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esperança

por Sérgio de Almeida Correia, em 31.12.24

Andaman Sea 2512 2024.jpg

Enquanto a lenha vai alimentando as lareiras das terras frias do hemisfério norte, muitos se questionam sobre o que nos reserva 2025. Como vidente não sou, também não corro o risco de me enganar, deixando esses prognósticos para os meus amigos economistas e alguns, poucos, especialistas de ciências ocultas e afins.

E assim sendo, quero apenas neste final de 2024 colocar na última página do calendário, e que será amanhã a minha primeira, sublinhar um breve punhado de reflexões suscitadas por uma recente entrevista de José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, e pela nomeação falhada de Hélder Rosalino para secretário-geral do Governo.

São dois factos que, aparentando nada terem a ver um com o outro, em rigor estão intimamente ligados.

Da entrevista ao Expresso, de entre várias e pertinentes e questões sobre a actualidade política, Aguiar-Branco enfatiza a necessidade de se mexer no estatuto dos titulares de cargos políticos, explicando porquê.

Quanto às incompatibilidades atinentes ao exercício de cargos políticos, o presidente da AR considera-as excessivas, o que conduz a que, praticamente “só quem não tenha nada que fazer, quem não represente nada na sociedade”, gente a quem esta não reconheça mérito e competência é que pode estar disponível para o exercício de cargos políticos, dando como exemplo os parlamentares.

De caminho critica, e bem, a funcionalização do exercício da função política, defendendo um escrutínio mais exigente, mais rigoroso dos registos de interesses, um sancionamento rápido e eficaz em situações de prevaricação e uma revisão das remunerações de titulares de cargos políticos, única forma de se trazer gente qualificada – decente, digo eu – para a política.

Sobre o triste episódio Hélder Rosalino, mais um, que se predispunha a ingressar no Governo com o salário de cerca de 16 mil euros que auferia no Banco de Portugal, o que levou a que o primeiro-ministro e a sua equipa mexesse na previamente lei, dando um pontapé na generalidade e abstracção e adaptando-a ao caso concreto que tinham em vista, como outros fizeram, trata-se de mais uma daquelas situações que nunca deveria ter acontecido.

Não foi, infelizmente, a primeira. Gostaria que fosse a última, sendo indiferente que o governo seja do PSD, do PS ou de qualquer outra agremiação que por aí ande, mais ou menos atamancada às instituições do regime na mira dos subsídios.

Olhando para os nossos partidos, os nosso governos, actual e passados, a nossa classe política, a composição do parlamento e a mediocridade reinante, em especial nas últimas duas décadas e meia, dificilmente se deixará de concordar com Aguiar-Branco. Os políticos ganham mal e a política foi tomada por funcionários medíocres, pelo lúmpen dos partidos e das juventudes partidárias. Quem tem mérito foge da actividade política e do escrutínio que esta implica, preferindo ficar comodamente numa entidade pública ou privada onde seja razoavelmente bem pago e se sinta resguardado dos holofotes e da bisbilhotice e inveja da populaça.

Poderemos não estar todos de acordo neste ponto. Seria importante que fossemos capaz de discuti-lo, já que exemplos não faltam. Dos cábulas alçados a ministros, dos funcionários camarários e dos partidos investidos em estadistas, que acabam empresários e milionários sem que se perceba de onde lhes vem o guito, se de uma herança milionária escondida num cofre caseiro em maços de notas que já saíram de circulação, se de pagamentos perpetuados durante o exercício de cargos públicos, ou se da simples moscambilha, vigarice ou operação de consultadoria de agilização de processos e recomendações.

Alguns dirão que é por causa disso que não se contratam mais Rosalinos e Macedos, e que no final – dependendo de quem os promove – até cumprem bem a função, seja a esportular os pobres reformados ou a sacar comissões a cavalo de um banco público para se apresentarem resultados que de outro modo ficariam muito aquém do publicitado.

O problema é que ninguém sabe por onde começar. Ou quer começar.

Os partidos não expulsam os medíocres porque esses estão todos lá instalados e controlam ao acesso aos lugares susceptíveis de darem prebendas. Outros só estão disponíveis para servir o Estado e exercer a função política se se puderem comportar como gestores privados, sendo pagos por terceira entidades ou contornando-se as regras aplicáveis ao comum dos cidadãos.

A discussão, talvez ingenuamente ainda acredito nisso, deverá colocar-se num patamar que antecede a acção política.

Tanto uma como outra estão hoje inquinadas pela radicalização do discurso político, pelo entrincheiramento partidário, por um novo acantonamento classista que distingue entre os que estão dentro e a tudo têm acesso e os que estão fora, na periferia das instituições e do poder, destinados à rua e ao garimpo urbano em busca de uma casa suburbana ao sol e de um salário de sobrevivência depois de impostos.

Tudo é demasiado mau e miserável para que continuemos a contemporizar com a indecência.

Porque é tão mau pagar tão mal aos políticos como hoje pagamos – que em qualquer caso será sempre demasiado na visão de muitos para o que a maioria se mostra capaz de fazer – como aceitar na política exércitos de funcionários medíocres e de mercenários, incapazes de se predisporem a servir a causa pública, ainda que por um período temporário, sem outra razão que não seja esse mesmo serviço.

Redescobrir o sentido ético da acção política, conferir um sentido moral ao serviço público na política, está muito para lá das questões salariais, do simples reconhecimento do mérito que cada um merece, de uma revisão de estatutos ou equiparação ao que se passa em empresas privadas. Que, nem sempre, e os bancos e banqueiros constituem prova disso, apresentam os melhores exemplos de integridade e seriedade, ao contrário do que se poderia esperar, apesar de pagos principescamente face à generalidade das pessoas. Ladrões e bandidos aparecem em todo o lado e em todas as profissões. Disso não estamos livres.

