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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
O momento em que a questão foi colocada não seria o mais adequado. A forma como foi colocada também não. E o que se seguiu não devia ter tido o relevo que teve. Não porque a questão não deva ser tratada e as regras actualmente vigentes questionadas, mas porque uma vez mais as intervenções e o padrão da linguagem utilizada continuam a deslustrar a actividade parlamentar e a desprestigiar a democracia parlamentar. Contudo, tirando esses aspectos mais formais do que substanciais, quanto ao essencial há muito que a questão devia ter sido colocada.
Todos sabem como o Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV) nasceu. Ainda recentemente Zita Seabra, por ocasião de uma conferência promovida na Universidade Nova, a propósito das celebrações dos 40 anos do 25 de Abril, em que também participou Augusto Santos Silva, teve oportunidade de recordar a história. Isto é, a "encomenda" que lhe foi feita por Álvaro Cunhal no sentido de promover e dinamizar a criação desse apêndice do PCP. Mas não é isso que quanto a mim estará hoje em causa. Isso pertence ao passado e a nós interessa-nos o presente e o futuro.
Desde a sua gestação, tudo o que o PEV fez "sozinho" limitou-se à formalização da sua existência. Nunca participou por si em qualquer acto eleitoral que se visse apresentando listas próprias, fazendo-o sempre integrado nos alegres comboios e caravanas do PCP. Repare-se que não vejo nisso qualquer problema. Cada partido, desde que tenha existência legal e cumpra as regras, participa nos actos eleitorais como muito bem entenda.
Parece-me, no entanto, perfeitamente legítimo que se questione a representatividade de partidos que nunca se apresentaram a eleições. Não há nada que o impeça, nem creio que em democracia haja temas que não possam ou não devam ser tratados, desde que a todos interessem, o que me parece ser o caso.
Porém, o que efectivamente deverá ser questionado e reflectido é a meu ver mais vasto e traduzir-se-á em saber se as actuais regras que prevêem e regulam a criação, a actividade e manutenção dos partidos políticos são adequadas. Ou se não será tempo de se proceder à sua revisão de fundo.
A regulação dos partidos políticos por parte dos Estados, para além do aspecto propriamente legitimador[1] e regulador, apresenta uma outra vertente, pois que quando o legislador impõe o respeito por patamares mínimos para a formalização da constituição de partidos, para a apresentação de candidatos ou para a sua manutenção, está a condicionar ou a viabilizar a entrada na arena política de contendores, dessa forma também influenciando o sistema de partidos. Este aspecto pode concorrer, como já referido por alguns autores, para um aumento do potencial de cartelização dos partidos e do sistema de partidos (Rashkova e van Biezen, 2014: 268).
Quanto às finalidades das leis dos partidos, o alinhamento seguido por Katz afigura-se ainda ser aquele que melhor reflecte essa realidade. Para este autor, existirão três propósitos fundamentais na aprovação desse tipo de normas: a) O reconhecimento da qualidade do partido que irá condicionar a sua participação nos sufrágios, a alocação de recursos públicos e o papel dos partidos no governo; b) A regulação das actividades em que os partidos se podem envolver; c) A regulação interna das suas estruturas e modos de actuação que serão compatíveis com o respectivo estatuto (Katz, 2004).
O facto da nossa lei dos partidos ser uma das mais desenvolvidas a nível europeu, à semelhança do que acontece, por exemplo, com as leis da Letónia, Lituânia, Polónia, Roménia, Espanha, não faz dela uma lei actual. Pessoalmente entendo que os actuais instrumentos de regulação dos partidos políticos estão ultrapassados, sendo questionável se, por exemplo, não deveríamos, à semelhança do que acontece com outros países, obrigá-los a ter registos actualizados anualmente dos seus militantes, devendo ser fornecidas listagens completas ao Tribunal Constitucional - por onde se possa facilmente depreender as oscilações no seu número, sabendo exactamente quantos entraram e quantos saíram e não apenas os números dos primeiros - e se não deveriam ser introduzidas cláusulas que impusessem patamares mínimos de votação ou a obrigatoriedade da sua extinção caso não participassem, sozinhos ou coligados, durante um certo período de tempo em actos eleitorais. O calvário que é conseguir obter informação, que por natureza devia ser pública, junto de alguns partidos políticos com responsabilidades parlamentares, que nem sequer se dão ao trabalho de responder às missivas que nesse sentido lhes são enviadas por quem investiga e precisa da informação para efeitos académicos, ilustra bem a forma desfasada como estas coisas continuam a ser entendidas e vistas pelos próprios partidos, onde toda a informação que não lhes convém é escondida e protegida do público, de investigadores, de simples curiosos que pretendam informar-se. E mesmo em relação àqueles que disponibilizam informação actualizada sobre os seus registos de militantes, por exemplo, verifica-se que há muita informação em falta que devia ser apresentada e disponibilizada publicamente. Ainda recentemente tive oportunidade de comprová-lo. Conhecendo-se os números a nível europeu relativos ao declínio e abandono da militância, e aqueles que em relação a Portugal são conhecidos, foram-me fornecidas indicações, por parte de alguns partidos, que os transformariam em casos únicos no panorama mundial, havendo mesmo um partido em que nunca houve abandonos e o número de novos militantes somou-se sempre ao que vinha do ano anterior, como se nem uma única baixa tivesse ocorrido nos seus cadernos. Nem sequer por falecimento. É sempre a somar.
