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sobretalento

por Sérgio de Almeida Correia, em 27.08.23

(créditos: Macau Daily Times)

Quando tomou posse, o Secretário para os Transportes elogiou-lhe a coragem. O empossado logo mostrou a sua determinação, esclarecendo ao que vinha. Referiu estar preparado para as críticas e para "aliviar as actuais pressões nas vias". Não disse quais, mas também avisou que seria bom estarmos todos preparados para algumas medidas de "aperfeiçoamento do trânsito" que poderiam vir a afectar os hábitos ou as formas de deslocação de certos cidadãos”.

Decorridos oito anos, o empossado, responsável pela Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT), continua com a mesma determinação. Já não a "aperfeiçoar o trânsito", mas patrioticamente a justificar oito anos, sim, oito anos, de bom desempenho.

As pessoas queixam-se de que as estradas estão hoje piores do que há oito anos, de que os transportes estão mais difíceis, mais morosos, e que circulam mais cheios. Dizem que há cada vez mais carros em circulação, que muitos são veículos pesados vindos das regiões vizinhas ao abrigo de programas de abertura aos compatriotas que não iriam causar nenhum impacto à cidade.

Gente sem razão, podemos dizê-lo com segurança. Haver obras em contínuo, buracos, barreiras, semáforos improvisados, pinos coloridos e pó em todo o lado é revelador do trabalho que há anos se faz. E está para continuar pela satisfação com que se vê gente de todas as idades a atravessar as estradas carregada de malas e bagagens. No Cotai até conseguem fazê-lo fora de qualquer passadeira, com crianças de colo, saltando canteiros e fazendo gincanas entre carros que buzinam. Sinal de que vêem os peões e estão a saudá-los.

Embora nada que se compare à organização da praça de táxis junto à Rua do Cunha, na Taipa. Recordando o título de um belo filme de Nanni Moretti dir-se-ia ser ali, na Taipa, o verdadeiro caos calmo: pode-se parar em qualquer lado para largar e tomar passageiros, discutir o preço, atravessar a rua, enquanto os polícias de turno observam o movimento com toda a pacatez para não interromperem, nem atrapalharem, a deslocação dos peões e a fluidez de circulação.

Como se isso não bastasse ainda há quem se atreva a dizer, imagine-se, que a gestão dos táxis é um descalabro total, com filas de dezenas de pessoas em qualquer praça. Esqueceram-se ter o director da DSAT avisado atempadamente as pessoas para estarem preparadas para mudanças nos seus hábitos.

Se há coisa que a população aprecie é o modo como o director da DSAT, o engenheiro Raimundo, e em boa verdade todos os membros do Governo continuam governando como só eles sabem, caminhando pelo meio das obras, das inundações, dos esgotos, dos turistas, falando aos deputados, às rádios, aos jornais e às televisões sem qualquer atrapalhação, sem pestanejar, sempre com a solenidade e o aprumo de quem sabe que está a fazer um trabalho notável em qualquer latitude. Nota-se a olho assim que se levanta um pouco de vento e ficamos envoltos numa nuvem de poeira e fuligem.

E nem aquele episódio da nova estátua, em Coloane, da deusa Hermès, tais eram os seus atavios, lhes retirou qualquer brilho. Não foi bonito, claro, mas antes venerá-la à quinta-feira, e ficar com ela desnudada à segunda-feira, do que não ter sabido da lista de presenças na festarola do fim-de-semana.

Nada que, apesar disso, possa ombrear com as respostas dadas há dias às preocupações do Centro da Política da Sabedoria Colectiva, relativamente à situação dos autocarros. A reportagem do Macau Daily Times sobre esse assunto a esta hora já correu mundo. A distinção, científica, entre o conceito de autocarro sobrelotado (overcrowded) e sobrecarregado (overloaded) apresentada pelo director da DSAT deve valer um Nobel. Como será possível que os jornalistas não se tivessem apercebido que, na RAEM, um autocarro pode andar sobrelotado sem estar sobrecarregado? Um autocarro com capacidade para 63 passageiros que transporta cerca de uma centena de pessoas, abarrotado como sardinha em lata, não está, diz o insígne director da DSAT, sobrecarregado.

Como fiquei baralhado recorri aos dicionários que tinha à mão e conclui que o director da DSAT tinha razão. Sobrecarregar significa "colocar uma quantidade excessiva de coisas ou pessoas em; carregar demasiado", "que tem quantidade exagerada de algo", que está "cheio até à saturação", que está carregado "de mais", o mesmo que "carregar com excesso", "aumentar em número excessivo" (cfr. Porto Editora, Infopédia, Priberam). E sobrelotado significa "exceder a lotação" (Priberam), sendo que sobrelotação é o substantivo feminino que significa "o que excede a lotação legal de um barco, veículo, etc." (cfr. Porto Editora). Sobrelotar, como se vê por esta pequena amostra, é uma coisa completamente diferente, pois que quer dizer "ultrapassar a lotação de; lotar em demasia", isto é, "encher excessivamente; sobrecarregar"(Infopédia).