Precisamos de ser capazes de olhar para nós próprios, de rirmos e de chorarmos em conjunto, de nos redescobrirmos enquanto pessoas. É tempo de nos deixarmos de procissões, arruadas, folclore e faduncho. É tempo de voltarmos a pensar. No que somos, no que queremos ser. Se é que ainda aspiramos a ser algo mais do que um punhado de números ao serviço de maus gestores de algoritmos.

Há muito que o sonho deixou de comandar a vida. Não se iludam. Só a acção séria e consequente é motivadora e dá frutos a longo prazo. Não tenham medo. 

Feliz Ano Novo para todos os que ainda por aqui passam. E aos que perdem cinco minutos a pensar nos outros.

Que não lhes falte a saúde e a capacidade para reflectirem e agirem. A esperança. Para perseguirem a felicidade e serem felizes, não desesperando na adversidade medíocre dos dias.

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integração

por Sérgio de Almeida Correia, em 19.12.24

1-maglev.webp(Hoje, no Macau Daily Times)

China today has the longest and fastest high-speed rail network in the world. More than two-thirds of the world’s high-speed rail lines are here. Over 46,000 kilometers of railway have been planned and built since 1997, a process that has continued to grow without pause since 2007. The Shanghai Maglev is the fastest passenger train in the world, capable of reaching a speed of 431 km/h. A gem of cutting-edge technology.

If we look at the highways of the People’s Republic of China (PRC), we will see that by the end of 2020, more than 161,000 kilometers had been built since the mid-1980s. Remarkable.

Some other social and economic indicators are equally impressive and have drawn admiration from the international community.

It is natural for China and the Chinese people to feel pride in these achievements, to celebrate them, and to promote international awareness of their successes.

However, there are other accomplishments which, while deserving applause, also provoke some apprehension and, in certain cases, distrust and disillusionment.

As we mark 25 years since the establishment of the Macao Special Administrative Region (SAR) and the transfer of administration of this former Portuguese-ruled territory to the PRC, it is appropriate to celebrate this moment. But beyond the success and the example of peace and social harmony maintained in a peaceful handover—where the rights and expectations of residents were generally respected—it is also important to analyze what has not gone so well, what remains unfinished, and what needs to be adjusted.

Without going into too much detail, I will say that while Macau’s GDP grew from $6.43 billion (2000) to $47.06 billion (2023, source: Statista), and its population increased from 425,518 (1999) to 704,129 (2023)—providing living conditions and security for those able to move here—some other indicators should, in certain cases, cause concern, and in others, shame.

Inequalities remain glaring. Labor rights are severely lacking in various aspects. It is unacceptable that labor legislation provides for only 6 days of paid annual leave for most workers, while the public administration has expanded, and the few who access it enjoy 22 days of annual leave. Workers in the PRC and Hong Kong, on average, have more paid annual leave, as a legislator recently pointed out in the Legislative Assembly. The same applies to maternity leave. Similarly, it is outrageous that public servants, with shorter working hours, enjoy more public holidays and compensatory days off than workers in the private sector.

Real estate speculation has grown uncontrollably because it benefits elites and property owners, to the detriment of most residents and disadvantaged classes. Air quality, surrounding waters, traffic flow, and the environment have all worsened. Diseases associated with underdevelopment that had been eradicated have reemerged. Traffic is chaotic, buses are always full, and parking spaces are lacking. Supermarket prices have risen significantly.

Too many cases of corruption have damaged the image of Macau and its governance. The privileged relationships with certain economic groups and disreputable individuals were regrettable.

The use of Portuguese, an official language, has declined in courts and public administration. Unnecessary and unforeseen barriers have been created for its speakers, complicating their lives and harming residents who need it to defend their rights and legitimate interests.

Secrecy in governance procedures, which should be transparent, has increased. The contracts with gaming concessionaires are not public, which never happened before.

Certain civic and political rights have been curtailed without justification, driven by prejudice, narrow-mindedness, insecurity among decision-makers, and incorrect interpretations of the 1987 Sino-Portuguese Joint Declaration—deviating from both its spirit and letter—and the Basic Law. Qualified and well-meaning individuals, who served Macau and China well for decades, have been lost.

Electoral reform has reduced participation and representation of broad sectors of the population, distancing Macau from the capitalist system’s norms that were to remain unchanged for 50 years. Opportunities for economic growth, diversification, and development have been lost due to incompetence and disregard for public funds by some leaders. Autonomy has been undermined.

Twenty-five years on, most of us, myself included, will say with satisfaction that it was worth it. The creation of the Macau SAR was, and is, a success.

However, as with all things in life, there must be balance, good sense, and good faith. Risks must be managed before decisions are made, not after consequences arise.

In recent years, the speed of integration has matched that of the Shanghai Maglev, but the results have not been brilliant. If a train departs before its time, it leaves passengers behind, frustrating expectations. If it arrives at its destination station at 300 km/h, it risks failing to stop and crashing into the façade.

It is wise to mitigate this risk if we do not want the identity of the Macau SAR to dissolve definitively, becoming an insipid, ugly, and polluted place by the end of the transition period.

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diferença

por Sérgio de Almeida Correia, em 18.12.24

De vez em quando lá aparece na TDM um programa com gente interessante, informada, sem complexos, que fala claro e pensa pela sua cabeça, não se limitando a fazer o habitual número circense e a encher chouriços para garantir subsídios, comendas ou um lugar na mesa da copa.

