Voltar ao topo | Alojamento: Blogs do SAPO
Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(créditos: Portugal Resident)
Nem de propósito.
Há dias chamava aqui a vossa atenção para os excessos do turismo de massas e a sua perniciosa influência na vida dos residentes, acelerando a degradação dos locais que visitam e das condições de vida dos residentes.
Pela imprensa britânica fiquei hoje a saber que os habitantes de Sintra, pitoresca e acolhedora vila portuguesa, resolveram tomar posição perante os excessos decorrentes da devassa do seu espaço pelo turismo de massas.
O Express titula que “Locals in 'Europe's most beautiful town' threaten 'guerilla action' over 'hell'”. O tablóide Daily Mail escreve que “Europe's war on tourism has now spread to Portugal and Switzerland.”
O jornal Portugal Resident esclarece que a Associação QSintra divulgou um comunicado com o título “Em defesa de um lugar único” sublinhando que “o turismo é importante para Sintra, mas não pode ser um factor de degradação da paisagem e de despovoamento da zona”, referindo que a vila tem todas as condições para ser um “centro cultural e grande qualidade e projecção mundial”, mas que “há demasiada gente, e demasiados carros e autocarros na vila e a serpentear pelas estradas estreitas.”.
Há dez anos, um artigo no The Guardian elencava 6 razões que impunham uma diferente abordagem deste modelo de turismo, o qual já teria ultrapassado o seu auge. E escrevia-se então que o “turismo industrial de massas baseia-se na montagem, distribuição e consumo de produtos embalados”, em que “a mercantilização do que deveria ser reverenciado como único é ainda agravado pela aplicação de estratégias industriais de redução de custos de homogeneização, de estandardização e de automatização que eliminam ainda mais quaisquer vestígios de diferença, quanto mais de mística (...)”. Depois, referia-se que “as baixas barreiras à entrada e a ausência de regulamentação encorajam o crescimento rápido e a especulação”. O “turismo é um produto perecível”, que “não pode ser armazenado”, acrescentando-se que “os visitantes fazem com que os preços da terra, dos alimentos, da água, da habitação e das infra-estruturas aumentem a um ritmo estreitamente correlacionado com o declínio das margens dos operadores turísticos”, tendo como consequência que “mais turismo significa muitas vezes menos benefícios para as comunidades de acolhimento.”
Um destino turístico não deve ser visto simplesmente como “um recurso a ser explorado, mas como um lugar sagrado a ser protegido e celebrado pela sua singularidade”, defendendo-se, em alternativa, “menos volume, congestionamento, incómodo, destruição e danos”, em prol de um turismo com “mais significado, propósito, valor, paz e realização”, pugnando-se por “não mais, mas melhor” turismo.
Perante o que está acontecer em Sintra e em tantos locais de peregrinação turística por esse mundo, o Turismo de Macau continua na idade da pedra e só se entusiasma com cada vez mais gente a entrar. A primeira página desta manhã do jornal Ponto Final informava-nos de que só este ano, até 25 de Julho, já entraram 19 milhões de turistas (pseudo-turistas) em Macau, representando um crescimento de 38,2%. Num dia entraram 135.000 pessoas numa cidade que tem menos de 700.000 habitantes.
Desconheço se os responsáveis turísticos já circularam por Macau, anónimos, pelos locais de maior concentração de visitantes, mas deviam fazê-lo. Para um residente, até uma simples ida à Cinemateca num sábado à tarde se tornou num pesadelo, tantos são os encontrões que leva, a berraria e a fumarada rua após rua.
O próximo Chefe do Executivo, seja ele qual for, deverá repensar o modelo turístico de Macau. E colocar uma alínea sobre este problema no seu programa de governo.
Se a política de turismo do Tibete fosse idêntica à da RAEM aquele paraíso natural e cultural da humanidade já se teria transformado num parque de diversões de montanha, gerando lixo e poluição em quantidades astronómicas. E estou certo de que ninguém quererá isso em Pequim.
Também em relação a Macau, se os responsáveis locais não conseguem perceber o mal que estão a fazer à cidade, ao seu património, às suas ruas, e à qualidade de vida da maioria dos seus residentes, se não conseguem ver isso e contribuir para a existência de política sustentáveis e de longo prazo para o turismo de Macau, então deverá ser o Governo Central a colocar um travão à falta de racionalidade e bom senso para que se possa valorizar e proteger aquilo que constitui património de todos.
Isso é que seria muito patriótico. Não o caos e a balbúrdia actuais e que terão no futuro, aliás já no presente, custos elevadíssimos (turísticos, ambientais, e na qualidade de vida e na saúde dos residentes e das futuras gerações) para todos os que aqui vivem.

A decisão do presidente Biden de se retirar da corrida presidencial e desistir de concorrer às eleições de Novembro para tentar a renovação do mandato foi a todos os títulos um acto de grande dignidade e nobreza política.
Pressionado por alguns dos membros do seu próprio Partido Democrata, depois de vários deslizes, sempre vistos, tal a frequência, como mais do que simples lapsos, e na sequência de uma desastrosa prestação televisiva no debate de 28/06/2024 com Donald Trump, onde foram notáveis as suas dificuldades e se percebeu que não estava na posse de todas as faculdades de que fez uso nos últimos cinquenta anos da sua vida pública, Joe Biden fez a análise que se impunha e tomou a única decisão que um político de estatura, um homem de Estado e decente podia subscrever, renunciando à reeleição.
Como já alguém escreveu Biden não é "an average Joe".
Com o seu gesto, old Joe relançou as hipóteses de eleição de um presidente da sua área política.
A indicação de Kamala Harris, vice-presidente, como sua escolha para ocupar o lugar mostrou ser uma jogada hábil que ficará agora dependente de confirmação com a sua nomeação como candidata pela convenção do partido e do resultado que as urnas ditarem lá mais para a frente.
A eventual eleição de Kamala, mulher inteligente, com formação académica, reputação profissional intocável e experiência política, cuja campanha para procuradora na Califórnia foi ademais, anteriormente, financiada pelo próprio Trump, que viu nela as qualidades necessárias, pode ser o impulso decisivo para ser dada continuidade ao trabalho do velho Biden, mantendo os Estados Unidos da América nos carris do republicanismo, da herança democrática e devolvendo elevação à política interna e segurança à externa, em prol de um mundo mais justo, mais equilibrado e com menos armas.
