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biblioteca

por Sérgio de Almeida Correia, em 09.09.16

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Gosto de livros. Aliás, vivo no meio de livros e sem livros não sei o que seria. Gosto de sentir a sua textura, o seu cheiro, gosto de ler e virar as páginas, e depois voltar atrás e reler de novo, apreciando cada letra, cada palavra, cada sílaba, cada virgula. E depois também gosto de manuseá-los, de agarrar as suas lombadas como se fossem uma mulher por quem eu estivesse apaixonado, de com os meus dedos percorrer os detalhes da encadernação, as suas curvas, de apreciar as capas, de procurar as datas de edição e de impressão, a tipografia, o local de edição, todos os detalhes e pormenores. Os livros são vida, experiências, prazer, sentimentos, um fluir ininterrupto de emoções, por vezes de angústias. Os livros que lemos, o que com eles aprendemos, são o que faz de nós o que somos. Como somos. Os livros são um dos espelhos da alma de cada um. Por isso há alguns que têm almas de papel. Também há alguns sem alma, como os que nunca leram, os que não sabem ler, os que nunca aprenderam a ler e a apreciar a leitura. E há os que não podem ler, os que perderam a visão gostando de ler, e que ficaram reduzidos ao desgosto de terem de ficar com o que leram. Até morrerem.

Se eu pudesse tinha todos os livros do mundo. Os bons. Os que nos ensinam alguma coisa, os que nos ensinam a ler e a escrever, a construir frases que façam sentido, com as letras todas. Sem dar erros. Às vezes tenho dificuldade em guardá-los. Lá em casa gostariam que eu não tivesse mais livros, mas eu descubro  sempre lugar para mais um. Gostava de ter uma Marmeleira em Macau. E outra em Cascais. O meu problema é que não tenho dinheiro para ter uma Marmeleira repleta de estantes e de livros. Mas também não vou deixar de gostar de livros. Nem de os ter. E por causa dos livros dou comigo a escrever sobre livros quando o que eu queria era falar-vos sobre uma biblioteca. Não é bem a mesma coisa embora vivam juntos numa espécie de união de facto que dá ares de amizade colorida quando os vemos alinhados nas prateleiras das estantes. Por vezes, parece-me mais um concubinato quando encontro o Herberto junto às memórias da Maria Filomena Mónica. Há sempre alguém que vai buscar um livro à estante e depois não o devolve aos respectivos parceiros. Mudam-no de casa e aí é que começam as chatices. Até que damos com aquele ou aquela que procuramos já enturmado em casa alheia, na prateleira do lado, entre a Duras e a Sagan com aquele álbum magnífico dos dez anos da morte do Senna por cima. A empregada que pouco lê já aprendeu a respeitá-los. Pode limpar o pó, só que no fim têm de ficar todos no mesmo sítio para não haver borrasca. E nada de tirar do seu interior os papelinhos amarelos com as minhas anotações, e os bilhetes dos concertos e das corridas que vão servindo de marcadores. Porque nunca há marcadores que cheguem. Livros e bibliotecas são companheiros inseparáveis. Também gosto muito de bibliotecas.

Porque aí há quem por mim tome conta dos livros, os arrume e os conserve, apesar de odiar as burocracias de algumas bibliotecas. Isso e os leitores que escrevem a caneta esferográfica nos livros, que os riscam com tinta e dobram as páginas para não se esquecerem onde ficaram. Esses leitores não gostam de livros, nem de bibliotecas. Eu gostava muito da biblioteca do Museu dos Condes de Castro Guimarães, em Cascais. Ficava no meio do parque, no meio do verde, e às vezes até conseguia dali ouvir o mar. Tenho saudades dessa biblioteca onde ia todas as semanas, às vezes dias, pequena, aconchegante, com uma lareira para os dias de Inverno. E agora que estou longe de Cascais vieram falar-me numa biblioteca em Macau, no antigo tribunal de comarca, aproveitando-o e reconvertendo-o para ali ser feita uma boa biblioteca. Eu acho uma óptima ideia. Os chineses e eu temos isso em comum. Gostamos de livros e de bibliotecas. Já vi excelentes bibliotecas na China. E sem formalismos, sem burocracias. A nova Biblioteca de Cantão é moderníssima, cheia de luz, num local fantástico, mesmo junto à Ópera.