A justificação do director da DSAT faz, pois, todo o sentido. E é de fina, e rara, inteligência.

Porque, na verdade, estamos a falar de coisas completamente diferentes; e até agora ainda nenhum passageiro se queixou de levar com outro às cavalitas durante o percurso entre o Parisian e o Hotel Lisboa. Pelo menos comigo, até ver, ainda não aconteceu. Há que fazer a distinção conceptual.

O facto dos autocarros andarem ultimamente sempre sobrelotados, mas não sobrecarregados – retenha-se a distinção académica da DSAT –, também se deve ao aumento de "turistas", o que me parece perfeitamente razoável. 

Por diversas vezes referi neste blogue a situação dos autocarros, inclusivamente durante o período da pandemia, mas confesso que nunca antes me tinha apercebido de que os trabalhadores das obras do Galaxy ou do Studio City, os que terminam a labuta nas fábricas do Parque da Concórdia ou nas obras do novo hospital ou do metro ligeiro, e todos os demais que se acotovelam e empurram nas paragens e terminais para conseguirem apanhar um autocarro que os leve para os postos fronteiriços, em direcção às suas casas, no final de um dia de trabalho, em especial aos domingos e feriados, também podiam ser tratados como "turistas". Mas está bem visto. A perspicácia é só para quem tem o dom. E Lam Hin San tem-no indiscutivelmente.

Alcanço agora as dificuldades de que falava o Secretário para os Transportes e Obras Públicas quando quis recrutar alguém para o lugar.

É que não deve, efectivamente, ser fácil, mesmo no interior da China, onde há mais de mil milhões de pessoas, encontrar um génio suficientemente lúcido, patriota e disponível para passar no crivo de um processo de recrutamento para a DSAT onde se exige que o candidato saiba distinguir um autocarro sobrecarregado de um autocarro sobrelotado e dar uma resposta publicável (e compreensível) para qualquer residente ou leitor do jornal.

A avaliar pela obra que tem sido realizada, pelas qualidades que tem demonstrado, e continua a demonstrar diariamente no exercício do cargo ao fim de oito anos, respondendo com sabedoria às preocupações públicas na sua área, e também aos jornais, o director da DSAT será neste momento o candidato mais forte a ocupar o lugar do próprio Raimundo do Rosário. Haja esperança.

Convém é que não embandeiremos em arco e todos permaneçam quietos e silenciosos. Não interessaria nada que alguém se lembrasse de sondá-lo para ir dar continuidade ao trabalho desenvolvido no Instituto para os Assuntos Municipais ou na Protecção Ambiental.

Apesar disso, constou-me, fontes fidedignas, obviamente, por isso ficam avisados, que com o aumento de circulação que se prevê para a superficie lunar, com a chegada de mais naves espaciais indianas, de inúmeros veículos "rover", autocarros e milhares de vendedores de amendoins, ventoinhas a pilhas e especiarias para as restantes missões espaciais, com o inerente aumento de excursões e de turistas que se prevêem com as obras lunares de construção civil, mais a respectiva fiscalização, é provável que venham a precisar de alguém capaz de coordenar e gerir as novas vias, o tráfego na superficie lunar e a instalação de uma rede de metro ligeiro para que os astronautas dos BRICS alargados se possam deslocar em segurança e com rapidez de um lado para o outro.

Há lá muitos buracos a precisarem dos cuidados de um Lam Hin San e este será um dos poucos no mundo com currículo e experiência internacional para a função devido ao seu contacto diário com poeiras, buracos e turistas que circulam nos autocarros sobrelotados, mas não sobrecarregados, da RAEM.

Seria terrível para os residentes de Macau que o sujeito, em vez de ocupar o lugar do engenheiro Raimundo, seguisse para onde deixasse de ser possível à cidade continuar a beneficiar e apreciar diariamente a sua excelência.

Que o mantenham no lugar por muitos e bons anos é o que desejo. Ou, sei lá, em último caso que o façam deputado na próxima legislatura; ou que o nomeiem para a Comissão dos Assuntos Eleitorais, onde poderá ser útil na distinção conceptual entre os diversos tipos de votos e de candidatos.

Macau não se pode dar ao luxo de perder um sobretalento sobre-humano da Grande Baía. Nem mesmo para a Arábia Saudita.

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