E esta gente, que não alinha pela propaganda, nem promove livros onde compila textos laudatórios de quem não conhece, nunca conheceu, Macau ou a China, e aqui não deixou obra alguma, nem mesmo clandestina, é capaz de olhar para a RAEM e para as relações entre a China e Portugal sem complexos, sem traumas e sem temor reverencial, o que por vezes deixa quem os entrevista sem saber por onde continuar a sua condução.

São, apesar disso, pequenas pedradas no charco, insuficientes para fazerem a água estagnada transbordar, abrirem caminho para uma mudança consistente e permitirem uma renovação mínima da qual Macau e a China possam tirar algum proveito. 

Estou a referir-me a José Isaac Duarte e José Alves, portugueses, académicos, aqui residentes há dezenas de anos, com vasto conhecimento de Macau, da sua economia, dos seus problemas e necessidades e com uma visão de futuro.

Desconfio que o que há dois dias disseram, e cujo link procurei sem sucesso para aqui vos deixar, nunca será traduzido para chinês.

Mas pode ser que o Chefe do Executivo que dentro de dias tomará posse e chega com um capital acumulado de esperança, como não há memória desde 20 de Dezembro de 1999, consiga pedir à TDM a gravação para poder ouvi-la em português e sem intermediários. 

Os portugueses não são todos iguais, não lêem todos pela mesma cartilha, e há alguns que, para além de serem capazes de pensar, se preocupam mais com Macau e com as suas gentes do que com os seus umbigos.

Não custa nada ouvi-los. Ou lê-los. Numa das línguas oficiais.

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ler

por Sérgio de Almeida Correia, em 16.12.24

1-pc_Luis-Mesquita-de-Melo.jpg.webp(créditos: Macau Daily Times)

"(...) Sobre a matéria de facto, cumpre-me dizer que quando comecei a rabiscar estas linhas dei comigo a pensar que a literatura, como alguém disse, talvez seja a única arte em que se pode transgredir sem culpa. A única em que, recuperando o poliptoto que nos idos de 1968 se diz ter sido escrito nas paredes da Sorbonne, “il est interdit d’interdire”.

E em que quando se transgride, ainda assim, se distingue facilmente a boa da má prosa, a escrita banal da que tem o condão de nos transportar para uma realidade paralela que nos obriga a descolar, como se fôssemos à boleia de uma espécie de drone para uma outra dimensão do pensar, da estética, dos sentidos, da cor, do espaço, por vezes da própria história que nos está a ser contada.

“Nas esquinas do olhar”, mantendo o rumo inicialmente traçado pelo autor, a sua marca de água, a açorianeidade tingida de azul profundo, projecta-nos para um modo de ver distinto daquilo que nos comunicou n’ “A humidade dos dias” e em “Navegações e outras errâncias”.

O livro que o Luís Mesquita de Melo escreveu, secamente, à primeira vista é uma viagem. E que viagem.

Uma viagem que caminha entre a realidade e a ficção, tornando difícil a distinção entre ambas, não obstante o aviso que o autor faz ao leitor.

Uma viagem na qual o escritor, na evocação de seu pai, que nunca o leu, antes, porque hoje onde quer que esteja poderá fazê-lo e ficará agradado com o que seus olhos virem, assume a tripla condição de alquimista, autor modernista e autor de versos em prosa. Não necessariamente a de um poeta, apesar de tal como este, na pele do protagonista, também concorrer na frequência das leitarias e cafés de Lisboa.

Álvaro dos Reis, figura maior desta viagem, é um produto da alquimia do autor. Herança de um rico laboratório vivencial que conseguiu fundir numa única personagem o “dandy, burguês e blasé”, Álvaro de Campos, que escrevia por impulso – considerando não valer a pena ter ido ao Oriente e visto a Índia e a China, porque “[a] terra é semelhante e pequenina/ E há só uma maneira de viver” (Opiário), para no fim acabar refugiado no ópio –, com o viajante equilibrado, pacífico e harmonioso que era Ricardo Reis. Aquele que um dia decidiu, disse-nos nas Odes, seguir o seu destino, regar as suas plantas e amar as suas rosas, porque o resto, o que fica, “é a sombra/ De árvores alheias.”

“Nas esquinas do olhar” é uma história que começa e acaba nas ilhas. Ou, se quiserem, em muitas ilhas, ainda quando estas assumem forma continental, mas de onde, apesar disso, só se pode sair por mar em busca de uma nova vida.

Há nesta obra uma demarcação meticulosa do autor/narrador das suas personagens, enquanto minuciosamente as descreve.

Surge-nos, por um lado, uma mulher atraente, discreta, subtil, “impossívelmente bonita”. E do outro lado do mundo chega um Álvaro dos Reis com rugas que “lhe despontam nas esquinas do olhar”. Entre os dois interpõe-se um tipo horroroso, vindo de Fujian, que chega com uma pochete Luís Vuitton e comichões nas virilhas.

Álvaro, que fisicamente é “magricela e esbranquiçado, quase transparente a uma certa luz” (p. 21), causando até alguma repulsa a quem lê, contrapõe-se à jovem Thu. Esta, nem alta nem baixa, possuindo um “corpo perfeito e inquieto”, uma espécie de extraterrestre com uma pele que era “coral recém-nascido no mais puro dos oceanos”. Mulher de “curvas e contracurvas”, é marcada por um olhar “terno com traços de tinta-da-china alongados num sorriso sem trincheiras” (pp.23, 24), cujo áo dài (p. 25) encobria um “corpo esculpido por um cinzel divino” (p. 33).

É o autor quem o diz. Eu limito-me a apreciar a beleza das descrições.