Quanto ao mais, vamos aguardar para ver qual a disponibilidade de Trump para se apresentar em debates com Kamala. Ele que disse que seria mais fácil derrotá-la do que a Biden.
Para já, o cafre desavergonhado que irá representar o Partido Republicano deverá começar a ficar preocupado com as sondagens. O velho sem capacidades, posto que qualidades nunca as teve, passou a ser Trump.
E não lhe será fácil, desta vez, agarrar Kamala por ali, por onde ele dizia que seria mais fácil. Esta não é igual a algumas das outras, não está numa situação de dependência. E aprendeu na sua vida profissional a lidar com escroques.

Pego esta manhã na edição do South China Morning Post. Leio o que escreve Shi Jiangtao na página 2. Ainda mais desenvolvidamente na edição online do jornal.
Na imprensa de Macau, nos dias de hoje, seria impensável a publicação desse artigo na imprensa de língua portuguesa. O director, o editor ou chefe de redacção do jornal seria imediatamente chamado à atenção. O articulista seria vetado em futuras edições e muito provavelmente seriam dadas ordens internas nesse sentido.
Apesar de tudo ainda há esta diferença entre Hong Kong e Macau. É a diferença entre uma cidade e uma paróquia.
Ali ainda é possível ousar pensar em chinês e escrever livremente em inglês, sem grandes constrangimentos ou com o risco de logo a seguir se perder o emprego, o cliente ou a coluna no jornal.
Uma pessoa não pode ser punida por pensar livremente e dizer o que pensa. Nem criticada ou rotulada por isso.
É preciso olhar para os factos com olhos de ver.
As pessoas sabem que a sua felicidade não depende dos subsídios à imprensa nem de convites para excursões turísticas. Não é por isso que são menos patriotas. E sabem isso.
Estamos em 22 de Julho e tardam explicações sobre a ausência do Chefe do Executivo (CE), presumivelmente em gozo de férias desde o dia 21 de Junho.
O comunicado divulgado ontem pelo Gabinete de Comunicação Social (GCS) não desfaz as dúvidas dos residentes, nem é suficiente para afastar os rumores que circulam pela cidade.
Dizer que o CE "realizou o [ou "um"?] exame médico de rotina e recebeu cuidados de diagnóstico e terapêutica necessários, e está actualmente em bom estado de saúde" não esclarece nada.
Não é normal que um presidente da república, um primeiro-ministro, um ministro, no caso de Macau o seu CE esteja ausente em "gozo de férias" durante 39 dias seguidos, partindo do princípio de que regressará ao trabalho a 30 de Julho p.f.. A gestão da coisa pública não pára para férias, apesar de estarmos a chegar à silly season.
O CE está em final de mandato. Há ainda uma série de trabalhos em curso, a situação socio-económica da RAEM não está famosa. E mais lá para a frente terá de ser escolhido o CE, que pode até ser o mesmo, que iniciará o próximo mandato.
Estranha-se, por tudo, que sejam tantos os dias de férias, pese embora a explicação que por aí surgiu de que são as "primeiras férias". Esta não colhe.
Toda a gente sabe que, por lei, os trabalhadores "normais" não podem acumular férias durante quatro anos para depois as gozarem todas de seguida.
E também não há trabalhadores que em Macau possam gozar 39 dias de férias seguidos.
Recorde-se que os trabalhadores da Administração Pública têm direito a 22 dias úteis de férias em cada ano civil. E os outros, os que dão o litro nas empresas, nos escritórios, nas fábricas, nos casinos, muitas vezes trabalham dez e doze horas por dia e, também por lei, só têm garantidos "seis dias úteis de férias anuais remuneradas", o que faria corar de vergonha o comunista Mário Nogueira, a bancada do Partido Comunista Português e todos os sindicalistas portugueses, sendo que a maioria dos trabalhadores de Macau terá hoje dez, doze ou, na melhor das situações, se for quadro superior numa concessionária, dezoito dias de férias anuais.
A maioria não tem direito a vinte nem a vinte e dois dias de férias. Nem mesmo nos escritórios de profissionais ditos liberais e nas empresas de alguns que gostam de andar na berlinda social e nas páginas da imprensa, de croquete na mão, escondendo as misérias caseiras e as "dispensas" de trabalhadores agendadas logo no momento da contratação para não perderem a face.
O que está a acontecer com o nosso CE não é normal em nenhuma parte do mundo. A não ser, talvez, na Coreia do Norte ou na Rússia. Ou em países em que falta a liberdade, a imprensa é controlada, e a ausência de transparência e de explicações razoáveis e o secretismo são a pedra de toque da acção dos responsáveis políticos.
Não há nada de vergonhoso ou desonroso em ter um azar, em uma pessoa estar doente ou precisar de tirar uns dias para se tratar. Não é isso que faz perder a face de um dirigente ou é susceptível de gerar instabilidade social.
Só nas autocracias, nas ditaduras e nos estados totalitários é que se pensa assim, e se teme que isso aconteça porque o poder político tem má relação com o povo e só se sente confortável recorrendo à vigilância política dos cidadãos, fazendo uso da força e das ferramentas do aparelho repressivo.
Se o CE da RAEM não está doente e goza de boa saúde, o que todos esperamos e desejamos que seja verdade, o que justifica uma ausência tão prolongada e não anunciada logo desde o começo do primeiro período de férias no mês passado?
E por que razão o primeiro período de férias foi de 13 dias, o segundo de 15 dias, e agora há um terceiro de 10 dias?
Qual a lógica destas prorrogações em final de mandato e quando estão em marcha uma série de procedimentos tendentes à escolha do próximo CE?
Não será com comunicados tão lacónicos como aquele que o GCS divulgou, depois de múltiplas insistências da comunicação social, que se desfazem os rumores que por aí circulam e se coloca um ponto final na especulação.
E muito menos será escondendo a verdade que a opinião pública pode ficar tranquila.
Há que mudar procedimentos e ter uma relação franca e transparente com a população.
Os residentes não são destituídos que devam ser protegidos da verdade. Esta é uma "democracia que funciona".
Os secretismos tolos não radicam na Lei Básica e devem ser deixados para outras latitudes. Menos democráticas, digo eu.

