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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Há vários serviços da Administração Pública de Macau que deviam ser objecto de reforma ou encerramento pela simples razão de que não cumprem cabalmente a respectiva função. A Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) é um deles.
O que tenho visto da actividade dessa entidade, onde a língua portuguesa está proscrita, tem sido de molde a ficar sempre com a pior das opiniões, tal a forma altamente burocratizada, ineficiente e perturbadora das relações laborais, e não raro contra os trabalhadores, como exerce a sua actividade.
Se todos se recordam, e esse é um problema que afecta muita gente, por ocasião do confinamento imposto pelo Governo durante o mês de Julho, aliás na linha do que o Secretário para a Economia e Finanças dissera em Maio na AL, a DSAL veio logo a terreiro, quase que se diria que a pedido das entidades patronais, dizer que era legal e legítimo baixar salários e descontar os salários dos trabalhadores. No caso do Secretário, Lei Wai Nong tinha ido à AL dizer, perante a crise, que os trabalhadores deviam aceitar "as actuais regalias e salários" e que os "empregadores têm de apresentar um salário de acordo com o mercado", quase como que justificando, concordando e aceitando uma alteração unilateral às regras fixadas na lei e nos contratos de trabalho.
Passadas uma semanas, logo veio a DSAL esclarecer através de uma nota de imprensa, de que os jornais de 22 de Julho deram conta (Ponto Final e JTM), de que terminado o período de confinamento parcial se manteria o princípio de que os empregadores não são obrigados a remunerar os funcionários. Adiantou a DSAL que "se orientações de prevenção epidémica causarem a suspensão de uma empresa trata-se de “um caso de força maior”, e que não sendo a suspensão causada pelo trabalhador, nem pelo empregador "o trabalhador fica impossibilitado de prestar trabalho, portanto, trata-se de uma falta justificada e o empregador não tem o dever de pagar o vencimento”.
Também se referiu, como que a dar uma no cravo e outra na ferradura, que "tanto os empregadores como os trabalhadores devem negociar de boa fé e de acordo com a situação real da empresa".
Ora, há aqui dois pontos em que a DSAL, e também o senhor que a tutela, estão profundamente errados.
O primeiro diz respeito à interpretação, abusiva, ilógica e ilegal que foi feita pela DSAL do artigo 50.º, n.º 2, alínea (9) da Lei das Relações de Trabalho. Diz a DSAL que, perante uma determinação do Governo, note-se, as faltas dos trabalhadores devem ser consideradas justificadas e que o empregador não tem de pagar o vencimento.
Ora, para que houvesse falta justificada do trabalhador era primeiro preciso que a empresa estivesse aberta. Se as empresas estão fechadas por decisão do Governo não há qualquer falta justificada ou injustificada ao trabalho que dê lugar a corte nos vencimentos. O trabalhador mesmo que quisesse cumprir não o poderia fazer porque a empresa estava de portas fechadas. Não há aqui qualquer falta do trabalhador que tenha de ser justificada porque aquele até podia estar à porta da empresa que esta não iria abrir para ele picar o ponto.
A DSAL, quando emite comunicados como aquele que atirou cá para fora, fala para ignorantes, para gente que está habituada a ser maltratada pelos patos-bravos desta terra, partindo de um pressuposto sem qualquer cobertura legal, desligado da realidade e de cujo único beneficiário é o patrão. Além do mais, se houvesse força maior para o trabalhador também a haveria para a entidade patronal, e não se vê porque tem de ser a parte mais fraca a suportar o prejuízo do risco, da "força maior", de uma decisão do Governo da RAEM para cortar sem qualque base legal os salários dos trabalhadores. O princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, o velho favor laboris ou favor laboratoris para alguns autores, estaria a ser fortemente vilipendiado. Acresce aqui, ainda, o art.º 4.º n.º 2 da Lei das Relações de Trabalho, segundo o qual a "lei não pode ser interpretada no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores".
Depois, em segundo lugar, porque quando a DSAL refere que os trabalhadores e os patrões devem negociar de boa fé e de acordo com a situação real da empresa, isso também quer dizer que as empresas não são todas iguais e as soluções não podem ser todas iguais independentemente da situação económica de cada empresa. Se uma empresa tiver uma sólida situação económico-financeira, não obstante a suspensão da actividade imposta pelo Governo, não faz qualquer sentido cortar nos salários de quem já ganha mal. Com isso não se está a diminuir prejuízos, mas sim a aumentar os lucros à custa dos trabalhadores.
Se o Secretário para a Economia e Finanças e a DSAL queriam ajudar os patrões deviam tê-lo dito claramente, não arranjando uma interpretação aberrante da lei para uma decisão da sua exclusiva responsabilidade, para assim fazerem o jeito aos empresários amigos e prejudicando ainda mais os trabalhadores do sector privado, já que os do sector público estão sempre protegidos. Nessa matéria o Governo da RAEM não faz o que recomenda aos outros, por exemplo, aplicando o mesmo princípio aos trabalhadores da DSAL e descontando-lhes no vencimento os dias em que os serviços estiveram encerrados e não resolvem os problemas das pessoas.
Se a ideia não era essa, então o Governo da RAEM devia pagar aos trabalhadores que viram os seus salários descontados pelos patrões, em razão do confinamento, o valor da diferença, para assim proteger, como se fosse uma seguradora, os lucros dos empresários amigos, e evitando-lhe os "prejuízos" decorrentes da sua actividade empresarial.
As queixas que ouço contra a DSAL são mais que muitas, mas parece que a única coisa que a preocupa são as manifestações de trabalhadores à sua porta. Ainda ontem houve mais uma com trabalhadores da limpeza cujos títulos de permanência foram cancelados pelo prevaricador, embora esteja a dever vários meses de salários e de horas extraordinárias àqueles desgraçados. Para todos os que na RAEM são abusados e explorados até ao tutano, a intervenção da DSAL tem-se revelado um verdadeiro fiasco.
O Gabinete de Ligação da RPC em Macau devia acompanhar com mais atenção a actividade exercida pela DSAL. Esta não pode continuar a ser uma muleta do Governo de apoio aos poderosos patrões locais e contra os trabalhadores indefesos – muitos são "blue card" que vêm do interior da China para serem explorados em Macau.
E também acompanhar a de outras entidades que são um cancro para os direitos dos trabalhadores, em especial dos mais desfavorecidos, como é o caso das agências de emprego e do seu mais do que escandaloso negócio das quotas. Uma especificidade vergonhosa de Macau que tarda em desaparecer porque dá a alguns milhões a ganhar. A estas coisas que interessam a todos e dizem respeito à vida das pessoas normais, e não a outras que não lhe dizem respeito, é que o Gabinete de Ligação devia estar atento. E mexer os cordelinhos.