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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
O pai, médico, era amigo de infância da minha mãe, e dos tios todos, e muitas vezes cuidou das maleitas da Mélita de cada vez que dava uma corrida às urgências. No velho Hospital de Cascais.
Do Jorge, cujo Moçambique profundo e África lhe corriam nas veias, recordo-me de o encontrar uma e outra vez, sempre com sorriso rasgado e incansável boa disposição. Médico como o Júlio pai, e como os irmãos, e hoje também as filhas.
Um dia, aproveitando uma ida a um congresso qualquer, aqui na Ásia, apareceu-me mais a D., e lá nos encontrámos todos, mais outros clínicos que vieram e eu fiquei a conhecer. Recordo-me de termos almoçado juntos no Clube e dado uma volta pela cidade e as ilhas de outrora no velhinho Saab 900 turbo.
Anos depois, aproveitando as viagens quinzenais do meu irmão à Madeira, que se prolongaram durante décadas, ofereci-me uns dias de férias e na boleia lá fomos visitá-lo ao Garajau. Apresentou-me, com a felicidade habitual, a arara, a catatua, e a demais bicharada que por lá se alojava.
Rimos muito, até tarde. Noite de Verão, magnífica, inesquecível, com gente amiga e magnânima. Irmãos.
Por essa altura, quase recém-chegado a Portugal, com escritório novo, mas ainda, como sempre andei, à procura de assentar, sem saber muito bem onde, sugeriu que me instalasse por lá. Trabalho não me faltaria. E poderia contar com o apoio do J.L., que estava ao lado e logo assentiu, e do seu escritório. Ainda pensei nisso, nos mergulhos, no peixe-espada, nas espetadas, no Porto Santo. Não se concretizaria.
Falou-me então dos seus projectos. Disse-me para ir conhecer o hotel a Cabo Verde, passar lá uns dias, que o R., nosso elo, já conhecia de outras voltas. Lá fui. Antes de ir, conversando com ele ao telefone, ainda me disse que se precisasse de charutos havia por lá uma caixa sua. Não precisava de levar. Que a pedisse ao pessoal; que me servisse. Assim, sem mais. Não cometi esse abuso. Levava os meus. Trataram-me como se eu fosse um príncipe.
Dias inesquecíveis. Valeram um conjunto de nove pequenas crónicas no Delito de Opinião.*
A hospitalidade do lugar, a doçura das gentes de São Vicente, do Mindelo e da praia de S. Pedro, mais os crepes Suzette, dos melhores que alguma vez me foram dados a provar, e mergulhos de sonho com um divemaster improvisado, que ria muito e sonhava ser “chefe de polícia”, como o tio, “para não ter muito que fazer e levar uma boa vida”, fizeram daquela estada, ainda hoje, uma das mais vivas, queridas e belas recordações.
Com as voltas do mundo nunca mais regressei à Madeira. Era o R. que me ia dando conta dele e das suas andanças.
À distância sabia que me ia lendo. De quando em vez trocávamos uma ou outra mensagem sobre a actualidade política. Nacional e local.
Quando há uns meses o meu irmão me pôs ao corrente da sua situação, percebi que dificilmente voltaria a estar com ele. Em pessoa. Entre gente. E com gente dentro.
Da família aos doentes e aos amigos, mesmo aos que sempre estiveram mais distantes, como será o meu caso, todos sentirão a falta da sua generosidade, da africanidade fraterna, da boa disposição, da gargalhada larga do homem sereno, íntegro, solidário, sempre disponível e leal.
O abraço que faltou, e se perde agora irreversivelmente no tempo, segue por esta via. Também para a D. e para os que de mais perto por lá ficam, certo de que qualquer que seja a picada, a savana ou o mar por onde agora se passeie, não lhe faltará o calor e a alegria de saber que nada foi em vão.
Ficou um pôr-do-sol por partilhar entre um copo e dois dedos de boa conversa. E um charuto por fumar.
Quanto ao charuto, esse, o que não fumámos no Foya Branca, nem juntos na distância, irei tratar disso rapidamente. E recordar a herança dos homens livres e aqueles dias de mar e meros mesmo defronte de sua casa.
Pode ser que ele ao ver-me por aqui, com o olhar perdido no calor e na humidade do tufão que aí vem, e de cortador na mão, também se apreste para acender um Churchill lá em cima.
Até sempre, Jorge.