E, pensando na sorte do magricela do Álvaro dos Reis, aqui, junto às águas barrentas e descoloridas que nos rodeiam, soterrado na insalubridade do ar, nos perigos do dengue e da escarlatina, nas salmonelas e gastroenterites colectivas, na confrontação com a realidade, quase sonhando, imagino o que será uma mulher com a beleza de Thu, com pele de coral recém-nascido, e tento adivinhar, sem sucesso, já que Álvaro dos Reis não quis partilhar esse segredo com os leitores, fugindo dessa confissão ao narrador, se na noite do Maxim’s o seu colo cheiraria ao azul atlântico do mar ou a Chanel número 5.

No caso de Thu, o leitor não se deixará iludir por tamanha beleza. Era mulher para pendurar o coração dos homens nos seus piercings quando a música parava, coisa que para os eleitos será bastante dolorosa àquela hora avançada no ambiente pesado de um cabaré como aquele que nos é desvendado pelo autor, de onde exalava, seja lá o que isso for, o “cheiro a donaire parisiense misturado com o cheiro de suor doce embebido em pau-de-sabão caseiro e flores nocturnas”. (pp. 26-29)

Psicologicamente, as personagens desvendam-se nos ambientes que quotidianamente frequentam, nas suas rotinas e nos seus sonhos.

Mais, diria, no confronto entre o dia e a noite. Entre a claridade matinal de Lisboa e a decrepitude do escritório do “Cavalo Branco” onde Álvaro dos Reis “aprendeu a escrever a incerteza da justiça com as palavras certas” (p. 41). Entre a alvura de Thu, que desaparece sob o peso dos néones coloridos, e a fealdade da clientela na noite do Maxim’s.

Mas é ali naquele lugar que se desinfectam as saudades e as tristezas (p. 26) e se vêem aportar homens como o chinês, com “os olhos rasgados de fúria” (p. 41) e tatuagens domesticadas (p. 75), a quem escorre a baba por uma boca de incisivos amarelecidos pelo tabaco e a abundância de chá oolong, ladeados, num quadro cru e quase roçando o asco, por uns caninos dourados (p. 42) que sobressaíam a cada palitar dos dentes, por vezes, recorrendo à “unha multifuncional do dedo mindinho” (pp. 50, 51).

Não vou aqui desvendar a trama. Não é isso o que se pretende. Tampouco irei retirar-vos o prazer da leitura.

O leitor é revisitado pel’ “A humidade dos dias”, que se lhe cola à pele por onde quer que se desloque, instalando-se logo com “a luz húmida da manhã” (p. 14) num carrossel que percorre todas as estações e está sempre presente ao longo do livro: “da confiança do final do Verão” (...) “à baixa pressão do Outono”, na sua “luz oblíqua”(p. 31); manifestando-se tanto nas “cores da Primavera na Avenida da Liberdade” (p. 28), como “na luz outonal de um farol que se perdeu no mar” ou nos “olhos legendados de Verões sem fim”(p. 15), cujos restos são sobrevoados por pássaros num voo sem destino (p. 157).

Ou, ainda, “nos dias frios e cristalinos do Inverno onde as noites são mais azuis” (p. 19), num suceder de imagens, estados, emoções e sensações pontuados pelas diferentes tonalidades da luz e de cores que só se conseguem ver na Europa ou na Ásia, como diz o narrador e acontece com Álvaro dos Reis, quando se vive para além do mar, “deixando atrás os olhos de quem quer viver”, e ver, “para além do mar” (p. 17).

Atrever-me-ia a dizer que os marcos que situam a história, tal como a viagem pelas estações do ano e pelos lugares de memória de Álvaro dos Reis, são os mesmos que atravessam toda a vida do narrador, igualmente protagonista e relator de uma história que se confunde com a personagem por si criada, e que numa imagem plena de simbolismo se desembaraça fisicamente da ilha, “sem data de regresso”, para depois ser temporariamente aprisionado pelos estudos antes de voltar a partir.

Reparar-se-á que a libertação é apenas física, o que torna irrelevante saber quando ocorrerá a viagem de volta. O autor será sempre, é, na sua psicologia um irremediável prisioneiro das ilhas e da estética que delas brota nas suas sete partidas do mundo.

Os lugares de memória, que passarão a ser os nossos, estão incrustados na história da viagem que encetou, qualquer que seja o espaço para onde o autor se movimente, fazendo como que haja uma espécie de transplantação do universo das ilhas para o continente, tão presente nas “fumarolas vulcânicas das castanhas assadas à beira da estrada” (p. 19) e nas, para si, ilhéu desterrado, longínquas “conversas continentais”. E esse movimento de vaivém da memória adquirirá sentido inverso no regresso de Álvaro dos Reis, no encontro do Peter, depois do amor ser enterrado vivo.

O percurso do estudante apartado de casa encerra um sentimento de orfandade, quase de perpétua solidão, representado na figura do “desalojado do Atlântico”, no “sem-abrigo do anticiclone” que se refugiava na escuridão das “sessões tardias do Quarteto”. Sessões que, recorde-se, fizeram as delícias de tantos graças à generosidade e à visão, fica a lembrança, do saudoso Pedro Bandeira Freire.

O narrador veste então a pele do protagonista que logo se confunde com este nas descrições taurinas da Boa-Hora, talvez em homenagem a Laborinho Lúcio e aos exemplos que dava aos seus alunos, ali bem perto, no Limoeiro, nas sessões do Centro de Estudos Judiciários.