Por outro lado, também tenho dúvidas, por exemplo, sobre se as regras da capacidade eleitoral activa e passiva dos militantes não deviam ser comuns a todos os partidos. Ou se a situação contributiva dos seus militantes não deverá ser sempre pública. Um partido político não é uma associação privada ou um clube de futebol pelo que as regras de transparência que lhes são aplicáveis têm de ser naturalmente mais exigentes e corporizarem as exigências de uma cidadania mais activa e mais participada, não sendo legítimo, a meu ver, que para manutenção dos seus próprios privilégios vivam cada vez mais afastados dos cidadãos, gozando e dispondo dos recursos do Estado a seu bel-prazer, e só se lembrem dos cidadãos quando pretendem proceder a operações cosméticas de relegitimação social e eleitoral ou por razões ligadas às suas lutas internas pela conquista do poder, como ainda há pouco tempo aconteceu.
[1] - “Just as political power is seen as legitimate when it is established and exercised according to the law, which makes it legally valid, so are political parties” (Rashkova and Van Biezen, 2014: 268)
Katz, Richard S. (2004), Democracy and the Legal Regulation of Political Parties, Paper prepared for USAID’s Conference on ‘Change in Political parties’, Washington D.C., 1 October 2004;
Rashkova, Ekaterina R. e Ingrid van Biezen (2014), The legal regulation of political parties: Contesting or promoting legitimacy, International Political Science Review, Vol. 35(3), 265-274
A História não perdoa erros de tão grande miopia política. Jason Chao tinha menos de seis meses quando a Declaração Conjunta foi assinada. Trocar princípios ou vistos de residência por patacas e euros nunca poderia dar bom resultado.
"(...) Sem qualquer ponto de contacto entre as realidades apresentadas pelo Governo e pela oposição, tivemos um debate sobre nações distintas, que de comum tinham apenas o nome: Portugal.
Ao comparar o teatro a um parlamento, Piscator argumentava que o teatro deve induzir o público a envolver-se politicamente. Terá o debate de ontem aproximado os cidadãos da política? Parece improvável, sobretudo quando nenhuma das intervenções nas mais de quatro horas de debate abordou a crescente descrença dos portugueses em relação aos seus representantes políticos: menos de 10% confiam nos partidos e 85% estão insatisfeitos com o funcionamento da democracia nacional, o mais alto nível de insatisfação da UE. E esse é também o estado da nação."- Carlos Jalali, Público
Perante este facto incontornável, que vai diariamente afundando o regime e a democracia, os actores entretêm-se com jogos florais. Quem sabe se não será altura dos responsáveis por este estado de coisas se inscreverem nesta prestimosa associação? Talvez esta pudesse ajudar os Coelhos, os Seguros e os Portas a ver melhor.
"Muitos dos arrebatamentos emocionais da sociedade têm a ver com o facto de as pessoas terem medo, um medo mais relacionado com a desprotecção económica à esquerda e mais com a perda de identidade à direita, embora tudo isto se misture dando lugar a sentimentos de difícil interpretação e gestão. Neste mundo já não são eficazes as seguranças que só funcionam em espaços fechados mas as pessoas têm direito a um resguardo semelhante nas novas condições. Enquanto a política não for capaz de proporcionar uma segurança equivalente, as sociedades terão motivos para confiar nas promessas impossíveis de cumprir do populismo." - Daniel Innerarity, Público, 11/04/2014
Neste pequeno trecho que transcrevo, o filósofo basco Daniel Innerarity (Bilbao, 1959) sintetiza de forma magistral qual o grande problema da política contemporânea. A política, e os políticos, já que esta é feita por homens, é incapaz de proporcionar segurança aos cidadãos, o que na perspectiva daquele conduz ao acolhimento da mensagem populista. Para o caso é indiferente que esta seja proveniente daquilo a que se convencionou tradicionalmente designar por direita ou por esquerda.
Se nos detivermos cinco minutos a pensar no que distingue uma democracia representativa, um Estado de direito democrático, de uma ditadura ou de modelos autoritários musculados, rapidamente chegaremos a uma conclusão: as democracias são normalmente previsíveis, as ditaduras e os estados autoritários naturalmente imprevisíveis.