O pai, médico, era amigo de infância da minha mãe, e dos tios todos, e muitas vezes cuidou das maleitas da Mélita de cada vez que dava uma corrida às urgências. No velho Hospital de Cascais.
Do Jorge, cujo Moçambique profundo e África lhe corriam nas veias, recordo-me de o encontrar uma e outra vez, sempre com sorriso rasgado e incansável boa disposição. Médico como o Júlio pai, e como os irmãos, e hoje também as filhas.
Um dia, aproveitando uma ida a um congresso qualquer, aqui na Ásia, apareceu-me mais a D., e lá nos encontrámos todos, mais outros clínicos que vieram e eu fiquei a conhecer. Recordo-me de termos almoçado juntos no Clube e dado uma volta pela cidade e as ilhas de outrora no velhinho Saab 900 turbo.
Anos depois, aproveitando as viagens quinzenais do meu irmão à Madeira, que se prolongaram durante décadas, ofereci-me uns dias de férias e na boleia lá fomos visitá-lo ao Garajau. Apresentou-me, com a felicidade habitual, a arara, a catatua, e a demais bicharada que por lá se alojava.
Rimos muito, até tarde. Noite de Verão, magnífica, inesquecível, com gente amiga e magnânima. Irmãos.
Por essa altura, quase recém-chegado a Portugal, com escritório novo, mas ainda, como sempre andei, à procura de assentar, sem saber muito bem onde, sugeriu que me instalasse por lá. Trabalho não me faltaria. E poderia contar com o apoio do J.L., que estava ao lado e logo assentiu, e do seu escritório. Ainda pensei nisso, nos mergulhos, no peixe-espada, nas espetadas, no Porto Santo. Não se concretizaria.
Falou-me então dos seus projectos. Disse-me para ir conhecer o hotel a Cabo Verde, passar lá uns dias, que o R., nosso elo, já conhecia de outras voltas. Lá fui. Antes de ir, conversando com ele ao telefone, ainda me disse que se precisasse de charutos havia por lá uma caixa sua. Não precisava de levar. Que a pedisse ao pessoal; que me servisse. Assim, sem mais. Não cometi esse abuso. Levava os meus. Trataram-me como se eu fosse um príncipe.
Dias inesquecíveis. Valeram um conjunto de nove pequenas crónicas no Delito de Opinião.*
A hospitalidade do lugar, a doçura das gentes de São Vicente, do Mindelo e da praia de S. Pedro, mais os crepes Suzette, dos melhores que alguma vez me foram dados a provar, e mergulhos de sonho com um divemaster improvisado, que ria muito e sonhava ser “chefe de polícia”, como o tio, “para não ter muito que fazer e levar uma boa vida”, fizeram daquela estada, ainda hoje, uma das mais vivas, queridas e belas recordações.
Com as voltas do mundo nunca mais regressei à Madeira. Era o R. que me ia dando conta dele e das suas andanças.
À distância sabia que me ia lendo. De quando em vez trocávamos uma ou outra mensagem sobre a actualidade política. Nacional e local.
Quando há uns meses o meu irmão me pôs ao corrente da sua situação, percebi que dificilmente voltaria a estar com ele. Em pessoa. Entre gente. E com gente dentro.
Da família aos doentes e aos amigos, mesmo aos que sempre estiveram mais distantes, como será o meu caso, todos sentirão a falta da sua generosidade, da africanidade fraterna, da boa disposição, da gargalhada larga do homem sereno, íntegro, solidário, sempre disponível e leal.
O abraço que faltou, e se perde agora irreversivelmente no tempo, segue por esta via. Também para a D. e para os que de mais perto por lá ficam, certo de que qualquer que seja a picada, a savana ou o mar por onde agora se passeie, não lhe faltará o calor e a alegria de saber que nada foi em vão.
Ficou um pôr-do-sol por partilhar entre um copo e dois dedos de boa conversa. E um charuto por fumar.
Quanto ao charuto, esse, o que não fumámos no Foya Branca, nem juntos na distância, irei tratar disso rapidamente. E recordar a herança dos homens livres e aqueles dias de mar e meros mesmo defronte de sua casa.
Pode ser que ele ao ver-me por aqui, com o olhar perdido no calor e na humidade do tufão que aí vem, e de cortador na mão, também se apreste para acender um Churchill lá em cima.
Até sempre, Jorge.
[* Corrigido, porque foram nove e não oito textos. Ficam aqui aqui os links para quem os queira ler: S. Vicente (1), S. Vicente (2), S. Vicente (3), S. Vicente (4), S. Vicente (5), S. Vicente (6), S. Vicente (7), S. Vicente (8) e S. Vicente (9)]
Quem tiver seguido com atenção as notícias publicadas nas últimas semanas, e tiver ouvido o que disseram o Chefe do Executivo e alguns deputados, dos que ainda se preocupam com o bem-estar da população, verificar-se-á que o esforço de crescimento, desenvolvimento e integração da RAEM na Grande Baía está ter custos elevadíssimos para a maioria dos residentes sem que haja políticas de cariz económico e social que invertam o empobrecimento de Macau e a desvalorização dos seus activos.
Em 2023, verificou-se na RAEM um aumento de 14% na emissão de gases com efeito de estufa. A poluição atmosférica aumentou, tal como aumentaram os poluentes, sendo hoje maior a quantidade de resíduos sólidos descartados per capita. Ao mesmo tempo desceu a quantidade de recolha destes, aumentando-se o consumo de água em 7,1%, bem como o nível de ruído. (PF, 06/06/2023). Metade dos jovens de Macau não pretende casar nem ter filhos nos próximos cinco anos, tornando ainda mais desequilibrada a pirâmide demográfica. O principal motivo prende-se com questões financeiras, “despesas com educação, comida e outros custos, a falta de espaço em casa, assim como a falta de tempo, devido a compromissos profissionais”, sendo que “mais de 60 por cento dos inquiridos apontaram a necessidade de mais apoios económicos e medidas para facilitar a vida familiar” (HM, 07/06/2024).
A deputada Song Pek Kei mostra-se descontente com a qualidade dos professores de Macau (MDT, 12/06/2024). Outros deputados dizem que a retoma económica pós-pandemia não chegou às PME (PF, 13/06/2024). Dias volvidos, o Governo, face à “recuperação económica desequilibrada” – quem será o responsável? –, resolveu aumentar o apoio às PME (PF, 17/06/2024).