Enfim, deixando para trás as “festas de Verão dos santos padroeiros” (p. 21), marcadas pela “roupa a cheirar a América” (idem), em espaços e detalhes a que, compreensivelmente, por eu não ser um Açoriano extraviado da minha geografia, sou estranho, tudo o que Luís Mesquita de Melo escreve vem com uma bússola pessoal que o situa, rodeia e acompanha qualquer que seja a geografia por onde navegue. E que acaba por se revelar nos cheiros e nas estações do ano, assim fazendo com que o leitor viaje entre as suas constelações, os seus espaços de memória, quase que diria, atrevo-me a dizê-lo, autobiográficos, como se quem lê acabasse por ser parte da própria trama.

Mas “Nas esquinas do olhar”, mais do que uma viagem ou um livro em forma de viagem, que isso já era “A humidade dos dias”, talvez involuntariamente, e aqui entramos na ausência de consenso, na provocação, encerra um verdadeiro livro de viagens, de um amante destas e dos grandes espaços.

À semelhança de Bernardo Soares, o autor apresenta-se com o seu Álvaro dos Reis como pertencendo, no que confesso também me revejo, “àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem” e que “não vêem só a multidão” (Livro do Desassossego, Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido...).

Essa é uma virtude atlântica irrepreensível que o autor cultiva e lhe dá horizonte, permitindo-lhe viajar, permanecer e mergulhar, com Álvaro dos Reis ou no lugar do narrador, mais do que nas esquinas do olhar, no interior do mundo que o rodeia.

E depois segue na peugada de Mark Twain (Innocent Abroads, 1869), por exemplo, aqui citado a partir de Theroux, quando este nos recorda que “a viagem é fatal para o preconceito, a intolerância, a estreiteza de espírito, e muitos dos nossos precisam urgentemente dela por causa dessas coisas. Visões largas, sadias e benevolentes de homens e coisas não se podem adquirir vegetando toda a vida num cantinho da Terra”. O autor e Álvaro dos Reis sabem isso.

Em certa medida é o que o Luís Mesquita de Melo escritor faz com este livro, fazendo finalmente viajar muitos leitores, não apenas os que nunca saíram do Faial, que não tendo nascido numa ilha, e ficado prisioneiros de uma qualquer açorianeidade mais ou menos longínqua, viveram na Ásia, fosse em Macau, em Hong Kong, no Vietname, sem nunca a terem conhecido. O autor retira-os do preconceito e oferece-lhes com este seu livro um bilhete que lhes dá acesso a um mundo, riquíssimo nas suas especificidades, que tendo estado ao seu lado nunca foi deles conhecido ou desvendado.

E quando nisto penso legitimamente me perguntarão o que se vê. E quem vejo?

Releia-se então “Le Voyage”, nas Flores do Mal, e aqui encontraremos a criança que amava mapas e selos, desejosa de conhecer um universo igual ao seu apetite.

Também Álvaro dos Reis se apresenta como os verdadeiros viajantes. É esse espírito que surge quando admite partir, ir à procura da sua América para o lado contrário, para oriente, indo para a grande China como um livro em branco (p. 55), na busca de Macau, ante o “assombro da lonjura” (p. 49), “da quinta dimensão da lonjura” (p. 57), “a razão para dizer adeus”.

E é ele quem nos diz, ao contrário do vulgar turista, que “a viagem nunca acaba, só os viajantes se perdem, atirados para fora da estrada, quando morrem ou quando desistem” (p. 49). E não há que temer a partida, pois que quem fica é que se lembra, toda a vida/ Das saudades de quem parte/ E dos olhos de quem morre.

Ele, autor, ou o seu Álvaro dos Reis, poderia ser um deles, um dos que, como R. L. Stevenson, não viajava para ir a parte nenhuma, mas para ir, viajando pela viagem.

Ou, ainda como escreveu Baudelaire, aquele viajante que parte para partir, com o coração leve como se fosse um balão, que nunca se afasta do seu destino, e que sem saber porquê diz sempre “Vamos!”

Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent

Pour partir; cœurs légers, semblables aux ballons,

De leur fatalité jamais ils ne s'écartent,

Et, sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!

E à semelhança do que nos deixou Rimbaud, em “Bateau Ivre”, depois cantado e por tantos amado na voz única de Leo Ferré, também o Álvaro dos Reis protagonista, ou o Luís Mesquita de Melo autor, viajante, velejador, mergulhou nas águas do Poema do Mar, conheceu “os céus crivados de clarões, as trombas,/ Ressacas e marés”, viu o entardecer, viu “[a] Aurora em explosão como um bando de pombas”, e algumas vezes viu “o que o homem quis ver”.  

Sem remorso digo que quase todos os espaços que o autor descreve, em Lisboa, em Macau, quando se refere ao jetfoil Horta, que a tantos de nós transportou, ou quando evoca a velha e terna Saigão, recuperada no Continental, na Ópera, no Rex, no Majestic, coloca-nos em mundos que são, nos foram ou se tornam, para quem não os conheceu, infinitamente familiares.

Alguns tê-los-ão percorrido antes, outros irão percorrê-los na leitura. E sem o sabermos estaremos juntos caminhando, porventura em noites iguais, numa solidão acompanhada na exacta medida da proporção dos nossos dramas e dos nossos sonhos.

E hoje, graças às esquinas do seu olhar, estamos a revivê-los. Tanto nessas imagens como na evocação de Duras, na lindíssima imagem dos amantes percorrendo as ruas sinuosas, connosco leitores, passageiros da Vespa que nos leva por uma imaginária Salerno oriental e ao longo da esmagadora costa amalfitana.

As descrições de uma Macau e de espaços e figuras que desapareceram, caso do polícia sinaleiro no cruzamento da Praia Grande com a Almeida Ribeiro, ao lado de outros que teimosamente sobrevivem, como o Hotel Metrópole, com a chinesa que “cantava afinada dentro de um cheongsam com cores a mais e sílabas a menos” (p. 77), não podia faltar.

