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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
A proposta do Governo para a revisão da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau começa a assumir foros de um cataclismo tal é o grau de imponderação e de falta de sensatez que revela.
Uma das preocupações, ao mesmo tempo reclamação de muitos cidadãos, de juristas, de advogados e de pelo menos alguns magistrados, já que a maioria não se manifesta na presença de estranhos nem sequer entre quatro paredes, quanto à actual lei, era o facto de haver diversas categorias de arguidos, designadamente o Chefe do Executivo e alguns outros titulares de altos cargos que, sendo julgados no âmbito de processos conduzidos pelo Tribunal de Última Instância, não têm direito de recurso em relação às decisões condenatórias que contra eles sejam proferidas em primeira instância.
O recurso é um meio processual destinado a permitir uma nova apreciação jurisdicional de certas decisões. É um instrumento através do qual se faz apelo a um tribunal superior àquele que proferiu uma determinada decisão no sentido de "remediar vícios de substância ou de fundo das decisões judiciais". Isto é, como escreve Leal Henriques, um instrumento destinado "a corrigir os erros de que porventura padeçam" as decisões judiciais.
Por muito bom que seja um magistrado não deixa de ser um homem ou uma mulher, que com todas as suas imperfeições e limitações, por uma razão ou por outra, como qualquer ser humano está sujeito a errar.
O direito ao recurso é um direito universalmente consagrado, não nasceu ontem, e não só foi acolhido pelo ordenamento jurídico de Macau, incluindo na sua Lei Básica, como o foi na legislação de qualquer Estado de Direito civilizado, fazendo ainda parte do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, em vigor em Macau (Art.º 14.º: (...) Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei.")
O simples facto de haver categorias de pessoas, em pleno século XXI, e num sistema jurídico de natureza romano-germânica, a quem é negado um direito tão básico como é o de recurso, só por si seria algo de grotesco. Saber-se que o Governo de Macau, ao arrepio do que seria jurídico-constitucionalmente recomendável, legal, humano e civilizado admite, em vez de acabar com a excepção da negação do direito de recurso, alargar o seu âmbito aos co-arguidos num processo em que seja visado o Chefe do Executivo, a todos levando a um julgamento pelo TUI, sem direito a recurso, é de tal forma inaudito que se diria haver por aí um vento de insânia.
Para além das razões de natureza estritamente constitucional, jurídica e humanitária que imporiam o alargamento do direito de recurso e a eliminação da mais do que anacrónica excepção ao regime geral, imagine-se só o caos que não seria se o Chefe do Executivo, pura hipótese académica, é claro, fosse apanhado num esquema corruptivo de natureza mafiosa que a investigação revelasse envolver centenas ou milhares de pessoas agrupadas em pequenas células, um pouco à semelhança do que acontece com algumas organizações terroristas.
Com o número de juízes que o TUI tem, um julgamento de um processo desse tipo levaria, com toda a certeza, ao seu entupimento. Durante largos anos. Do TUI e de todo o sistema de justiça. Quem sabe se não seria de vez. E se nessa altura não apareceria alguém com um mínimo de inteligência, que tão arredada parece estar da vida pública, que resolvesse meter mãos à obra para produzir um trabalho útil e sério de reforma da Justiça e das suas instituições, relegitimando-a aos olhos de todos. Inclusive dos ignorantes.
Pensando bem, o melhor talvez seja mesmo deixar a 3.ª Comissão da AL e os proponentes estamparem-se de vez. Acabavam-se os problemas.