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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Durante anos ocupou o seu espaço na Rua de S. Paulo, famosa durante as décadas de oitenta e noventa do século passado pela concentração de lojas de antiguidades, velharias e bugigangas. E também pelos alfaiates. Ele, Meng Cheong, e o vietnamita do outro lado da rua, há muito desaparecido.
Entretanto, os tempos mudaram; muitos desses estabelecimentos mudaram de donos.
A alfaiataria do senhor Meng Cheong manteve-se ao longo de décadas, servindo vasta clientela, na sua maioria altos funcionários da administração colonial e empresários chineses ligados ao imobiliário.
Era um homem simples, educado, acolhedor, paciente com os cortes mais teimosos, as dobras e os vincos, e sempre sorridente.
Depois da transição, em 1999, com a chegada de outros senhores, de gente ligada às novas concessões de jogo e à hotelaria começou a diversificar, mas também atendeu algumas senhoras que iam até ele com o recorte da fotografia da Vogue à procura do modelo ideal, seguindo a moda dos blazers masculinos.
Diplomatas, políticos e dignitários lusos, fugindo de outros alfaiates mais careiros e mais centrais, aproveitavam uma passagem pela cidade para o procurarem por indicação de alguém e renovarem os guarda-fatos.
Ele ia tirando umas fotografias que depois exibia orgulhoso. Comigo também quis tirar algumas, em especial quando me viu regressar após alguns anos de ausência da terra.
As camisas nunca foram o seu forte devido aos colarinhos demasiado macios e aos esticadores moles que se dobravam com facilidade, embora nos modelos sem mangas tivesse bastantes seguidores em razão dos bons tecidos de algodão que lhe chegavam de Hong Kong.
Com os meus múltiplos afazeres, quando não podia deslocar-me até à sua loja, o senhor Meng Cheong pegava na mota e lá vinha ele até ao meu escritório armado de giz e fita métrica. Trazia-me amostras, tirava-me as medidas, e passados dias entregava-me o resultado.
Em dada altura chegou a confeccionar togas para alguns advogados, mas as primeiras que dali saíram mais pareciam umas batinas.
Um dia trouxe-lhe um exemplar de Portugal, naquela fazenda pesada e incómoda em que as faziam por lá. Pedi-lhe que me fizesse uma mais leve, por causa do calor, e dias volvidos o senhor Meng Cheong entregou-me uma exactamente igual num tecido fino e com um forro ligeiro, bem mais adaptada às temperaturas desta zona da Ásia. Ainda hoje a tenho.
Nos últimos tempos, que a idade não perdoa, arranjou uns ajudantes trapalhões e as coisas começaram a não lhe sair tão bem. As encomendas tornaram-se cada vez mais raras.
Quando há dias, passeando pelas imediações da Rua de S. Paulo, vi a fachada despida dos tradicionais caracteres e das letras que lhe identificavam a casa, percebi que o seu ciclo ali chegara ao fim.
O senhor Meng Cheong fez muita gente feliz.
Espero que a saúde não lhe falte, tenha uma boa reforma, acompanhe os netos e mantenha o sorriso de sempre.