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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
Que por esse Portugal fora, e há dezenas de anos, as autarquias têm sido pasto fértil para a produção das nossas elites políticas, não constitui facto novo.
Que, muitas vezes, os respectivos titulares têm estado envolvidos em múltiplos casos judiciais, de má gestão de dinheiros públicos, de clientelismo, nepotismo, compadrio, favorecimento de familiares e amigos, e em milhares de investigações e processos de natureza criminal, que vão do abuso de poder ao peculato, à falsificação de documentos, ao branqueamento de capitais e à corrupção pura e dura, também não é nada, infelizmente, que seja novo para os portugueses. Tudo isso tem feito parte dos quase cinquenta anos de democracia que levamos.
Também é verdade que alguns autarcas, e muitos deles praticamente desconhecidos, têm feito trabalho exemplar nas autarquias, não raro sem alarido e de modo mais ou menos discreto, junto das comunidades que servem, beneficiando o país e as populações, resolvendo problemas, fazendo o que o Estado centralista e despesista não consegue fazer.
E depois há os outros. E dos outros, de quando em vez, lá se vai sabendo qualquer coisa.
Uma notícia e uma reportagem publicadas hoje na revista Sábado vieram lembrar-nos que para lá do país real, dos que não têm dinheiro para pagar as contas em casa ou suportarem os encargos com a saúde e as escolas dos filhos, há um outro país que vive, literalmente, à pala das autarquias, do "tacho". Há uns que só por serem do partido A ou B têm trabalho e salário garantido, mesmo depois de perderem eleições, e outros que fazem vidas de rico com "salários de miséria".
No primeiro caso, em Sesimbra, temos o ex-deputado comunista Miguel Tiago, a quem a Câmara continua a oferecer anualmente um contrato de trabalho para prestação de serviços de "assessoria técnica na área do ambiente e desenvolvimento sustentável", à razão de cerca de 3.000 euros brutos por mês. Relata a Sábado que o Miguel foi contratado após "consulta" a três entidades, mas ninguém foi capaz de dizer quem mais foi consultado para prestar esse serviço (p. 20).
A outra situação é bem mais escabrosa e reveladora da falta de vergonha, do desplante, da dimensão do abuso e dos gostos de novo-rico de alguns servidores da causa pública.
Repare-se que não tenho nada contra o conforto, o luxo ou o gosto por coisas boas e caras, desde que se tenha dinheiro para elas sem andar a roubar, a esfolar o erário público, a enganar o próximo, ou a abusar da posição que transitoriamente se ocupa, embora considere que a ostentação é exemplo de muito mau gosto, coisa para labregos e laparotos.
Mas mais grave do que os almoços de trabalho – é o que está em causa na reportagem – de Isaltino Morais e seus muchachos (páginas 43 a 46), porque também os há em qualquer latitude, e muitas vezes são imprescindíveis, é verificar que essas refeições ocorrem com uma regularidade impressionante, nos melhores restaurantes de Oeiras e Lisboa, e incluem, pelas facturas a que a revista teve acesso, invariavelmente, quantidades generosas de frutos do mar e da terra, de lagostas a gambas, ostras e refinados presuntos, santola, lavagante, leitão, robalos, peixes-galo, queijos de Azeitão, sushi, sapateiras, caranguejos, camarão-tigre de Moçambique, sem esquecer os muitos gelados para a sobremesa, que ali é tudo gente de alimento, gulosa e lambona.
É natural que quem assim tem necessidade de almoçar para poder trabalhar e resolver os problemas dos outros, por vezes tenha de estar a comer até depois das 20 horas, altura em que pede a conta, e seja obrigado a consumir "saké afrodisíaco", os melhores vinhos, e bebidas espirituosas em quantidade suficiente para que ninguém se esqueça da agenda de trabalho nem do motivo do repasto.
O resultado, está claro, são refeições de centenas de euros pagas com o dinheiro da autarquia noutros tantos milhares de refeições ao longo de cinco ou seis anos. Um "almoço de trabalho" a mais de 140 euros por cabeça não é um almoço de trabalho. É um "banquete de trabalho". Daí que se veja como normal que uma vereadora se tenha alapado com 450 refeições, o presidente, o chefe de gabinete, o vice-presidente e uma adjunta com cerca de 300 refeições cada um, e até o antigo secretário de Estado da Cultura do poupado Passos Coelho, Barreto Xavier, se alambazou com 77 refeições de 2019 para cá.
Evidentemente que a inclusão de tabaco na conta (charutos?) foram "lapsos", a corrigir oportunamente, mas fico com dificuldade em perceber como é possível arranjar apetite para se chegarem a fazer quatro, três e até dois almoços no mesmo dia! As facturas não devem mentir.
Onde é que aquela gente "enfiará" tanta comida? Ou será que aproveitam para levar alguma para casa para depois convidarem os amigos e distribuírem à família e aos vizinhos?
Confesso, todavia, que o que me faz mesmo mais confusão é a lata desta malta, pois que a maioria se não estivesse nos lugares em que está não seria com os seus ordenados de "políticos" e de funcionários públicos remediados que ao longo de anos encheriam as suas vistosas protuberâncias com tais iguarias.
Porque não seria, certamente, com os "salários de miséria" que se poderiam dar ao luxo de terem tantos almoços de trabalho, a ponto de haver necessidade de em três facturas de outras tantas refeições, a cerca de 300 euros cada, se ser obrigado a rabiscar no verso "Saladas Sr. Presidente", sinal de que nesses dias Sua Excelência estaria de dieta, ou, quem sabe, ainda a recuperar do almoço de trabalho do dia anterior.
Sempre ouvi dizer que quem não tem dinheiro não tem vícios. E que a discrição é uma virtude, até para não se ofender ninguém. Mais a mais quando se ocupa um cargo público. E que há que respeitar os sentimentos dos outros, por vezes, também, a desgraça alheia, pois que nem todos têm a mesma sorte na vida. Mas pelos exemplos que diariamente nos chegam das nossas elites políticas e empresariais não terá sido essa a cartilha de muitos.
O juiz Carlos Alexandre, exemplo que também me pareceu extremo e de muito mau gosto para o ter confessado a um jornalista, atenta a sua posição no universo dos profissionais pagos pelo Estado, ainda que com estatuto especial, pode não ter dinheiro para mudar a fechadura da porta de casa depois de ter sido visitado por desconhecidos mais do que uma vez. E muitos mais haverá como o tal juiz, por Portugal fora, que não só não têm para a fechadura como para comer decentemente e alimentarem os seus filhos. O que constitui uma tragédia que a todos nos envergonha. Porém, para alguns autarcas, pese embora esse universo desigual e a necessidade dos outros portugueses terem de partilhar com eles o mesmo país, não há-de faltar o Pêra Manca e o lavagante à custa das autarquias, isto é, dos outros e dos impostos que estes pagam. Não era preciso serem como o miserável do Botas ou como o Cunhal, mas fossem muitos deles a pagar do seu bolso e continuariam nos croquetes, nos bitoques e nas febras.
E não interessa se trabalham muito ou pouco; não é isso que está em causa.
Podem ter bom gosto, e ultimamente mais caro e refinado, que serão sempre uns pacóvios e umas deslumbradas que dão mau nome às autarquias, à classe política em geral, sempre à espera de uma oportunidade para se armarem em finórios. E que são, por muito que nos custe, o espelho das nossas miseráveis e ignorantes elites.
Uma democracia consolidada, sim, é verdade; não deixando de ser um país de isaltinos, de venturas e de "só-cretinos".