As queixas e reclamações subiram no IAM. À poluição ambiental referiam-se 22,9% das queixas (PF 21/06/2024).
Apesar de tudo isso, haverá quem se questione sobre a razão de Macau ser a segunda cidade da Ásia onde a construção é mais cara (21/06/2024), sem que esses valores tenham correspondência na qualidade do que se constrói. É na habitação, mas também nas obras públicas (estações de tratamento de águas, silo das Portas do Cerco, Terminal Marítimo da Taipa, Metro Ligeiro, pontes, estradas, et cetera).
De caminho, ainda em Junho, em pleno início da época balnear, são as praias de Hac Sa e Cheoc Van, as únicas que temos, que são objecto de interdição (PF, 24/06/2024, MDT 25/06/2024), de novo devido à má qualidade da água e para evitar mais doenças.
O número de acidentes de viação, numa micro-região com poucas estradas, milhares de câmaras instaladas e insanos limites máximos de velocidade, bate recordes, sem que se saiba em quantos desses acidentes participaram veículos e condutores vindos do Interior e de Hong Kong ao abrigo das generosas políticas de circulação e intercâmbio de veículos (PF, 25/06/2024).
O Macau Daily Times avança que as receitas dos restaurantes caíram 12% em Abril, valor que é de 23% para os de comida ocidental, por comparação com o ano passado, e que as vendas a retalho caíram 32,2% (MDT 21/06/2024).
No início de Julho ficámos a saber que as receitas dos casinos caíram 12,4%. Em 60 anos, pela primeira vez, não há hydrofoils a operar entre Macau e HK (MDT, 02/07/2024).
A Caritas dá-nos conta de ter atendido 7.000 pedidos de ajuda nos primeiros seis meses do ano (PF, 04/07/2024), enquanto as consultas externas de saúde mental aumentaram 29,8% face a 2022 (PF, 09/07/2024).
O presidente da Associação dos Vendilhões queixa-se da redução de bancas no Mercado Municipal da Horta da Mitra e diz que “após meio ano da reabertura (...), os negócios se mantiveram como antes, não beneficiando das melhorias nas instalações”. O Mercado de Tamagnini Barbosa está votado ao abandono, com 70% das bancas vazias (HM, 10/07/2024 online). Uma reportagem e fotos no MDT mostram que no centro da cidade, no Mercado de S. Domingos, também aumentou o número de bancas vazias. A razão, dizem, é que se tornou impossível competir com as lojas de vegetais e frutas detidas por grandes empresas do Interior do país que usam espaços comerciais, não podendo os pequenos vendedores competir com os horários daquelas em virtude de os mercados terem de fechar às 19:00 (MDT, 12/07/2024).
O crédito malparado duplicou nos últimos doze meses (HM, 08/05/2024), supera 48 mil milhões de patacas após quinze meses de aumento, tendo crescido 13 vezes desde a pandemia (JTM, 10/07/2024). Já alguém foi preso? A culpa foi dos junkets?
Podia continuar. Ou ir mais atrás. Mas fiquemos por aqui e foquemo-nos no que disse o presidente da Associação para a Promoção do Desenvolvimento Regional de Macau. Chan Tak Seng defende a proibição das excursões de baixo custo, por considerar que acrescentam muito pouco à economia local (Plataforma, 09/07/2024). Parece fazer sentido. Um relatório da Asia Tourism Exchange prevê um aumento de 33,9% no número de turistas para este ano que vêm do interior da China (PF, 16/07/2024).
Por todo o mundo são criadas barreiras a um certo “turismo” desenfreado e de baixo valor. No Japão impuseram-se limites ao número de visitantes do Monte Fuji, foram criadas barreiras visuais para afastar turistas que se concentram em determinados locais e limitada a circulação em certos bairros típicos de Quioto para que as gueixas e os residentes não sejam perturbados no seu quotidiano. Veneza passou a cobrar uma taxa aos turistas, o mesmo acontecendo em Bali e no Belize. É preciso proteger os locais turísticos, o património natural e o edificado e a qualidade de vida de quem lá vive.
Os excessos do turismo de massas só contribuem para infernizar a vida dos residentes e não constituem qualquer mais-valia. Em pouco tempo degradam seriamente os locais que visitam e a receita gerada não compensa os prejuízos causados. Macau é um bom exemplo disso.
Porém, aqui continua a febre estatística. É como se não houvesse amanhã. Não há dia em que a comunicação social e a Direcção dos Serviços de Turismo não estejam preocupados em aumentar os números dos que entram em Macau. Quando se deviam preocupar com o aumento da qualidade da oferta e do nível de quem aqui entra. A única política conhecida é a do quanto mais gente melhor. Ninguém quer saber da degradação das condições de vida dos residentes, da má qualidade de muita oferta, do mau serviço oferecido em muitos locais, nem do lixo gerado.
O que interessa é ter a cidade cheia, atulhada de veículos de dupla e tripla matrícula e de carrinhas e autocarros velhos, com os passeios e as ruas sem condições de circulação, sem lugares de estacionamento que acompanhem o crescimento do número de veículos de duas e quatro rodas. Temos veículos pesados e atrelados estacionados nas vias públicas nas imediações de hotéis super-luxuosos. Esses é que deviam ir estacionar a Hengqin, onde há mais espaço disponível.
O problema é que o aumento de rebanhos de circulantes, que praticamente não efectuam consumos decentes e vêm infestar as zonas pedonais, encher ruas e alguns poucos estabelecimentos, que são sempre os mesmos, onde fazem fila para comprar tripas, biscoitos, carne fumada, sopas de fitas e maus pastéis de nata, que depois vão comendo pela rua e de cócoras pelas esquinas do NAPE, da Rua do Cunha, na marginal de Coloane, nas imediações do Centro Cultural ou nas proximidades das Ruínas de S. Paulo, largando caixas de cartão e copos vazios na beira dos passeios, não é espectáculo digno de ser visto num “Centro Mundial e Turismo e Lazer”.
Os pequenos estabelecimentos e restaurantes, mesmo em hotéis de luxo no Cotai, queixam-se da falta de freguesia e dos baixos consumos de quem lá vai. E alguns passaram a impor “dress code”, dando conta disso nas reservas que se efectuam, proibindo calções, bonés, t-shirts de alças, fatos de treino e indumentárias de igual calibre, bem ao contrário de um conhecido clube da cidade que tem vindo a aliviar restrições e deve considerar que assim é que é bom para se poder encher o estabelecimento de labregos geradores de receita.
