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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Senhor de uma fortuna digna de um oligarca, apoiante da invasão da Crimeia em 2014, militante da “solução ucraniana”, como antes fora da intervenção russa na Abecásia, na Ossétia do Sul e na Síria, deixou de poder dirigir as grandes orquestras a que em tempos emprestou o seu brilho em Londres, Nova Iorque, Milão, Berlim, Amesterdão, Roterdão, Viena ou Munique. Foi banido no Ocidente, como outros foram na Rússia.
Não fosse isso e jamais o teríamos visto por estas bandas.
Dentro daquela sala importava esquecer as circunstâncias que o trouxeram a Macau e curar, simplesmente, de tirar partido da música. Foi o que fiz.
Tudo começou com uma breve incursão a Prokofiev e a excertos da Suíte Romeu e Julieta op. 64, espécie de aperitivo para preparar os ouvidos e os olhos para o banquete que se seguiria.
Quando Shostakovich se apresentou com a sua Sinfonia n.º 6 em Si Menor, op. 54, todos tínhamos percebido que aquela não iria ser mais uma noite como as outras.
A minúscula batuta na mão direita, marcando o tempo, enquanto a esquerda imparável, com dedos bailando acima e abaixo, ante o olhar compenetrado dos músicos e o crescente arrebatamento da audiência, percorria as várias secções e dirigia o seu pequeno exército.
O clímax chegaria com uma execução magistral da Sinfonia n.º 5 em Mi Menor op. 64 de Tchaikovsky.
Musicalmente seria impensável, a ele, Gergiev, e aos seus músicos, a Mariinsky Orchestra, regatear aplausos.
Politicamente é outra coisa. As posições que foi assumindo ao longo dos anos, até o tornarem num símbolo do mais execrável putinismo, do qual nunca se quis distanciar, a muitos suscitam viva repulsa. A mim também.
Impunha-se um esforço de abstracção. A "música não é mais apolitica sob Putin do que era sob Hitler". E no caso de Gergiev nunca seria.
Se valeu a pena, pergunta-se agora? Bem, mentiria se dissesse o contrário. Bastaria ver no final a satisfação no rosto da segunda violinista, a coreana Alexandra Lee, para perceber o nível da execução. E o encantamento do público que por três vezes chamou o maestro.
O que, em todo o caso, não invalida a conclusão. E um certo desconforto pessoal.
E não nos permite esquecer que há princípios e valores que têm de estar sempre presentes, mesmo quando o génio se manifesta de forma tão exuberante e sublime.
As guerras são uma desgraça. Perdem todos. Que ninguém duvide.