Enfim, o leitor é colocado perante lugares, na maioria perdidos no tempo, perenes na lembrança, que terão sido em algum dia familiares a muitos dos que nas décadas de oitenta e de noventa do século XX aqui desembarcaram.

Na memória permanecerão como metas de encontro, boémia, encantamento, paixão, partilha e saudável perdição. Numa noite que era, di-lo o narrador com a autoridade de quem por ela deambulou à boleia de Álvaro dos Reis, não do autor, uma “espécie de caleidoscópio, a cheirar a jogo, sexo e improviso” (p. 76). Ao que me limitaria a acrescentar, por experiência própria, o cheiro a mofo e a tabaco ordinário que se desprendia das alcatifas húmidas, dos veludos coçados e queimados por pontas de cigarro, por vezes pegajosos, tudo agora recuperado e para sempre gravado na escrita apurada e actual do Luís Mesquita de Melo.

Memória que, como a vaga que entra por terra, percorre uma Hong Kong já afundada ao largo do porto de Vitória, e que nesse tempo era “uma janela para o azul” (p. 81), entretanto levada nas asas dos aviões que sobreviveram ao rendilhado que precedia as aterragens de Kai Tak, na solitária herança deixada pelas longas noites de Suzy Wong ou de um qualquer Joe Bananas.

É essa memória que, não obstante a distância, logo faz o autor regressar à imagem de sua casa, único refúgio de onde brota essa belíssima “claridade líquida que encharca os olhos de insularidade viciante”. E prazer.

Tudo por oposição à falta de dimensão atlântica e de cor desta espécie de mar pastoso e cada vez mais fechado que nos rodeia e que propiciou, de tão lamacento, o aparecimento dessa fauna, espelhada na genuína figura do chinês com sangue incolor que geria o apartamento da Areia Preta, numa feliz súmula de agiota, cabeça-de-cobra, bate-fichas e proxeneta, com os “dedos amarelados do tabaco e as unhas esverdeadas dos feltros das mesas de jogo” (p. 136).

Retrato que é também a recuperação de algumas figuras características que por aqui ganharam importância, enriquecendo na exploração de lupanares e cantinas oleosas e malcheirosas, e que por aí, em menor número, é certo, ainda pululam, à civil, quais anões, participando mascarados em regulares desfiles patrióticos, dando cabo de todo o coral, incluindo do mais vetusto, traficando as Thu desta vida e corrompendo sempre que possível quem se atravesse no seu caminho.

De uma forma ou de outra, o autor desdobra-se em vários eus. No ilhéu que parte e no que fica, no contador de histórias, no fadista, no viajante, no músico com quem partilha gins tónicos, atingindo o seu epicentro nas descrições do velejador experiente que na profusão de termos e imagens náuticas sofre com o “gemer constante das escotas nos molinetes de bronze”, assistindo ao “lamuriar do casco que vai estalando os ossos a cada solavanco” (p. 148), num léxico diarístico muito especial e já presente em escritos anteriores, verdadeira expressão do poeta discreto e tímido, refugiado no seu caderno, vagueando por uma prosa rica na sua simplicidade e roupagem – “prosa transatlântica”, chamaram-lhe – , e que a espaços se acomoda nos trechos de poemas que intercalam a narrativa e que o autor vai buscar a Álvaro de Campos, a Pessoa, a Pedro Támen, a O’Neil. Mas também a outros menos convencionais como Ary dos Santos, acima citado, Homem de Mello e Jorge Palma, porventura em resultado dos seus próprios estados de alma.

Indispensável é uma nota ao excelente diário de bordo, espécie de filme autónomo enxertado na narrativa. 

*

E lavrado que está este sumário dos factos e dos argumentos, gostaria de aqui deixar algumas notas finais, isto é, as conclusões, ónus que me foi imposto quando aceitei o convite. Até porque sem conclusões uma peça fica sempre amputada.

Espero, todavia, que a sua brevidade não as torne deficientes ou obscuras, o que seria sempre penoso para quem me trouxe e, em especial, para vós que tendes a bondade de estoicamente me escutar até aqui.

Faço-o, todavia, com a advertência de que não irei completá-las em momento posterior. Nessa altura, o Luís Mesquita de Melo prosador, contista, poeta, viajante,  que sabe que os aguaceiros têm horas, era capaz de atirar borda fora este seu leitor sem esperar por o ver encharcado.

Escrever, como o autor bem sabe, não é fácil e exige o domínio da arte.

O Luís Mesquita de Melo sabe que isso é fundamental. E assume-o, qual Álvaro de Campos, quando nos diz que “escrever é uma espécie de cavalgada a galope procurando palavras escondidas ao acaso pelo deserto” (p.30). Escrever é “a procura incessante da escrita” (pp.55, 56).

Mostrou, antes e de novo neste livro, qual Ricardo Reis, que sabe manejar essa arte com a destreza e a elegância com que o bom esgrimista usa o sabre, o florete ou a espada.

Isso dá-lhe uma responsabilidade acrescida em tudo aquilo que escreve.

Um escritor, ao construir a obra, molda o seu estilo; este passará a ser a sua marca distintiva, uma espécie de tatuagem eterna. Irá transportá-la consigo ao longo da vida.

O leitor, e aqui não fala o amigo nem o advogado que patrocina o prosador, é o primeiro a identificar o estilo do escritor. Dos que têm estilo, evidentemente. E o que aqui está connosco tem estilo próprio, já evidenciado nos livros anteriores.