Não que nestes últimos não exista lei e ordem, como apregoava o velho Salazar, se via na Espanha franquista, na Itália mussoliniana ou no Terceiro Reich, ou mais recentemente na descaracterizada Rússia de Putin. Mas porque a previsibilidade das democracias e das suas regras não se funda apenas na exigência formal da produção e publicação do texto legislativo ou do regulamento, mas no rigor da sua interpretação e execução, na previsibilidade da sanção, na garantia da clareza na aplicação do direito, na cominação da sanção, na equitativa distribuição dos deveres e dos sacrifícios e no exercício e protecção dos direitos.
A estabilidade e segurança conferida por uma democracia exigente e rigorosa reflecte-se em tudo isso, mas igualmente na forma como o poder é exercido, como o parlamento assume a sua função legislativa e fiscalizadora da acção do executivo, na forma como o poder se distribui entre as diversas instituições, no modo como os checks and balances se articulam, na actividade dos tribunais e na acção das polícias. E, acima de tudo, na transparência com que tudo isso é feito, isto é, no acesso que todos e cada um têm ao acesso à informação, ao conhecimento dos processos e à certeza de que pela sua acção externa não só lhes é permitido acompanhá-los como orientar a sua acção fazendo uso de mecanismos ao alcance de todos.
Proporcionar segurança numa democracia implica ter actores em quem se possa confiar, cuja mensagem seja clara, directa, de imediata percepção pelos destinatários. As "promessas impossíveis de cumprir do populismo" passam também por aqui. E a este propósito, alguns trabalhos que têm sido feitos dando conta da forma como a Frente Nacional da família Le Pen cresceu e atingiu os históricos resultados das últimas municipais francesas, são de leitura aconselhável para que se perceba como aquele que deveria ser o discurso próprio das democracias se transformou no discurso da Frente Nacional e do "Campus Bleu Marine". Convirá não esquecer que nas listas da Frente Nacional se candidatou muita gente vinda de diversos quadrantes à sua esquerda, de um alto quadro da Comissão Europeia a dissidentes da UDF e do RPR, sem esquecer dissidentes de esquerda como Valérie Laupies, esta última candidata em Taracon (Bouches-du-Rhône), eleita para o comité central e conselheira regional da Frente Nacional em 2010, actual conselheira de Marine Le Pen para os assuntos da educação. Mais grave foi que a transumância não se limitou às pessoas. Hoje, em França, a Frente Nacional surge mesmo, paradoxalmente, como herdeira dos valores republicanos que as forças tradicionais, designadamente à esquerda, desde sempre se reclamaram exclusivas e fiéis depositárias, ainda que para isso tenha sido necessário deturpar a mensagem e vestir o discurso de uma roupagem nova - recorrendo a modernas técnicas de marketing e comunicação e à distribuição de kits de formação do militante frentista - ou disfarçar o passado militarista de alguns dirigentes.
Os cidadãos-eleitores não podem ser criticados por essas mudanças, salvo na parte em que o desastre da afirmação política das democracias nos tempos actuais, de que constituiu sintoma pertinente o declínio da participação nas democracias consolidadas e nos partidos, em muito se ficou a dever ao crescimento da sua própria apatia.
Veio isto a propósito do texto de Innerarity como podia vir a propósito de "o problema é deles", manifestação de paroquialismo vinda de onde menos se espera, ou da dupla indignidade do comportamento do poder político em matéria tão sensível como é a da transparência da tributação e da necessidade dos contribuintes destinatários serem esclarecidos por quem decide sobre as regras que lhes são aplicáveis sem terem de se sujeitar a atitudes de banditismo fiscal, tornadas corriqueiras por força de um aberrante comportamento político de tipo liliputiano por parte dos responsáveis em matéria fiscal e respectivos executores.
A insegurança residirá na política, nos caminhos que esta prosseguiu nos anos recentes, sem que, todavia, nesta se esgote. A adequação formal das regras não constitui o princípio e o fim da segurança. Esta será apenas um caminho para atingir os fins superiores da actividade política. Por isso é que, quanto a estes, mais do que apontar o dedo aos cidadãos e aos eleitores que escolhem o caminho "mais fácil" do voto "populista", importaria, agora que passam 40 anos sobre o 25 de Abril e se cumpre o centenário da morte desse mito da cidadania que foi Jean Jaurès, republicanizar a democracia, tornando-a possível, oferecendo um modo de ser e de estar que contrarie em cada dia que passa a deprimente e cada vez mais insuportável falta de estatura, de dimensão ética, moral e política de quem diariamente decide sobre as vidas dos seus semelhantes sem olhar para o que está por trás, nem para as consequências dos seus actos, cumprindo agendas e roteiros dignos de moluscos destituídos de vontade.
Tornar a democracia possível é torná-la segura, afastando-a da imprevisibilidade típica da gestão dos incompetentes, do autoritarismo de caserna e da arbitrariedade das ditaduras. Tornar a democracia segura é, além do mais, humanizá-la, coisa que não poderá ser feita por autómatos políticos cujo único credo é a conquista do poder e a sua manutenção para garantir o alimento do lumpen dependente que os venera e serve.