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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Mais um dia, mais um ano, mais um aniversário.
Por maior que seja a solidão, não sei porquê, sinto-me sempre acompanhado, Mélita.
E hoje irei ouvir o Zeca, com um bom champagne, para colocar mais um ponto na tormenta e celebrar condignamente esta data que será sempre de alegria. Hoje também de muita saudade.
Completam-se hoje quarenta anos sobre o início das emissões televisivas da Televisão de Macau. A data merece ser assinalada e deverá constituir matéria de reflexão sobre o seu passado, o seu presente e o futuro que dela se espera.
Muito embora tivesse sido, ao longo destas quatro décadas, muitas vezes utilizada como um instrumento de propaganda ao serviço do poder político, do almeidismo ao vierismo, dos senhores da terra aos novos régulos, passando por momentos difíceis, tanto a nível da gestão, com administradores detidos, como do seu financiamento, importa referir que não foi por isso que deixou de ir prestando, muitas vezes contra ventos e marés, um bom trabalho, tanto em matéria de informação, como de entretenimento, de formação de audiências e difusão da cultura e do conhecimento, aproximando povos e nações, dando a conhecer realidades próximas e longínquas, de muitos desconhecidas, contribuindo para um melhor entrosamento entre a cidade e os seus residentes.
Esse bom trabalho ficou a dever-se, em primeira linha, à qualidade das sua equipas, quer técnicas, quer de jornalistas, que com meios exíguos – actualmente ainda mais – souberam ao longo dos anos ultrapassar dificuldades, fazer das tripas coração, ignorar desconfianças várias e gerir as crises com sabedoria, para apresentarem um trabalho decente, prestando um serviço útil e fiável à população.
Com a TDM chegou gente de imensa qualidade até Macau; formou outros de igual valia, e depois também levou muitos para outras paragens, para grandes órgãos de comunicação social portuguesa e internacional, onde puderam mostrar toda a qualidade da formação de base adquirida em Macau.
Alguns há que, felizmente, ainda por cá continuam, com poucos e escassos meios, fazendo milagres e colocando o seu saber e experiência ao serviço de toda a comunidade, também ajudando a divulgar e a democratizar vários idiomas na comunidade, e não apenas os oficiais, contribuindo para a formação de um público cada vez mais exigente, e para a criação de pontes entre mundos que vivendo separados se foram conhecendo melhor e passaram a comunicar entre si num outro patamar e com outras referências.
Nos últimos anos, mercê das vicissitudes políticas por que a RAEM tem passado, assistiu-se, no canal português, que é aquele que sigo e acompanho diariamente, a um desinvestimento em diversos níveis, quer em meios técnicos, quer humanos, quer, ainda, na qualidade dos programas ou no simples mobiliário e decoração dos estúdios, não raro paredes-meias com um indescritível mau gosto.
Os programas de discussão da actualidade política e internacional tornaram-se residuais, avulsos, sem continuidade, o que se revela ainda mais patente na comparação com o que continua a fazer-se em Hong Kong. O unanimismo instalou-se. A crítica interiorizou-se, silenciou-se. Alguns houve que rapidamente se serventualizaram e vivem felizes com esse estatuto.
As vozes que garantiam a pluralidade do debate e entusiasmavam audiências desapareceram, substituídas que foram por rostos, vozes, discursos e programas cada vez mais anódinos e alinhados com o discurso oficial, alguns de características medíocres, requentados, servindo simplesmente objectivos de mera propaganda – política, empresarial, pessoal –, nada acrescentando ao conhecimento dos seus destinatários, e que apesar disso são depois repetidos ad nauseam, por vezes com curtos intervalos entre as emissões.
A informação tornou-se muitas vezes desequilibrada, oscilando entre o excepcional, o mediano e o sofrível, sem se perceber muito bem, para além do poder avulso de quem manda no momento, ao serviço de quem é que está. A gestão burocratizou-se e funcionalizou-se. O jornalismo e a informação perderam autonomia, por vezes assumindo posições subservientes e posicionando-se como meros instrumentos para realização dos objectivos políticos definidos superiormente.