“Nas esquinas do olhar” é uma extensão do que vem de trás. Lê-se com curiosidade e gosto porque o autor sabe que é a escrita, e neste caso a boa escrita, que procura o escritor (p. 56), e que de qualquer lado se pode ver o Universo, desde que para tal se tenha engenho e nos saibamos colocar na pele do outro. E isso é algo que não depende da altura de cada um.

O Luís Mesquita de Melo é na sua escrita um pouco como aquele a quem Baudelaire perguntava no poema:

"‘Eh! qu'aimes-tu donc, extraordinaire étranger?

- J'aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... là-bas... les merveilleux nuages!"  (L’étranger, Petits poèmes en prose, 1869)

Com este pequeno romance, o Luís Mesquita de Melo entra por direito próprio, ao invés de outros que para aí publicam sem que percebamos por que raio escrevem, ou versejam com erros, na galeria dos escritores que sabem escrever, dos escritores que sabem português. E esta é uma bênção para nós, portugueses, que o lemos.

Como amigo desejo ao Luís escritor que tenha sucesso. Que venda muitos livros.

Como leitor sou bem mais exigente. Quero que o Luís continue a escrever, sem alinhar em modas, por natureza efémeras, nem enfileirar na escrita por atrevimentos woke ou neo-realistas que só banalizam, quando não raro descontextualizam a beleza da escrita, danificando a língua e a fragilidade do coral recém-nascido.

Que o Luís faça como na canção de outro Açoriano, como o Tiago Bettencourt: se o vento empurrar suas velas de algodão, ele que se deixe levar acertando a direcção. E se o vento o impelir para bem longe da razão, que aprenda a seguir acertando a direcção, acertando a direcção.

Escrever, creio, é uma acção que deve ser empreendida, inclusive no sonho, com olhos de ver. Para que a escrita seja o reflexo do que os outros não vêem, e do que o escritor vê e quer que os outros consigam vislumbrar. E compreender. Aí se revela o seu verdadeiro desafio, a beleza e a perenidade da boa escrita. E a boa escrita, a boa literatura, como ele bem sabe, para onde quer que o vento nos leve, é intemporal.

E para isso basta que o Luís Mesquita de Melo mantenha presente o que de mais importante nos ensinou esse outro eu que de nós se emancipou e por aí andou, e ainda anda, guardando sonhos e alimentando rebanhos de tresmalhados sob o nome de Alberto Caeiro, bastando-lhe jogar na estrofe com que termino com o ver e o escrever:

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê,

Nem ver quando se pensa. 

Vai por aí, Luís. Há sempre um livro em branco à espera do futuro."

Macau, 14 de Dezembro de 2024

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antónio

por Sérgio de Almeida Correia, em 15.12.24

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António, figura incontornável do cartoon de expressão portuguesa, tanto a nível interno como internacional, numa feliz iniciativa da SOMOS – Associação de Comunicação de Língua Portuguesa, com o apoio de diversas personalidades e entidades, inaugurou em Macau, no momento em que se celebram os 25 anos da criação da RAEM, uma exposição dos seus trabalhos sob o título "50 anos de humores".

Poder apreciar o seu labor de tantas décadas, dos desenhos mais polémicos aos mais consensuais, constitui uma oportunidade imperdível e um deleite para os olhos pela genialidade e precisão do seu traço.

E quanto à ausência de alguns desenhos, que não viajaram até ao Clube Militar, certamente que ninguém estranhará.

A liberdade de expressão contemplada na Constituição portuguesa de 1976 e acolhida pela Declaração Conjunta Luso-Chinesa de 1987 tem vindo a "evoluir" desde 20 de Dezembro de 1999 e adquiriu contornos específicos.

Esta exposição é a prova da justeza do que alguma rapaziada dizia quando afiançava haver mais liberdade de expressão na RAEM do que aquela que houve até ao último dia da presença colonial portuguesa.

O tempo deu-lhes razão.

E bem mais depressa do que aquilo que todos poderíamos imaginar se comprova que o silêncio não vale o mesmo em todas as latitudes. Nalgumas vale ouro.

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gosto

por Sérgio de Almeida Correia, em 13.12.24

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Abriram-se os jardins, que estão mais desafogados, agradáveis e nalguns casos mais bem cuidados. Compraram-se uns candeeiros esteticamente irrepreensíveis, de baixo consumo, com configuração discreta.

Mas, por outro lado, continua-se a apostar em soluções incompreensíveis que conflituam com o equilíbrio que existia antes. Os novos caixotes de lixo colocados em parques e ao longo das vias públicas são um desses exemplos.

Os pilaretes e as correntes à beira dos passeios eram, e ainda são em algumas ruas e parques, em cor verde escura, condizendo com o que lá está e enquadrando-se com o verde predominante dos canteiros e das plantas. 

De repente deve ter havido alguém que resolveu encomendar novos caixotes e não curou de olhar para o que existia. Passaram a ser de um azul ultramarino electrizante, e assustador.

Desconheço qual tenha sido o critério, se é que houve algum, nem quem tomou a decisão.

Que é mais uma decisão sem sentido e de mau gosto não me parece que restem dúvidas. 

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alfaiate

por Sérgio de Almeida Correia, em 06.12.24

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Durante anos ocupou o seu espaço na Rua de S. Paulo, famosa durante as décadas de oitenta e noventa do século passado pela concentração de lojas de antiguidades, velharias e bugigangas. E também pelos alfaiates. Ele, Meng Cheong, e o vietnamita do outro lado da rua, há muito desaparecido.

Entretanto, os tempos mudaram; muitos desses estabelecimentos mudaram de donos.

A alfaiataria do senhor Meng Cheong manteve-se ao longo de décadas, servindo vasta clientela, na sua maioria altos funcionários da administração colonial e empresários chineses ligados ao imobiliário. 

