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medo

por Sérgio de Almeida Correia, em 21.07.20

Macau-Airport-4_WEB.jpg

A consulta dos dados estatísticos da PSP atinentes aos períodos de Janeiro a Maio de 2020 revela uma queda nas entradas e saídas de Macau de 75,16% (média). Se olharmos só para Junho a diminuição de visitantes foi de 84%.

Entretanto, em 26 de Junho pp., aproveitando as regatas de barcos-dragão, o Chefe do Executivo referiu ser a abertura das fronteiras crucial para a recuperação económica, mostrando-se esperançoso quanto à possibilidade de Julho permitir a inversão do ciclo de quebra acentuada de turistas, permitindo-se uma abertura gradual das fronteiras. Estamos a 21 de Julho e o número de pessoas que entraram em Macau andará entre os dois a três mil por dia. Macau é uma região em que o número de doentes com COVID-19, ao longo de meses, se tem mantido em zero, ou muito próximo deste número. E, todavia, a cidade continua a viver uma situação como se estivesse no primeiro ciclo da pandemia. Casinos e restaurantes às moscas, não há ligações a Hong Kong e o aeroporto está praticamente inactivo.

Perante o agravamento da crise económica, das condições de vida, dos problemas sociais e o aumento do número dos trabalhadores “dispensados”, alguns depois estranhamente readmitidos após intervenção da DSAL e de algumas associações, parece que a única preocupação continua a ser a revisão da legislação relativa à defesa da segurança do Estado, sem que até hoje alguém tenha tido o discernimento de esclarecer a população, em termos inequívocos, sobre quais os pontos em que a lei falhou, quais as ameaças que o correr dos anos em concreto revelaram, e onde se mostra necessário o legislador intervir para aumentar a nossa segurança interna e a da RPC, sem que essa desejada intervenção se traduza numa compressão de direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Lei Básica e pela Declaração Conjunta Luso-Chinesa de 1987.

Dizer que é preciso mexer na referida lei estando a cidade parada, com gente a viver dificuldades, e sem que se diga o que está mal e porquê soa demasiado a conversa de burocrata para iludir problemas mais prementes.

Como Hannah Arendt escreveu, “a essência do totalitarismo, e talvez da burocracia, é transformar os homens em funcionários”, “em meras peças da máquina administrativa, ou seja, desumanizá-los”, até porque a burocracia “corresponde, em última análise ao domínio de Ninguém” (cfr. Eichmann em Jerusalém – Uma reportagem sobre a banalidade do mal, 2017).

Salvo aparições de circunstância, assistimos ao desaparecimento do espaço público do Chefe do Executivo e da sua equipa, com excepção pontual de um ou outro dos secretários; normalmente com intervenções que pouco se elevam, exactamente, do domínio do burocrático.

A política, que é o campo por excelência da arte de governar, enquanto definição e defesa de um rumo e de uma estratégia, está cada vez mais arredada da vida pública, limitando-se a uma gestão do corriqueiro, sem compromissos, ausente de qualquer rasgo, à vista de costa e sempre pelas mesmas razões de saúde pública. Há seis meses.

Todos compreendem, e aplaudiram, o modo como o Chefe do Executivo geriu a crise pandémica no início do ano, mas será impossível ficarmos eternamente a ver os outros e a controlar a estatística sem nada mais fazer, esperando que a crise se resolva.

Aparentemente estamos num impasse.

Tirando os anúncios de distribuição de máscaras, os buracos nas estradas, os números do COVID-19, o acompanhamento da situação em Hong Kong, e, ultimamente, o julgamento novelístico da gestão do IPIM, dir-se-ia que por aqui nada acontece. Desconfio que também não se quer que aconteça.

Estranho o silêncio das concessionárias do jogo e de muitos empresários que perdem diariamente largos milhões de dólares, mantendo empregos, embora admita que a esse comportamento não será alheio um certo instinto pavloviano de sobrevivência, atenta a aproximação do período crítico das eleições nos EUA, que terá inevitáveis repercussões nas decisões que aqui venham a ser tomadas em matéria de casinos.

O Chefe do Executivo manifestou esperança em que haja melhorias a partir de Dezembro. Parece-me pouco, muito pouco.

Esperança todos temos, uns mais do que outros. Mas sem se conhecerem as respostas para os “ses” que se levantam, nem o quando, há questões que antes dessas melhorias surgirem, e esperamos todos que sim, devem ser colocadas e respondidas.

Presumo que não seja com dois mil visitantes diários, por muito abonados que sejam, e exigências de certificados de testes de ácido nucleico abrangendo residentes que aqui são obrigados a permanecer há meses, que os casinos voltem a apresentar uma actividade que compense os prejuízos registados desde o final de Janeiro.

E admito que a vontade de conversão a uma outra religião não constitua uma prioridade do magnata Sheldon Adelson. O seu ópio é outro. Acredito, sim, que será antes a miragem da atribuição de uma nova concessão que leva a organização que dirige a promover um seminário com o sugestivo título de “Applying the Spirit of NPC and CPPCC, and One Country, Two Systems in Macao”, ao mesmo tempo que recebe das mãos de um alto responsável pelo Gabinete de Ligação do Governo Central em Macau, um certificado de reconhecimento pelos esforços desenvolvidos no interior da China e em Macau durante a crise do COVID-19. O agradecimento, verdadeira operação de relações públicas, foi extensivo a outros, não faltando o habitual recado patriótico.

Há quem alvitre que a actual situação prolongar-se-á, pelo menos, por mais um ano, tanto por motivo da continuação do combate à pandemia como para se poder concluir a “operação de limpeza” em curso – há muito necessária –, encetada do outro lado para combater a corrupção, a lavagem e o branqueamento de capitais, e a que a pandemia servirá para dar adequada cobertura deste lado. Tudo isso poderá ser verdade, e compreensível, numa perspectiva de higienização da vida pública e empresarial futura, depois dos improdutivos anos que vivemos.

Isso não esconde o quanto seria bom que com seriedade, e sem propaganda, os residentes fossem esclarecidos sobre a estratégia delineada para sair da crise. Se é que existe alguma; e quais as condições que será necessário preencher para que se possa regressar a uma vida mais próxima da normalidade. 

Bem sei que para muitos empresários, cuja falta de mérito e indiferença perante as questões sociais e cívicas faz deles potenciais conselheiros oficiais, é mais fácil viver e conviver com o medo, porque mais rentável, do que enfrentá-lo. À semelhança do que fazem, sem queixas e desde sempre, com a burocracia. Esta é igualmente apreciada por dirigentes como os que temos, com pouca apetência para a decisão, e que exibem um discurso redondo quando se trata de apresentar soluções. Até para ultrapassar os obstáculos mais simples.

Também o medo de decidir dos governantes nunca gerou riqueza, crescimento, desenvolvimento económico, equilíbrio, harmonia, em suma, felicidade. E é desta, e só desta, que se trata quando em causa está a manutenção do emprego, a retoma dos negócios, a estabilidade social, a regularização da vida das famílias e a liberdade de circulação e deslocação para destinos onde a pandemia esteja controlada sem mais constrangimentos do que os necessários.

Viver é um risco. Governar não é menos. Mas alguém tem de fazê-lo, pois não somos pandas nem podemos continuar a viver como se fôssemos os do Parque de Seac Pai Van, tirando fotografias e recebendo donativos e certificados.

Esperar passivamente que uma crise passe nunca garantiu bons resultados. E se a pandemia justifica muita coisa, muitas mais há que não pode esconder, e que em cada dia que passa ficam mais a descoberto.

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