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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
O Inverno chegou com sol. Vinte graus centígrados e 29% de humidade são o que há de melhor para se abrir as janelas, deixar a luz entrar, sair de casa, andar a pé, de bicicleta, correr, o que for, enfim, apanhar ar, percorrer os trilhos e ver as mudanças nas plantas e nos animais.
Pena que em Macau se usufrua cada vez menos das condições que temos. Num dia como o de hoje, feriado, uma volta por Coloane mostrou estacionamentos vazios, um deserto de gente, espaços fechados, e o inevitável polícia de giro a verificar parquímetros. Nem uma esplanada aberta. O cenário repete-se noutros locais mais citadinos.
Percebe-se que durante quase três anos se andou a encanar a perna à rã em matéria de pandemia, fazendo-se do apelo nacionalista e patriótico o grande estandarte. Vejam o que se passa lá fora, vejam como nós protegemos a nossa população, sintam-se agradecidos.
Volvido este tempo, com a pandemia instalada no interior da China, à medida que se levantam as restrições anteriormente impostas para se manter a política de tolerância zero e do "zero dinâmico", verifica-se a dimensão estrato-esférica da fraude e da mentira. Percorrem-se tarde os caminhos que outros enfrentaram bem mais cedo. Os mortos, oficialmente, quase não existem, embora os números suscitem muitas dúvidas face às imagens e notícias que nos chegam de crematórios a abarrotar, como há muito não se via, e com custos elevadíssimos para as famílias que a eles têm de recorrer. De cada vez que há uma vaga de infectados e de mortes alteram-se as regras de contagem para se manterem os números reduzidos. A história não é nova. Como se alguém, no seu perfeito juízo, admitisse que com dezenas ou centenas de milhares de casos espalhados por todo o país, e vacinas das mais ineficazes, apenas morressem duas ou três pessoas por dia.
Aqui, passada a fase da paranóia securitária e operada a transformação da região para uma espécie de colónia penal de luxo, percebeu-se finalmente que a desconexão da realidade não conduziria a lugar algum. Também aqui os números vão crescendo e praticamente não há lar ou empresa que não tenha alguém infectado. E tal como do outro lado, aquilo que ontem era verdade e importante saber, de um momento para o outro tornou-se irrelevante. Se antes era necessário dar a conhecer e reportar à estatística, enquanto esta apresentava números reduzidos, agora deixou de ser conveniente. Ou foi alterado. Não interessa. O argumento, numa repetição do passado, é para quem não pensa. Dizer que não se divulgam os números dos casos de pessoas com "sintomas leves ou assintomáticos de forma a não confundirem a população sobre a situação epidémica" é conversa para fazer dos outros ignorantes.
A verdade é que hoje já não se divulgam os números dos infectados como antes se fazia apenas porque são elevadíssimos e não interessam à propaganda oficial. Ainda porque se torna muito difícil explicar às pessoas as razões para se ter a economia de rastos, delapidado as reservas, aumentado o desemprego e deixado a inflação galopar para se estar a bater no fundo.
Ninguém fica confundido com informação clara e fiável. As pessoas não são estúpidas, embora muitos possam fazer por parecê-lo para não terem chatices e continuarem a facturar. As declarações do responsável dos SSM, um dos poucos que dá a cara, são uma confissão do desastre da gestão da pandemia durante quase três anos. Tantos sacrifícios para nada.
Chegou o momento em que a única coisa que os SSM têm para nos dizer é que cada um deve ficar em casa e desenvencilhar-se como melhor puder e souber porque estamos a seguir a política anti-epidémica do Governo Central. E, tal como este, estamos à deriva e só sabemos que temos de abrir ao exterior para sobreviver e impedir a revolta social e a implosão disto tudo.
Compreende-se, ademais, o silêncio de toda aqueles que na Assembleia Legislativa levaram os períodos antes da ordem do dia a pedirem para se manter as fronteiras fechadas, implorando para se correr com os trabalhadores não-residentes, para se impedir a entrada de estrangeiros e a tecerem loas ao Chefe do Executivo e ao Executivo. Bastou o director dos Serviços para os Assuntos Laborais passar por lá uma tarde para os deputados "caírem na real". Da ausência de políticas em relação às (falidas) pequenas e médias empresas, à milagrosa diversificação económica, ao concurso para atribuição das novas concessões do jogo – cujo relatório fundamentado ainda está por conhecer devido a razões absurdas –, à política laboral e de "recambiamento" de técnicos expatriados e trabalhadores não-residentes, foi um nunca mais acabar de asneiras. O resultado está aí. Das lojas de gelados aos restaurantes, das pequenas empresas aos concessionários, não há quem não se queixe do êxodo de quadros e da falta de trabalhadores, dos mais aos menos qualificados. Ultimamente, também, da falta de limões e paracetamol.
E de conforto não serve que venham falar, a toda a hora, no reforço das relações com os países de língua portuguesa. Como se isso resolvesse alguma coisa a curto prazo, e fosse possível dar-lhes algum sentido e dinamismo, para lá dos salamaleques de calendário, ignorando ostensivamente Portugal.
Enfim, por agora, o melhor mesmo é fazermo-nos todos de cegos, surdos e mudos durante a quadra natalícia. Será para muitos, provavelmente, a única forma de conseguirem ultrapassar este período sem danos de maior à sua sanidade.
Numa sociedade tolhida por um nacionalismo totalitário assustador, uma visão paranóica da segurança e uma aproximação esquizofrénica à doença viral, é preciso que nos mantenhamos ao largo. Também ao largo da bufaria das capelinhas.
Um bom livro, um filme decente ou uma música reconfortante, nos intervalos dos passeios nos trilhos, são óptimas opções para estes dias de solidão e recolhimento.
Feliz Natal para todos os que o possam ter.