ao fundo, vê-se o fumo elevar-se no ar. Sente-se agora o cheiro intenso do incenso que arde, da lima e do jasmim. As cores fortes do céu, os aromas do fim de tarde. E à minha volta o silêncio. A vida. O silêncio que antecipa a chegada da noite e o nascer do dia. O silêncio que só alguns ouvem, o silêncio que se prolonga e estica o tempo. O silêncio que nos dá luz, que nos retempera e acalma. O silêncio, sim, o silêncio. 

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