Apesar de todos os altos e baixos continua a prestar um serviço essencial, particularmente ao nível da informação sobre o que se passa na cidade, na região e no país, o que se reveste de ainda maior importância quando os deuses que controlam os fenómenos climatéricos resolvem fazer das suas na região e arredores.
Por tudo isso, a TDM e todos aqueles que a construíram e trouxeram até hoje, formando pessoal, contribuindo para a formação de novas mentalidades, difundindo-as, promovendo o debate, mesmo em tempos de chumbo e de acelerada descaracterização da autonomia da região, quando era mais cómodo simplesmente papaguear, conferindo-lhe identidade e tornando-a num símbolo de Macau e das suas gentes, merecem ser saudados.
É o que aqui faço, desde já enviando, contra ventos cada vez mais fortes que sopram de diversos quadrantes, na pessoa desse resistente decano, símbolo do profissionalismo televisivo e farol do rigor informativo, o que não é colocado em causa pelo colorido e excentricidade de algumas gravatas que me poderiam levar a refrear o cumprimento, um forte abraço ao Jorge Silva, que espero não me leve a mal o abuso e torno extensivo aos que o acompanharam nesta caminhada desde os primeiros tempos, fazendo votos de que a TDM tenha vida e saúde durante muitos e bons anos, aproveitando para desejar à estação, se tal ainda for possível, que recupere algum do muito prestígio perdido de há meia-dúzia de anos a esta parte, corrigindo disfuncionalidades, melhorando o que está mal, dando-lhe mais meios – porque isto também é do interesse de quem manda se for capaz de ver mais à frente do apito e para lá da espuma dos dias –, difundindo a cultura, o pensamento e o espírito crítico, dentro e fora da estação, sem medo dos novos censores, entretendo, informando e divertindo; em suma, promovendo Macau no mundo e aproximando culturas, povos e nações.
Em circunstâncias normais, apesar de não saber muito bem o que isso seja, completaria hoje noventa e quatro anos. Alguns dirão que é “uma idade bonita”, o que na verdade se aplica a todas as idades. As idades são sempre bonitas, os aniversários são sempre felizes; se o seu cumprimento, é claro, for mais do que um ritual e menos do que uma obrigação. Celebrar aniversários por obrigação é um horror. Celebram-nos nessas circunstâncias os que são empurrados para viver, e a viver, de acordo com os “desígnios” do Senhor e as leges artis de quem deles cuida até à exaustão. Pode-se sempre desistir quando se toma uma decisão. A liberdade é o princípio e o fim da razão quando, há muito, tudo deixou de fazer sentido. O mundo lá fora deixou de me interessar. Repete-se para os que lá estão, para os que andam por lá. Não mais para mim. Livros, revistas, televisão, mundanidades; qual o interesse? Se o confinamento cansa, se a minha autonomia parou num tempo cada vez mais longínquo, se insistem no que não me apraz, não quero e se me afigura impertinente ou despropositado, a quem me poderei queixar? E vê-los, a eles e a elas, a entrar e a sair, virando-me para aqui e para lá, porque é preciso evitar as escaras, e me querem sempre de boa cara, não torna a ilusão menos pungente. Antes faz o sofrimento, o cansaço, a solidão, o desconforto cada vez mais duradouros, mais desumanos, eternizando cá em baixo o que eu não sei se existe noutro lado, ou se será apenas mais uma ilusão, aqui e lá. E se não existe de todo, como negar-me, e a outros, o direito de condignamente me retirar, aproveitando o silêncio e a escuridão da noite, antes que dêem pela minha ausência quando a aurora raiar. Ah, como seria bom que tudo tivesse sido diferente, mais alegre e efusivo, sem a soturnidade crepuscular de uma velhice triste e distante que se prolonga pela manhã, a tarde e a noite de semanas, por meses a fio, que se