As concessionárias de jogo trabalham cada uma para o seu lado, seja na promoção de concertos, espectáculos desportivos, musicais ou na organização de exposições. Não sabem exactamente o que têm de fazer porque não existem directivas claras do Governo nessa matéria. Sabem apenas que têm de fazer e mostrar serviço. Mas qual o resultado disso? Quais os benefícios práticos a médio e longo prazo em termos de diversificação, emprego local e fidelização de boa clientela?
Em vez de se apostar numa planificação global, na junção de esforços de todas as concessionárias para se criar um museu de dimensão mundial, um festival de jazz ou de música, do mundo, pop ou rock, que perdure, ou um torneio de ténis que entre e se consolide anualmente no circuito mundial ATP, organizam-se festivais gastronómicos ao ar livre com material descartável, muito calor e níveis de humidade de 90%, multiplicando-se as iniciativas avulsas sem qualquer fio condutor ou garantia de continuidade. É tudo feito a eito, sem critério que se perceba.
Querem os turistas a dormir em Hengqin, os residentes a circular pela Grande Baía, tirando partindo do novo regime de vistos, os veículos a usar as quotas disponíveis dos dois lados da fronteira, mas depois pede-se aos residentes para ficarem em casa nos feriados e fins-de-semana e comerem nos restaurantes da zona norte quando toda a gente sabe que do outro lado a família come melhor e por metade do preço. Porque será?
A disparidade de preços entre supermercados em relação aos mesmo produtos é brutal. Dos iogurtes às framboesas.
Assistimos nos últimos anos ao empobrecimento contínuo de Macau, ao desaparecimento do pequeno comércio, de lojas tradicionais – só se abrem farmácias, lojas de penhores, tascas, casas de massagens, relojoarias e joalharias –, à falência de inúmeros estabelecimentos, à desvalorização do património imobiliário. Só há lojas de luxo e tendinhas para pelintras.
Há arquitectos que se queixam da destruição de obras reconhecidas dos últimos anos da administração portuguesa. Assiste-se à contínua degradação das condições de circulação e de vida dos residentes (a Praça Ferreira do Amaral, junto ao Hotel Lisboa, que devia ser uma zona de referência, está transformada numa central de autocarros), tudo pelo preço de uma maior segurança e de uma integração mal pensada e que indo a reboque da propaganda frentista até já obriga os frentistas da Assembleia Legislativa a queixarem-se das políticas governativas e a fazerem exigências nunca antes ouvidas.
Não é a mesma coisa que acabar com actas coladas em livros de actas ou deixar de habilitar os mortos. É um pouco mais do que isso que está em causa.
Seria bom que os candidatos que se queiram apresentar à eleição, melhor seria chamar-lhe nomeação, do próximo Chefe do Executivo o façam, seja o actual ou outros, com um programa devidamente pensado e estruturado. Para que não se repita o que aconteceu da última vez. E muitos não fiquem com a ideia de que foi tudo preparado em cima do joelho e por quem nem sequer pensou antecipadamente nos problemas e nas eventuais soluções para aqueles quando apresentou a candidatura.
Convém recordar, agora que a elite que manda está reunida em Pequim, o que antes se passou por aqui, perante o aplauso dos oligarcas, dos sabujos e dos sem-pátria da praxe, para que não se cometam os mesmos erros. Com ou sem pandemia.

Não sei como, menos ainda em que circunstâncias; se por ouvir uma melodia, ver uma foto, ou simplesmente escutar o seu nome, numa daquelas tardes quase-noite em que me estirava nas almofadas, junto ao móvel gira-discos da Schaub-Lorenz, na velha casa da Avenida da República, na Beira, onde passei alguns dos dias mais felizes da minha infância, é que ela me foi apresentada.
Talvez não tivesse então mais do que oito ou nove anos, mas confesso que já nessa altura vivia apaixonado. Paixões tão duradouras, sensíveis, inebriantes, que me acompanharam ao longo da vida, deixando-me alternar intensamente entre umas e outras, sem que alguma vez me arrependesse da inconstância dos dias, ou visse nisso, por muito incompreensível que fosse para os outros que me escutassem, um lampejo reprimível de promiscuidade sentimental.
Não sei mesmo, porque também nunca perguntei, e já cá não está quem me poderia esclarecer, qual a música que tocava quando nasci. Lá em casa. Não creio que seja importante quando a maior parte delas surgiu, naquilo que me respeita, depois de eu já estar deste lado. Do lado em que tudo acontece. Do lado em que se sente. E se vive.
Em pequenos discos de vinil de 45 rpm, ou nos maiores de 33, sei que fui escutando melodias que nunca me deixariam perder o norte, nem se perderiam na voragem dos anos.
Mais tarde, quando para lá da pura paixão pela voz, e da brincadeira descomprometida, comecei a aperceber-me da realidade circundante, e à medida que conhecia outros nomes, outros sons e outras líricas, me perdia nas páginas dos jornais e revistas que chegavam, vendo o que noutras latitudes acontecia, apercebi-me da sua verdadeira dimensão, apesar de tudo ofuscada por uma época que valorizava mais a malícia de Gina ou o atrevimento voluptuoso da Bardot.
Talvez por essa razão, espreitando os “esses” da Loren, da Welch, da Ekberg, da Schneider, da Bisset, de tantas outras, fiquei ainda mais fascinado com a figura feminina e especialmente discreta e elegante, com toda aquela beleza etérea, por vezes tão infantil no olhar, que parecia bem mais alta do que o seu metro e setenta e dois, perdida numa voz que por vezes me soava estupidamente melodiosa, cativante, ao mesmo tempo perigosa, de onde saíam murmúrios de sonhos e paixões a quem começava a construir os seus sem ainda saber por onde o conduziriam.