Eu gostava de ter uma biblioteca no velho tribunal. Conservando o velho edifício onde no começo da minha vida profissional fiz tantos julgamentos. E até inquirições em processos disciplinares de que fui instrutor. Tinha vinte e cinco anos. Transformar aquele edifício numa biblioteca a sério, com salas sem humidade, com muita luz, com uma temperatura agradável, com livros sem bolor nem cheiro a mofo, com adequada insonorização, sem cheiro a comidas nem falatório, e voltar a vê-lo cheio de gente e de silêncio, cheio de livros, de secretárias de madeira, confortáveis, com prateleiras de onde exalasse o cheiro do papel, a cor das lombadas. Quem me dera.

E ter a biblioteca ali mesmo no centro da cidade, com estacionamentos e transportes à porta para que ninguém tivesse  que se preocupar com o parquímetro ou as multas. Com salas amplas, cantos simpáticos, com gabinetes para investigação e pessoal limpo, de mãos finas, educado, simpático, atencioso, culto, que soubesse cuidar dos livros e dos leitores e fosse capaz de distinguir um Kafka de um Bolaño, um Borges de um Eça. E com muitos livros de Ciência Política para eu não ter de estar sempre a comprá-los pela Internet, gastando rios de dinheiro, sem saber quando chegam, nem se chegam, e se no final será necessário ir outra vez ao banco trocar o cartão de crédito. Uma biblioteca ali, no centro da cidade, era o melhor que nos podia acontecer. Se em vez de outro "Papapun" cheio de tralha, e de gajas e gajos aos encontrões com sacos enormes, cheios de fatos de treino e de roupas horríveis, ou de mais uma cantina medíocre de onde exalam cheiros pestilentos e sai uma comida mal confeccionada,  tivéssemos ali uma biblioteca decente, bonita, arejada e cheia de livros, isso seria um milagre.

O Governo da RAEM tem feito muitos disparates. Todos os dias deparo-me com mais um, mas agora têm razão. Uma biblioteca no centro da cidade é um sinal de civilização, uma mensagem para os ignorantes, um recado para a população. Um cidadão que lê é um cidadão esclarecido, um cidadão informado. E se for um jogador poderá sempre aprender a ler Dostoievski, que também tem histórias de fortunas e de risco, com hotéis, mulheres, amor e dívidas.

Eu gostava de ter uma biblioteca no antigo tribunal. De poder vê-lo cheio de livros e de leitores. Depois da Rota das Letras por lá passar, uma biblioteca ali seria honrar a memória do espaço. Dar-lhe um futuro digno, um futuro civilizado, um futuro promissor. Ao edifício mas também à população de Macau. Felizes os povos que podem aprender a ler, a gostar de livros e ainda por cima com a sorte de possuir uma biblioteca mesmo ao lado, com os livros todos à mão, vinte e quatro horas por dia, como se fosse um verdadeiro casino de livros. Hoje sai um, amanhã outro, e no fim todos têm uma fortuna. No que leram, no que aprenderam, no que sonharam. Seria a nossa salvação, a nossa garantia de futuro, o nosso seguro de vida contra a ignorância, contra a estupidez dos governantes e a prepotência do poder.

Está na hora dos cidadãos de Macau lutarem pelo seu futuro com inteligência. Se começassem por lutar por ter uma biblioteca na zona mais nobre da cidade estariam a fazer um favor a si próprios. Os seus filhos e netos hão-de agradecer-lhes. Eu quero uma biblioteca no antigo tribunal. Cheia de livros. E vou lutar por ela e por eles. Começo hoje. Quem quiser que venha comigo.

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4 comentários

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De simplesmente... a 11.09.2016 às 16:19



Excelente texto.
Parabéns.
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De Belas Mulheres a 11.09.2016 às 16:25

Bela biblioteca
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De Sara a 11.09.2016 às 16:41

Parabéns pelo destaque.
Mais que merecido! Post incrível!
Boa sorte para esse projeto :)
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De Pedro Coimbra a 12.09.2016 às 05:03

Ainda não percebi a oposição a esta iniciativa, ainda não percebi o que certos lóbis querem ali fazer.
Esta malta não dá ponto sem nó.
Mas o que quererão fazer naquele espaço?
Um abraço, boa semana

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