repete todos os Natais e aniversários, faça chuva ou faça sol. E depois cantam canções alusivas, sempre desafinados, e ainda vêm uns velhos e umas velhas que me fazem festas na cara e na cabeça sem que eu queira, ou lhes peça, como se agora fizesse parte da sua família quando a minha está ausente e já se me confundem as horas e os rituais. E se eu não quero beber água, coisa de que aliás nunca gostei, querem-me obrigar para quê? Neste estado, quero lá saber que sobrevenha uma insuficiência renal. Que é isso comparado com as quarenta e oito horas dos meus dias que há tantos anos se acrescentam? Sim, eu sei que alguns terão saudades, me sentirão de menos, continuarão a recordar estes e outros anos, mais iluminados, menos pesados, não tão frios; sim, porque passou a estar sempre frio e depois vêm dizer-me que está calor e que “hoje está bom para ir à praia”. E que esteja. Se daqui não posso sair isso também não me importa. Também não quero ir. De há uns bons maus anos para cá passou a estar sempre frio. Tudo passou a ser desagradável, monótono, triste, a modos que sem jeito. Agora é que vai ser. Não vou ficar para o Natal. Não tenho mais paciência para isto. É o termómetro, são os comprimidos, é o zingarelho enfiado no dedo. Pois é, quero lá saber dos níveis de saturação, dos exercícios, das vacinas. Vão-me dar mais uma? Porquê? Se são felizes assim, a mim não me perturba. Na verdade, tornou-se-me indiferente. Um destes dias isto acaba. Tanta coisa para continuar aqui à espera da chegada do Verão, sem que eu saiba se o Inverno acabou quando me esqueço já das cores da Primavera e do Outono sei apenas que existe quando mo dizem. O senhor doutor já é avô. A triplicar. O outro também, embora continue a ser "o tio". Um avô sui generis. Este sempre foi diferente. Era terrível. Dava dores de cabeça à mãe. Os miúdos estão todos crescidos. E são pais e tios. Estou farto dessas zurrapas. Sopa, mais sopa, uma açorda às vezes, empadão. Sabe tudo ao mesmo. Gelatina, fruta em calda. Se está bom? Está sempre bom. Uma porcaria, e depois engasgo-me. Sempre a mesma sina. Há que ser aspirado. Nada funciona. Nem sei para que como. Querem que eu coma, que tome os comprimidos, que beba água. Os outros foram-se todos embora. Fiquei eu. E os velhos. São mais novos? São velhos na mesma. Tudo velho, tudo velha. E eu aqui continuo. Agora acabou-se. Hoje vem rancho reforçado? Não quero. Fazer-lhes a desfeita não é bonito. Vou fazer de conta. Está bem, sim, está bem. Até amanhã. Amanhã acaba hoje. Hão-de cansar-se, fartar-se. Não entra mais nada. Não abro mais a boca. Estou cansado. Não percebem isso, não percebem nada. Gosto muito de todos, mas deixem-me em paz. Agora é que é. Estou farto disto. Este ano não há circo. Quero lá saber do Pai Natal. Vão enfiar o barrete na cabeça de outro. Não há mais fotos. Não fico para o bacalhau. Nem para os meus anos. Guardem os parabéns. Passem sem mim. Vou-me embora. Deixem-me em paz. Acabou-se. Bebam vocês a água. Adeus. Não me chateiem.
[Ainda tão perto e já longínquo. Dezoito dias depois de tudo ter acabado. Hoje bebo à sua. Esta estava guardada para um dia. Calhou ser hoje. De um amigo para um amigo. É dia de aniversário. Nada de água. Celebremos a vida. Todos os anos neste dia. Como sempre gostou que se fizesse entre risadas e traquinices. Com todos. Filhos, noras, afilhados, sobrinhos, netos, amigos, amigas, vizinhos, com quem aparecesse. Por vezes sob o olhar espantado e censurante das meninas lá de casa. Que depois também se riam. À sua, Pai. Até um destes dias.]
(19/12/1924 - 21/08/1986)
Fala a sério e fala no gozo
fá-la p´la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala claro
Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala franciú fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.