Creio que para lá dos discos e de um ou outro documentário ou gravação que vi, foi com as primeiras fotos, anos mais tarde, e com a visualização do consagrado filme de John Frankheimer, Grand Prix, de 1966, que sem ser nenhuma obra-prima arrecadou três Óscares, e em que ela contracena ao lado de James Garner, do incontornável Yves Montand (Oh, je voudrais tant que tu te souviennes / Des jours heureux où nous étions amis / En ce temps-là la vie était plus belle / Et le Soleil plus brûlant qu'aujourd'hui/Les feuilles mortes se ramassent à la pelle / Tu vois, je n'ai pas oublié / Les feuilles mortes se ramassent à la pelle / Les souvenirs et les regrets aussi /Et le vent du nord les emporte / Dans la nuit froide de l'oubli / Tu vois, je n'ai pas oublié / La chanson que tu me chantais ...), de Antònio Sabato, de Jessica Walker e outros, numa recriação ficcionada do Mundial de F1, as suas imagens e a proximidade às pistas e à velocidade contribuíram em muito para o fascínio que já então em mim crescia.
Durante anos continuei a ouvi-la, a ver as suas fotografias, a ler as suas histórias – Mick Jagger por alguma razão considerou-a o seu “ideal feminino”; Bob Dylan perdeu-se de amores e dedicou-lhe um poema na contracapa do seu álbum Another Side of Bob Dylan; tão depressa era admirada por David Bowie, Morrissey, Brian Jones ou, mais tarde, por Iggy Pop – “No one can sing like Françoise”(1997), como servia de musa inspiradora de poemas de Jacques Prévert e de Montalbán, ou surgia como convidada de Salvador Dalí, junto de quem, em 1968, passou uma semana em Cadaqués.
Havia ali qualquer coisa de absolutamente extraordinário, algo de transcendente, que fazia de mim, já adolescente, um miúdo eternamente apaixonado pela sua figura – a tal “silhueta extraterrestre”, sublimada por Yves-Saint Laurent e Paco Rabanne, escrevia-se há umas semanas no Paris Match, dentro da imagem “longilínea e andrógina” que no seu próprio entender lhe deu a sorte de se inserir no ideal de beleza de André Courrèges.
Em Dezembro de 1963 era ela uma das convidadas na inauguração da boutique de Ted Lapidus BJ, em Paris, sentada na primeira fila entre Charles Aznavour e Jean-Claude Brialy. Olho para a fotografia a preto e branco e sinto a sua voz inaudível na lonjura do tempo, apenas imaginada nos diálogos da sua discreta reserva com os interlocutores mais próximos.
Ali, como em muitas outras ocasiões, o olhar de relance e fugidio para a objectiva parece delimitar o seu espaço reservado, dentro de uma elegância impossível de disfarçar, perfumada por um charme tão distante quanto ebriático que fazia as delícias de quem com ela teve a sorte de se cruzar num café de Paris, numa sessão de autógrafos em Bruxelas, vendo-a passear a sua classe pela Gala da Seda, num concerto em Birmingham, encantando numa mini-saia londrina ou escapando-se por uma viela nas imediações de uma qualquer 5.ª Avenida na Nova Iorque de culto de Andy Warhol.
Depois do lançamento do seu primeiro disco, em Outubro de 1962, não obstante a sua timidez, pisaria pela primeira vez o palco do Olympia, num espectáculo de Richard Anthony, onde a obrigaram a voltar sete vezes para agradecer os aplausos, num sucesso que seria complementado ao longo da vida com mais três dezenas de álbuns, numa carreira em que ainda encontrou tempo para se dedicar, para lá das canções, à escrita de livros (Le désespoir des singes et autres bagatelles, Un cadeau du ciel, L' amour fou, Chansons sur toi et nous, Avis non autorisés) e à astrologia.
Da sua relação com Jacques Dutronc, que conhece em 1965, nasceu o seu único filho, Thomas, em 1973, acabando por se casar com aquele somente em 1981, numa relação que se revelaria conturbada e perturbada pelas relações dele com outras mulheres, como aconteceu com Romy Schneider. Chegaram a viver no mesmo imóvel em pisos separados, mas a relação formalmente nunca se quebraria, mesmo depois dela lhe ter dito “un jour, au sujet d’une autre relation, qu’il se devait s’engager”, ao que ele lhe respondeu “je ne divorcerai jamais”. E assim ficaram.
Apesar de sofrer de um linfoma desde 2004, que muito a terá debilitado, continuou a aparecer – até que a radioterapia lhe anulou o funcionamento das glândulas salivares, impedindo-lhe o uso da voz e com efeitos sobre a audição –, e a intervir publicamente sobre várias questões sociais e políticas que nos últimos anos fracturaram o seu país.
Embora nascida numa Paris ainda ocupada, no seio de uma família que esteve sempre próximo do gaullismo, e identificada à direita, não raro esteve em desacordo com esta, não sendo poucos, aliás, os seus amigos de esquerda. Nem tudo o que lhe chegava de um lado ou de outro a segurava. Feroz opositora de Hollande, mais recentemente ter-se-á definido como centrista para terminar os seus dias preocupada com as questões da ecologia. A sua aversão ao movimento feminista não deixou de fazer dela uma defensora do aborto legal.
Em 2023 a Rolling Stone incluiu-a entre as 200 melhores vozes de sempre, figurando como única representante de França nessa lista. Não será difícil de se perceber porquê sabendo-se que também foi ela quem esteve por detrás de algumas das composições de Serge Gainsbourg, legando-nos o genial “Comment te dire adieu”, de Etiénne Daho, de Julien Clerc ou como referência, o que até há pouco desconhecia, do grupo Cigarrettes After Sex.
Quando há um mês, ao chegar a Paris, fui confrontado com a notícia da sua morte, senti que havia uma parte de mim, da infância e adolescência à vida adulta, que com ela se evanescia. No ar, no asfalto, em muitas imagens que por esses dias me vieram à memória, até na chuva que durante horas caiu sobre o circuito de La Sarthe, a sua imagem não deixou de surgir.
Embora, como ela disse, "la mort n’est que celle du corps, lequel est d’essence matérielle", e que se possa admitir, "en mourant, le corps libère l’âme qui est d’essence spirituelle", custa sempre acreditar, por muitos anos que passem, que alguma vez será possível deixar de recordar aquele rosto, aquela figura tão discreta, a ternura infinita que tantas vezes víamos emanar dos seus gestos e de alguns sussurros carinhosos.
