Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]



francisco

por Sérgio de Almeida Correia, em 07.08.23

papa-francisco-11127_800x450.webp(créditos: Miguel A. Lopes/Pool via Reuters)

Embora educado de acordo com os seus valores, e de uma vez, estando de férias em casa de uns tios, me terem posto a ajudar à missa, da qual rapidamente me afastaram depois de ter ido, mais o outro sacristão estival, provar a vinhaça do cura, há muito que me afastei da Igreja Católica Apostólica Romana, da missa dominical e dos seus ritos.

Do clero, em geral, sempre desconfiei, até porque o meu irmão teve a infelicidade, a que eu escapei por ser mais novo e contar com a sua ajuda, de passar por um colégio interno gerido por um louco, acompanhado de outros dementes, que impunham castigos medievais, e eu próprio conheci alguns que me inspiravam tudo menos confiança.

E apesar de algumas vezes, ao longo da vida, me cruzar com um ou outro mais mundano, civilizado e bem disposto que passava lá por casa para tomar chá com a Mélita, a quem até quase ao final da adolescência, e mesmo depois, muito mais tarde e mais velho, acompanhava à missa para ela não ir sozinha, nunca gostei da "padralhada". E do Cerejeira nem é bom falar.

Todavia, não foi isso que me impediu de ir acompanhando a sua vida, de ver como muitos faziam o seu percurso opondo-se à ditadura, mantendo-se firmes na defesa dos verdadeiros valores da instituição que serviam, lutando contra e denunciando as atrocidades do colonialismo; ou de eu próprio voar para Roma mais do que uma vez, de percorrer o Vaticano, de numa ocasião ter ido a Castel Gandolfo, de continuar a entrar nos seus templos espalhados por Itália e pelo mundo, e aí me recolher para, à minha maneira, ir conversando com Ele, até porque a fé não se explica, cada um tem a sua e as pessoas não são todas iguais e dotadas de igual racionalidade. 

Depois, as posições conservadoras do Papado, as ideias ultra-radicais de uns quantos padres, a forma como a Igreja se ia afastando da sociedade, protegendo bandidos ricos e ignorando pobres e desvalidos, ao mesmo tempo que através dos seus membros se envolvia em negociatas pouco recomendáveis, com mafiosos e gente estruturalmente desonesta, e o modo como muitos dos seus se comportavam, tão depressa fazendo de empreiteiros como de ladrões, antes mesmo dos sucessivos escândalos que abalaram as paredes milenares do seu edifício, do Banco Ambrosiano à pedofilia e à protecção durante anos de mentecaptos de batina e de toda a canalhada pedófila, tudo isso contribuiu para olhar para ela não com um mas com os dois pés atrás. Dali nunca vinha coisa boa. Até há pouco.

A ascensão de Francisco, a inteligência e a franqueza com que iniciou o seu caminho, a leitura que fiz da sua encíclica Laudato Si' e de outros textos, as suas sucessivas intervenções, que não se afastando daquela que será a própria lógica da Igreja imprimiram uma marca distintiva de humanidade e de uma maior aproximação ao mundo real e aos problemas do quotidiano, tentando mudar por dentro, firmemente, contra toda a resistência de muitos no seu interior, fizeram-me olhar para ele, enquanto Papa e ocupante do trono de S. Pedro, com outros olhos.  

Verdade seja dita que de alguém que tomou o nome de Francisco pelas razões que logo nos deu a saber, que jogou futebol e gosta de futebol, que se apaixonou e namorou na juventude antes de fazer a sua escolha, que é capaz de apreciar os pequenos prazeres desta vida, e de olhar para os outros como se nunca tivesse saído do mundo, já faziam dele um tipo diferente.

Mas ver como foi capaz de reaproximar a Igreja das pessoas, de que a JMJ de Lisboa constitui inequívoco exemplo, de compreendê-las, de se envolver com todos, devolvendo fraternidade, candura e ternura de onde estas se tinham eclipsado, despojando-se de muita da pompa e da ostentação cultivada pelos seus antecessores, mostrando ao seu rebanho e aos outros, dos mais crentes aos menos crentes, aos agnósticos e aos ateus, que nem tudo está perdido e que há um caminho comum a percorrer com todos, incluindo com os que não acreditam e com os seguidores de outros credos, para a construção de um mundo melhor, mais justo, mais equilibrado, mais verde e mais inclusivo, fazem dele um homem diferente.