[* Corrigido, porque foram nove e não oito textos. Ficam aqui aqui os links para quem os queira ler: S. Vicente (1), S. Vicente (2), S. Vicente (3), S. Vicente (4), S. Vicente (5), S. Vicente (6), S. Vicente (7), S. Vicente (8) e S. Vicente (9)]
Esta tarde estive a ler um livro de amigos oferecido por um amigo. Dei comigo a pensar neles. Nos amigos. E nelas. Na distância a que estou de muitos, nos aniversários que tenho perdido, nas horas infindas de conversa e cavaqueira, nos disparates, nos dias, almoços, jantares e noites que acabam para podermos descansar e começar outro dia, nas discussões, nos risos, nos abraços, nos beijos que trocámos ao longo de uma vida, nos olhares cúmplices, no riso sincero, desprendido, nos segredos que guardamos, na confiança que temos, na teimosia, tantas vezes, com que nos brindamos mutuamente. Nas críticas, nos amuos, na forma como nos olhamos, respeitamos, amamos. E tantas vezes nos perdemos para sempre nos reencontrarmos. Há tempos vi um num supermercado, a milhares de quilómetros de casa. Fazia perguntas à operadora da caixa enquanto guardava as compras. A T. reconheceu-o, mais velho, ao fim de uma data de anos, pelas perguntas que fazia à sujeita. E atirou-lhe com ar sério um "o senhor nunca mais se despacha?". A senhora do supermercado, que ia respondendo às perguntas a ver se o fulano se ia embora, sorriu e riu-se para dentro. Deve ter rido com gosto. Pudera. É preciso ter lata. O tipo, mais velho, levantou os olhos, sem perceber o atrevimento. Começou a rir-se, deu-me um abraço quando me viu, ao fim de mais de 20 anos. E perguntou-me se continuava a escrever. Sim, continuo. E tenho os mesmos amigos. E mais uns, mais recentes, tão bons como os antigos. Penso muito neles. E nelas. Algumas também meias-irmãs, outras ex-semi-namoradas. Amigas. Amigos. Têm tomado conta de mim ao longo da vida. E feito de mim o que sou. Gosto muito dos meus amigos. É uma confissão. Uns são mais velhos, outros mais novos, uns mais sisudos, outros mais impertinentes, também há alguns que são do Porto, outros do Sporting. Atrevidos e atrevidas. Uns com mais lata que outros. E adeptos de clubes indescritíveis. Uns palermas nessa matéria. Mas também são meus amigos. E há alguns que não percebem nada de carros e não gostam de velocidades. Outros ainda abanam a cabeça, mas não me dizem nada, quando compro um Alfa Romeo. Lá no fundo não percebem o que eu vejo naqueles carros. E porque vou a Le Mans todos os anos. Essa é a parte misteriosa de quem vive muito depressa. Também escrevo muito depressa. Felizmente que ainda tenho tempo para fumar um charuto. De vez em quando. Com os amigos. E alguns não fumam, embora fumem comigo. Com os olhos. E depois rimo-nos muito. De outras vezes fumo sozinho. Também penso neles. Sozinho. Às vezes choramos. Eles não. Eu choro. Porque também sinto a distância dos que estão longe. E dos que partiram. Hoje também me lembrei do M. que está no Porto. Ainda lhe devo uma resposta ao último email. Vai por aqui. Há pouco lembrei-me de todos eles quando comprei um quadro da minha sombra. Como a do Livro de Curso. Igual ao do Almada que estava na Gulbenkian. Com o Pessoa. Obra do Vítor Marreiros. Depois o Vítor telefonou-me, porque aquele quadro não era para vender. O fulano da galeria não sabia. O que levei tinha defeito. O Vítor disse que aquele não era para mim. Havia umas letras que estavam trocadas. O meu é outro. Está no atelier dele. Com as letras todas. Quando tiver o certificado para mim fazemos a troca. Ele fica com o das letras trocadas, eu fico com o dele que não estava na galeria. Não conheci nenhum amigo do Fernando Pessoa. Nem dos seus heterónimos. Eles é que me conheceram. Também são meus amigos. Quando os leio, às vezes mesmo quando vou pela rua, acho que eles me vêem. Aqui não é superstição. É crença. Os amigos vêem-me. Às vezes há uns que me dão uma sova quando lêem o que eu escrevo. Têm mais medo do que eu. Eu sei. Sou um irresponsável. Eu nunca tive medo. Mesmo quando estou sozinho tenho amigos que zelam por mim. E há umas que até rezam. A Mélita era uma delas. Deixou muita saudades. Eu também tenho muitas saudades. Dela e dos meus amigos. Quando não estou com eles. Vale-me uma amiga que está sempre por perto e que tem dias em que me azucrina a mioleira. Não presto atenção às coisas. E diz-me. Não a levo a mal. No fundo gosta de mim. É minha amiga. Depois queixa-se das suspensões dos carros. É a mais atrevida. Os outros não dizem nada. Os carros também não. No dia em que me for embora vou ter saudades dos meus amigos. Deles e da minha liberdade. Espero que eles não se chateiem. Ainda eram capazes de me ir buscar ao Guincho e acabava-se o meu sossego.
De Macau vejo pouco. O que vejo é filtrado pela complacência dos meus amigos. São eles que me acertam o GPS.
Poder dar, receber, sentir aquele brilho único do olhar cúmplice dos amigos, dois dedos de conversa, temas banais, coisas da vida, indiscrições saudáveis, um sorriso, uma foto para a posteridade, e dois dedos de Priorat. Ah, como é bom saboreá-lo assim. Repetindo entre gente.
Um dia como os outros tornado diferente em meia dúzia de gestos. O calor, a luz, a cor dos sorrisos que nunca se perdem. O olhar cúmplice dos amigos. Ah, a vida. As coisas são mesmo assim: simples. Como um momento de felicidade. A dificuldade está em saber prolongá-la. Na distância.