Outros, à ternura, também foram capazes de imortalizá-la. Cada um no seu estilo, pelas palavras, quase sempre pelo génio ou pela beleza. Alguns com uma avassaladora, Brel era mesmo dilacerante, presença em palco. Outros foram mais fugazes, distantes e ausentes na interpretação. A todos eles vamos continuar a ouvir. Em francês. Passando-os, se possível bem, às próximas gerações. Para que outros possam continuar a escutá-los, seguindo essas composições. E outras a compor e a cantar como tão bem ela fez. Mas nenhum deles, ou delas, será capaz de fazê-lo com a mesma elegância, com a mesma entrega.
Não ousarei dizer, como Françoise, que “toute ma vie, j'ai été à l'affût des belles melodies”, embora seja verdade que não sendo insensível, muito menos à beleza que daquelas se liberta, ao escutá-las também me sinto elevado a um sétimo céu muito pessoal. Pela dimensão da beleza que fica gravada.
Mas em rigor, bem mais importante do que tudo isso seria neste momento deixar aqui esta breve nota.
Como se ainda fosse um qualquer adolescente que um dia se apaixonou pela voz e pela imagem da mulher que estava do outro lado do disco. E que aqui e ali a foi encontrando ao longo da vida. Naquela que era a sua figura, ou transformada numa outra, mais próxima, nas situações menos esperadas, nas mais diversas circunstâncias com que nos cruzámos. E que, afinal, em tantos momentos avulsos me acompanhou, e acompanha, vida fora, em casa, na rua, no carro, entre dois dedos de conversa. Enquanto houver memória. E um pouco de ternura que nos aconchegue os dias.
Há pessoas, gente que não conhecemos, com quem nunca privamos, de quem não podemos deixar de nos despedir. A Hardy é uma delas.
Não o pude fazer lá, há um mês, quando logo pela manhã me chegou a edição do Le Maine Libre. Nem depois quando tantos a recordaram.
Tinha de o fazer agora. Eu não podia deixar de lhe dizer adeus.

“La grande difficulté de nos dirigeants réside dans la prise de décision. (…) Le pouvoir est rarement capable de faire ce qu’il sait qui faudrait faire. D’où cette tentation de l’autoritarisme que l’on voir poindre, autre face de cette impuissance. L’art politique ne peut se contenter de manier l’illusion, et la communication ne peut tenir lieu de politique. La théâtralisation a ses limites.” Sébastien Le Fol, Les Lieux du Pouvoir – Une histoire secrète et intime de la politique, Préface.
Para o fim guardei o melhor bocado – um bom livro é muito mais do que um simples conjunto de folhas encadernadas – de mais uma das minhas peregrinações à belíssima região do Sarthe. E este é bem mais do que um livro. É uma obra de arte. Tanto numa perspectiva política como sociológica e literária.
Tudo começou, de acordo com o relato de Sébastien Le Fol, por ocasião do quarto centenário do Castelo de Versalhes, em 2023. O castelo continua a ser um instrumento de poder, usado em ocasiões solenes para impressionar os altos dignitários estrangeiros que visitam França. Mais do que um simples monumento é também, como ele escreve, símbolo e instrumento de poder. Que, todavia, ao longo dos anos foi perdendo para outros locais essa ligação umbilical ao mando, embora o país no seu funcionamento institucional e na sua organização social continue a reter muito de monárquico. A “liturgia real continua a impregnar os ritos republicanos” num país em que “o Estado precedeu a nação”, diz ele, o que não deixará de ser discutível.
E socorrendo-se do extraordinário trabalho de direcção do historiador Pierre Nora, na monumental obra Les Lieux de Mémoire, editado pela Gallimard, entre 1984 e 1992, em três tomos (La République, La Nation, Les France) e que no total soma, creio, mais de meia-dúzia de volumes onde são passados em revista, a partir da topografia, dos monumentos, dos símbolos, a memória histórica e colectiva, que será aquilo que garante a continuidade através dos tempos e estabelece a ligação entre o passado e o presente e nos permite compreender hoje o tempo que vivemos, Sébastien Le Fol resolveu seleccionar um conjunto de lugares onde se inscreve o exercício e a representação da política francesa, a sua geografia subliminar, para fazer um estudo sobre a geografia do poder republicano, sobre os “altos lugares da sacralidade institucional”, levando em consideração, como afirma, a evolução galopante dos costumes, a tirania do imediato, a ausência ou o recuo de uma perspectiva crítica destes novos tempos.
Esse estudo, que também se inspirou na herança de Marc Bloch, outra das referências, realizou-se ao jeito de vinte e um ensaios escritos pelas melhores, digo eu, “plumes familières des arcanes du pouvoir”: historiadores, jornalistas, “antigos conselheiros do príncipe”, espectadores comprometidos que fazendo um trabalho de entomologista foram capazes de manter um olhar crítico, lúcido, e ao mesmo tempo humorístico e irónico sobre a comédia do poder e a ritualização republicana.
Solemn de Royer, do Le Monde, escreve sobre o Eliseu, Emmanuel Hecht sobre o Quay D’Orsay, Tugdual Denis sobre Matignon, Jean Guisnel sobre o subterrâneo Posto de Comando Júpiter, símbolo da independência nacional e onde se encontra o botão vermelho da potência nuclear. O próprio Sebastien Le Fol apresenta um ensaio sobre a tribuna do 14 de Julho, especialmente interessante com o Tour na estrada, a aproximação da segunda volta das eleições legislativas e a próxima celebração da tomada da Bastilha.
Mas também há ensaios sobre a tribuna do Stade de France, em Saint-Denis, de Florence Barraco, sobre o Forte de Brégançon, de onde emergiu a figura bronzeada de Chirac, naquele momento encarnando o corpo físico do poder republicano em calções de banho, e Souzy-la-Briche, ou “Souzy-la-Sécrète”, este último escrito por Laureline Dupont, sobre o refúgio onde entre 1982 e 1995 Miterrand levou a sua vida secreta com Anne Pingeot, a jovem que conheceu quando ela tinha 14 anos, depois seduzida aos 20, e de cuja união nasceu a filha Mazarine, em 1974, apenas reconhecida pelo pai dez anos depois.
Sobre o avião de onde a França continua a ser governada durante as viagens presidenciais debruça-se Nathalie Schuck.