Acompanhando à distância a visita de Francisco – e também alguns excessos do Estado laico e dos seus representantes de ocasião –, vi, não obstante as suas limitações físicas e o natural cansaço, próprios de uma pessoa adoentada e com a sua idade, o seu empenho em chegar a todos, em dar uma imagem diferente da Igreja, em deixar o exemplo, em lançar uma semente que possa frutificar saudável. Como vi a sua aposta num diálogo franco e aberto, sem que isso o obrigue a mudar de convicções, de valores ou de princípios.

Não creio, ainda que quisesse acreditar, que alguma vez mudarei a minha relação com a Igreja e o clero, ou a forma como olho para Deus. Todo o sofrimento que vi, e o que ao longo da vida fui obrigado a acompanhar, não me permitem pensar de outra maneira. Porque há sofrimentos absolutamente inexplicáveis, injustiças inauditas e crimes que nenhum Deus poderoso, se existisse, no seu perfeito juízo permitiria. E não me venham com as vossas justificações, poupem-me à estupidez.

Não obstante, do homem que por momentos está como Papa, daquele que diz, e repete, que a Igreja é de todos – embora eu ainda não consiga alcançar que Igreja será essa, nem quando será de todos –, e que diz aos fiéis que "sejam surfistas do amor", linguagem que sou capaz de entender, só posso dizer que não existe. Este Papa não existe.

Francisco sim. E este parece-me ser, com todos os seus defeitos, nos dias que correm, um tipo absolutamente excepcional.

Quem sabe se por isso, por uma vez, não deverei dar graças a Deus?

Autoria e outros dados (tags, etc)




5 comentários

Perfil Facebook

De Pedro Coimbra a 07.08.2023 às 07:35

Francisco tem um carisma inexplicável.
Talvez por ser sincero, humilde, genuíno.
Amanhã serei eu a escrever acerca dele e do ódio que os mais conservadores lhe têm.
Abraço, boa semana
Imagem de perfil

De Folhasdeluar a 07.08.2023 às 20:16

Parabéns pela objectividade e lucidez do texto..

Sem imagem de perfil

De Anónimo a 08.08.2023 às 09:35

Parabéns pela visão sóbria e incisiva. Numa altura em que a igreja luta por todos os meios para limpar a imagem (mais uma vez), tem a sorte de ter um líder com o dom de ser genuinamente humano. Como ateu praticante que sou, mete-me nojo a hipocrisia de um estado como o nosso, travestido de laico mas na verdade com o armário a tresandar a beatice. Com o presidente no topo e a sua ansiedade mórbida a defender a igreja logo que se soube oficialmente dos primeiros casos de abusos sexuais, atribuindo a situação como boa, por serem "poucos". O papa veio cá mostrar a esta corja de beatos, logo nas primeiras horas da visita, o que tinha que ter sido feito há muito tempo. Pedir desculpa em nome da igreja, olhos nos olhos com algumas das vítimas. Tudo o resto não passou de folclore religioso. Sinceramente não acredito que este papa mude alguma coisa, até porque ele próprio representa uma ameaça a uma instituição milenar que nunca primou pela transparencia e honestidade.
Sem imagem de perfil

De Anónimo a 08.08.2023 às 15:16

O meu caro Sérgio alega que tem uma forma própria como olha para Deus. E depois diz que se Deus existisse, Ele não permitiria, nem crimes nem injustiças inauditas. Isto é contraditório.
Mas a verdade é que conversa com Ele, porque a fé não se explica.
É o que passa comigo e com muitos. A fé nada tem a ver com a religião x ou y. A religião é um movimento de massas encaixadas numa ideologia. Há tantas religiões como há de ideologias.
A fé é uma coisa diferente, é pacífica, é justa, é solidária.
Havia um programa televisivo, não sei se ainda há, que se designava A Fé dos Homens. A Fé é incómoda.
Imagem de perfil

De antónio damaso a 12.08.2023 às 12:19

Sérgio, gostei do seu texto, simples, acessível e, ao seu jeito, até bastante profundo.
Não tenho ilusões: as instituições criadas pelo ser humano, sejam elas quais forem, nunca serão perfeitas.
Jesus disse: Se quiseres rezar ao Pai, entra no teu quarto, fecha a porta e, aí chegado, conversa com Ele.
Jesus de Nazaré sabia bem o que dizia... e porque o disse!...

Comentar post



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

  Pesquisar no Blog



Calendário

Agosto 2023

D S T Q Q S S
12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031



Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D



Posts mais comentados