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frivolidades

por Sérgio de Almeida Correia, em 07.08.24

Cazeneuve Paris Match.jpg.webp(créditos: Paris Match)

Interessante apontamento (La révolte des “sans-cravates”) no livro de Nathalie Schuck sobre a linguagem e a vestimenta de alguns parlamentares, e o modo como os costumes destes (des)evoluíram no Palais-Bourbon, que será em França o correspondente ao nosso Palácio de S. Bento. 
Recordando alguns episódios curiosos, como a entrada de Jack Lang com um fato ao estilo Mao, do estilista Thierry Mugler, a recusa de Jean Lassalle de despir um colete amarelo, provocando a interrupção da sessão legislativa, e uma outra vez em que Michèle Alliot-Marie, na altura ainda simples conselheira, ao entrar no hemiciclo foi impedida de fazê-lo por um zeloso huissier que lhe chamou a atenção para o facto de querer entrar de calças numa altura em que tal ainda não era permitido às mulheres, lhe respondeu com um “se vos incomodam, poderei tirá-las”, Schuck destaca num primeiro momento o desbragamento das intervenções, em especial depois da chegada dos deputados da França Insubmissa. 
Na 16.ª Legislatura, só até Dezembro de 2023, e em apenas 18 meses, o número de sanções aplicadas a deputados era de 145, na sua maioria por desacatos, perturbação aos trabalhos, provocações e outros ofensas, quando no primeiro quinquénio de Macron foram 16 no total e apenas 6 durante todo o mandato de Hollande. 
Nenhuma assembleia está livre de intervenções infelizes e ao longo dos anos sempre ocorreu uma ou outra, algumas de franco mau gosto, como a de alguém que em 1974, estando Simone Veil, ministra da Saúde do governo de Chirac e uma sobrevivente do Holocausto, a fazer a defesa do seu projecto de lei da interrupção voluntária da gravidez o comparou ao genocídio nazi. 
Mas quanto ao vestuário, Nathalie recorda as intervenções de Bernard Cazeneuve, antigo ministro socialista, de Aurélien Pradé, da direita republicana, de Karl Olive, do Renaissance, e do politólogo Patrick Buisson. 
O primeiro, que chegou a ser considerado pela revista GQ, em 2016, o homem mais bem vestido de França, quando lhe perguntaram se não seria uma questão de snobismo respondeu que a sua forma de vestir era uma prova de respeito para com o povo: “Pour le dire autrement, c’est une forme de mépris absolue du peuple que de considérer qu’ on ne le represente bien qu’ étant débrayé. Ça veut dire que l’idée que l’on se fait de lui est tellement dégradée qu’on peut se permettre de le représenter en négligeant son apparence. L’idée que je me fais du peuple, c’est qu’il a une très haute idée de ses représentants et qu’il attend d’eux qu’ils soient absolument impeccables. On me raille sur mes costumes, mais je pense que quand on représente, on respecte. C’est une politesse absolue, une manière de dire à ceux qui m’ont fait confiance mon respect total”. 
Na mesma linha, Pradié diz que quanto mais modestos são os eleitores, maior a necessidade dos seus representantes se apresentarem com dignidade: “le vêtement que l’on porte est souvent une marque de respect pour soi-même, mais surtout pour les autres”. 
Karl Olive afirma mesmo que se um huissier que dê por uma mancha no calçado vai ao vestiário para se compor, como não ficar “escandalizado” se um deputado se apresenta de jeans e de ténis (sapatilhas), concluindo que seja essa talvez a razão para que algumas escolas se pareçam com bordéis. Chama-lhe o efeito caixa de ressonância antes de acrescentar: “L’ Assemblée, ce n’est pas Intervilles (programa de televisão famoso criado em 1962) pour les vaches!” 
E Buisson, entretanto falecido, lembrava que nessa desvalorização da embalagem residia um mal-entendido fundamental: os franceses querem ser representados por gente respeitável e digna. Por essa razão é que Léon Blum, o primeiro-ministro da Frente Popular, era um burguês e vestia-se como tal, sendo impensável que um deputado de esquerda não usasse uma gravata. Para o politólogo, a ideia do deputado de esquerda não usar gravata é um fenómeno cultural que traduz uma depreciação do político, traduzindo-se num fenómeno recente que acompanha o descrédito da política. 
Há aqui pano para mangas. 
Não vou tão longe. Como em tudo existe um meio-termo, um ponto de equilíbrio entre a apresentação e o respeito que é devido aos outros, o nosso conforto e a liberdade de todos e cada um se sentir bem na sua pele e em todas as ocasiões. No falar e no vestir. 
Mas pensando sobre o que li, sem cair nos exageros que conduziram a 1789, em que o rei intimou os representantes do Terceiro Estado a apresentarem-se com uma gravata de musselina, e olhando para o parlamento português e para o que nele se passa cada vez mais frequentemente, no vestir de alguns, muitos sentados nas primeiras filas, para que a todos vejamos bem e não percamos pitada, na vozearia, na linguagem inconveniente e desbragada, no insulto rasteiro, na gargalhada alarve, no dichote boçal, não custa perceber a razão de muitos dos comentários que se ouvem nos cafés e nas tascas. Tanto nas do Portugal rural e profundo, como do país urbano pretensamente fino, eloquente e modernaço que vai em manada de férias para o estrangeiro, come sushi e bebe mojitos
Se somarmos a isso o à-vontade – há quem lhe chame outras coisas – com que alguns entram e saem de uma repartição pública, de um escritório, de uma sala ou de um gabinete, onde está mais gente, sem que ao menos se ouça “bom-dia” ou “boa-tarde”, ou que respondam à saudação que muitas vezes lhes é feita, limitando-se a um esgar ou uma espécie de grunhido, e começam a falar com quem está como se sempre ali tivessem estado ou fossem os outros que acabassem de entrar, ou lhes devessem algo, é outra das modas que se vai impondo. 
Moda lamentável, é certo, e de difícil combate. Por múltiplas razões. Porque muitos não mereceram acesso àquilo a deviam ter direito. Outros porque a escola não lhes ensinou o que devia, ou não quiseram aprender em tempo oportuno, ou porque não cultivaram padrões estéticos e de linguagem, achando isso um aborrecimento ou uma frivolidade. Outros, ainda, porque não distinguem a falta de jeito do insulto; e não percebem o que está em causa nem para que serve.  
Vale a pena pensar no que escreveu Nathalie Schuck. Sem preconceitos, serenamente. E depois olharmos para nós. 
Há uma grande diferença entre ser popular e popularucho. Convinha que alguns dos que nos representam percebessem isso. Ainda que estejam a banhos em Monte Gordo. Seria uma outra forma de também servirem os portugueses.

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