Outros consagrados mergulham sobre o Louvre (Adrien Goetz), o bairro de Saint-Germain-des-Prés (Marie-Laure Delorme), a Brasserie Lipp (Nicolas d’Estienne d’Orves), que a política também se faz com os estômagos bem aconchegados, os clubes – Le Siècle, Le Jockey e mais alguns –, que no Ancien Régime serviram como laboratórios de ideias revolucionárias, aqui apresentados pela pena do escritor e crítico literário Louis-Henri de La Rochefoucault; ainda sobre a incontornável ENA (Maria-Amélie Lombard-Latune), os meandros de Bruxelas (Luc de Barochez); enfim, sem esquecer o hospital militar de Val-de-Grâce (Élise Karlin), Notre-Dame (Jérome Cordelier), La cour d’honneur des Invalides (Sylvain Fort), as caçadas presidenciais em Ramboilluet e nos milhares de hectares do santuário de Chambord, apesar de todos os ventos que sopram. Afinal, como conclui Bruno de Cessole, porque “les regimes et les présidents passent, les chasses perdurent”, enquanto nos traz à memória o príncipe de Salina n’O Leopardo.
Pela módica quantia de € 22, a editora Perrin e Sébastien Le Fol colocaram cá fora um livro que é uma verdadeira bíblia dos lugares da aristocracia do poder republicano em França.
Um tratado de história contemporânea que desvenda mistérios e segredos das mulheres e dos homens que governaram, e governam, um país e uma nação com os quais Portugal e os portugueses têm profundas ligações, tanto em bons como em maus momentos, para além dos futebolísticos, e que apesar de todas as revoluções, sobressaltos e confusões mais recentes continua a exercer um apelo irresistível sobre quem queira entender os meandros da política, os dias que correm, e não apenas em França, os espíritos que hoje nos governam, e, já agora, subir um pouco acima da linha de água da mediocridade em que estamos atolados, e cultivar-se.
Esta é a minha sugestão de leitura obrigatória para este Verão. Para todos.
Mais, é verdade, para quem ainda se preocupa com a nossa vida pública, com a que está para lá das primeiras páginas dos jornais, dos dramalhões dos penaltis do Euro, das lágrimas do CR7, dos desvarios de Belém e do dr. Nuno, e se interessa pela forma como o poder político é exercido.
Também para aquela petulante magistratura de vão de escada que faz as delícias dos tablóides; a que não aprendeu antes, nem em casa, nem na escola nem na vida, que considera que um político ser convidado para um almoço de trinta guinéus é um forte indício de ser corrupto.
Recomenda-se, em especial, a sua leitura à nossa elite política.
Pelo menos aos que dentro desta saibam ler, tenham um nível de literacia política aceitável para os lugares que ocupam e, já que não está traduzido para português, por agora, que possuam um domínio razoável da língua francesa.
Se for esse o caso, como a mim sempre acontece quando leio alguém ou algo que me enriqueça o espírito e a mente, certamente que aprenderão, já nem digo muitas, algumas coisas. Coisas que um dia, quem sabe, poderão vir a ser úteis para todos nós.
Em português, evidentemente. Que aqui ninguém os quer ouvir a perorar em francês, nem precisa de vê-los a comer um veadinho na Lipp, ou a visitar o Lasserre ou o Laurent. Para isso já nos bastou o dr. Mário. Que percebia dessas coisas.
E também, ultimamente, um certo filósofo de alumínio.
Ah!, e já me esquecia, imperdoável, o sempre patusco e bem-humorado do Isaltino.
Boa leitura.

Há dias tinha-vos referido que iria aqui trazer mais dois livros recentes que me chegaram às mãos. Hoje falar-vos-ei do segundo.
É de novo sobre os meandros do poder político numa França que ontem teve a primeira volta da suas inesperadas eleições legislativas, convocadas em consequência do terramoto político das eleições europeias de há um mês.
Ainda ninguém sabe o que se irá passar, que ilações irá o Presidente retirar dos resultados de ontem, e daqueles que forem conhecidos dentro de mais alguns dias em função das segundas-voltas. Nem o que daqui para a frente se irá passar naquela "monarquia republicana", tendo em vista as próximas eleições presidenciais, o crescimento da extrema-direita lepenista e os números já conhecidos, de onde ressalta a notável taxa de afluência às urnas, superior a 66 %, e que desde 1997 não atingia valores tão elevados, no que não poderá deixar de ser lido como um sinal da preocupação e do interesse com que os franceses olham para o futuro.
Trata-se de um ensaio, ou novela ensaística, como admite o autor, de 1959 até 2023, sobre o relacionamento entre presidentes da República e primeiros-ministros em França. Uma espécie da história da coabitação dos casais executivos desde o nascimento da V República. Da relação entre De Gaulle e Michel Debré ao convívio entre Macron e Élisabeth Borne.
O autor, Patrice Duhamel, inspirou-se em Jean de La Fontaine e numa das suas fábulas, em razão de um diálogo entre Macron e Fabrice Lucchini por ocasião do quarto centenário do autor das histórias, para passá-las em revista e escolher uma fábula correspondente à relação pessoal e política entre os membros de cada um desses casais.
Oito presidentes, vinte e quatro primeiros-ministros que o autor conheceu e com quem conviveu nas mais diversas circunstâncias, em momentos mais oficiais, outros mais privados, e nos quais encontrou motivos para recordar as suas memórias e relatar episódios dignos de significado e dimensão política. De desencontros, inimizades, desconfianças, desilusões; de relações que se anteviam à partida cordiais e sem levantar grandes ondas, entretanto degeneradas em conflitos pessoais, mas igualmente de comédias, de relações de agilidade, de doçura, por vezes mesmo de amizade e empatia, e de laços sólidos e complementares, que a vida, e a política em particular, não se faz só de dramas.
No total são catorze capítulos numa escrita clara, elegante, pontuada pelo humor, recheada de episódios insólitos vividos por alguém que foi jornalista especializado em assuntos políticos, editor-chefe, director geral da Radio France e depois da France Télevisions, e que sozinho ou em co-autoria escreveu algumas das mais curiosas páginas sobre o que se passa no Eliseu e na vida política do seu país.
O livro de Duhamel, "Le Chat et Le Renard - Presidents er Premier ministres: deux ou trois choses que je sais d'eux..." foi editado pelas Éditions de l'Observatoire, tem cerca de 300 páginas e esta segunda edição datada de Fevereiro de 2024 custou-me 23 Euros, numa livraria do Centro Comercial do Quartier des Jacobins, em Le Mans.