Era um homem simples, educado, acolhedor, paciente com os cortes mais teimosos, as dobras e os vincos, e sempre sorridente.

Depois da transição, em 1999, com a chegada de outros senhores, de gente ligada às novas concessões de jogo e à hotelaria começou a diversificar, mas também atendeu algumas senhoras que iam até ele com o recorte da fotografia da Vogue à procura do modelo ideal, seguindo a moda dos blazers masculinos.

Diplomatas, políticos e dignitários lusos, fugindo de outros alfaiates mais careiros e mais centrais, aproveitavam uma passagem pela cidade para o procurarem por indicação de alguém e renovarem os guarda-fatos.

Ele ia tirando umas fotografias que depois exibia orgulhoso. Comigo também quis tirar algumas, em especial quando me viu regressar após alguns anos de ausência da terra.

As camisas nunca foram o seu forte devido aos colarinhos demasiado macios e aos esticadores moles que se dobravam com facilidade, embora nos modelos sem mangas tivesse bastantes seguidores em razão dos bons tecidos de algodão que lhe chegavam de Hong Kong.

Com os meus múltiplos afazeres, quando não podia deslocar-me até à sua loja, o senhor Meng Cheong pegava na mota e lá vinha ele até ao meu escritório armado de giz e fita métrica. Trazia-me amostras, tirava-me as medidas, e passados dias entregava-me o resultado. 

Em dada altura chegou a confeccionar togas para alguns advogados, mas as primeiras que dali saíram mais pareciam umas batinas.

Um dia trouxe-lhe um exemplar de Portugal, naquela fazenda pesada e incómoda em que as faziam por lá. Pedi-lhe que me fizesse uma mais leve, por causa do calor, e dias volvidos o senhor Meng Cheong entregou-me uma exactamente igual num tecido fino e com um forro ligeiro, bem mais adaptada às temperaturas desta zona da Ásia. Ainda hoje a tenho.

Nos últimos tempos, que a idade não perdoa, arranjou uns ajudantes trapalhões e as coisas começaram a não lhe sair tão bem. As encomendas tornaram-se cada vez mais raras.  

Quando há dias, passeando pelas imediações da Rua de S. Paulo, vi a fachada despida dos tradicionais caracteres e das letras que lhe identificavam a casa, percebi que o seu ciclo ali chegara ao fim.

O senhor Meng Cheong fez muita gente feliz.

Espero que a saúde não lhe falte, tenha uma boa reforma, acompanhe os netos e mantenha o sorriso de sempre.

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mgm

por Sérgio de Almeida Correia, em 02.12.24

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Numa cidade que necessita urgentemente de ter projectos culturais de dimensão mundial que a projectem internacionalmente, ajudem à diversificação económica e coloquem Macau no roteiro mundial dos grandes museus, por vezes há quem atire uma pedrada para o charco da estagnação, do mau gosto e da frivolidade e mostre que é possível fazer alguma coisa bem feita e com critério.

No MGM Macau, mais concretamente no Poly MGM Museum, está patente ao público uma exposição designada "The Maritime Silk Road – Discover the mystical seas and encounter the treasures of the ancient trade route". A mostra prolongar-se-á até 30 de Setembro de 2025 e o mínimo que se pode dizer dela é que vale a visita.

Em resultado da colaboração com diversos museus e outras instituições, a MGM conseguiu trazer até aos residentes da RAEM e a quem nos visita um conjunto de cerca de duzentas obras de arte de grande valor histórico-cultural focados na antiga rota comercial entre o Ocidente e o Oriente.

Das magníficas cabeças de bronze do Antigo Palácio de Verão, às porcelanas, quadros, pequenos objectos decorativos, vasos, sem esquecer instrumentos de navegação, réplicas de embarcações usadas por navegadores chineses e portugueses, até uma raríssima tapeçaria e obras de arte contemporânea, incluindo algumas que estiveram na Bienal de Veneza, são múltiplos os motivos de interesse e deleite visual.

Destaco aqui, em particular, a tapeçaria Aeneas and Anchises, que data de 1620, da colecção privada da MGM, inspirada na Eneida, de Virgílio, e das quais existirão apenas meia-dúzia em todo o mundo, em colecções privadas, no Metropolitan, em Nova Iorque, e no Museu de Arte de Lyon. A que está em exibição terá sido executada para D. Francisco de Mascarenhas, o primeiro governador de Macau com carácter de permanência, que exerceu mandato entre 1623 e 1626 e para cujo cargo foi nomeado depois das tentativas de ocupação holandesa dos anos anteriores.

Num espaço amplo, cuidado, arranjado com gosto, com bastante informação e iluminação adequada, é possível fazer uma pequena viagem, bastante agradável e instrutiva. Com a vantagem de os bilhetes serem gratuitos. Melhor era impossível.

Sugiro apenas que sejam dadas indicações expressas aos visitantes para se absterem de falar alto, já que ali não existe nenhuma lota, e de colocar as mãos nos expositores, em especial nos vidros. Para ver não é preciso mexer no que está exposto e sempre se evita que as superfícies fiquem todas conspurcadas com impressões digitais e a gordura das manápulas de alguns.    

Não é a primeira vez que a MGM, substituindo-se a quem deveria fazê-lo, presta um serviço público de alto nível aos residentes e à cidade, organizando uma excelente exposição. Creio mesmo que de todas as concessionárias é a MGM aquela que tem conseguido apresentar na área cultural melhores e mais qualificadas propostas, pois tem mostrado possuir curadores competentes e utiliza os recursos de que dispõe com critério.

A sua equipa está de parabéns e só esperemos que possa continuar. Para bem de todos.

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