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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
(créditos: daqui)
Uma notícia da TDM sobre o Instituto de Formação Turística (IFT) chamou a minha atenção. Dizia esta que "o Governo está a ponderar a alteração do nome do Instituto de Formação Turística para Universidade de Formação Turística" e que "[a] sugestão partiu da Comissão que analisa na especialidade o futuro regime jurídico da instituição, na presunção de que a mudança poderá atrair mais estudantes e melhores professores".
Pouco depois, não sei se para termos a certeza de que a notícia era a sério, confirma-se que a sugestão "partiu dos deputados da Comissão Permanente da Assembleia Legislativa que está a analisar na especialidade o futuro regime jurídico do estabelecimento de ensino".
Quem olhe para o IFT, bastando para tal visitar a sua página na Internet, percebe que a instituição foi criada em 1995 e que desde então oferece cursos que conferem diversos graus académicos e de formação profissional nas áreas do turismo e da hospitalidade. Agrega as escolas de Gestão Hoteleira, de Gestão Culinária e de Educação Contínua. Em rigor, diz tudo respeito à mesma área do conhecimento, o que não tem impedido de ser uma boa escola e de ao longo dos anos formar pessoal qualificado que muito tem contribuído para a melhoria e elevação do nível profissional daqueles que dali saem chegando ao mercado de trabalho.
Ora, uma universidade é classicamente um conjunto de faculdades, de colégios ou de escolas de ensino superior, com unidades orgânicas de ensino e de investigação, em múltiplas e distintas áreas do conhecimento. Tome-se, por exemplo, a Universidade de Macau ou a Universidade de Lisboa. Esta última tem faculdades de Arquitectura, de Belas-Artes, de Ciências, de Direito, de Farmácia, de Letras, de Medicina, de Medicina Dentária, de Medicina Veterinária, de Motricidade Humana e de Psicologia. E também tem institutos em diversas áreas, da Economia e Gestão às Ciências Sociais e Políticas, sendo que talvez aquele que é internacionalmente mais conhecido, reputado e respeitado é o Instituto Superior Técnico, com uma oferta de dezenas de cursos na áreas da engenharia e das ciências militares.
Eu não sei se os deputados e o Governo têm a noção do que é uma Universidade, sendo certo que no interior da China também as há e muito boas, para admitirem a passagem do IFT a "Universidade".
A ideia sugerida, mais a mais com o argumento de que o objectivo que estará por detrás de tão peregrina ideia da mudança de denominação é a de atrair mais estudantes e melhores professores, é reveladora de uma profunda ignorância, consubstancia a admissão de uma eventual fraude académica (mais uma) e denota uma total inversão daquelas que deveriam ser as preocupações ao nível do ensino e da qualificação dos estudantes de Macau.
Não é por se passar a chamar universidade a um instituto que o ensino melhora, que o nível académico e reputacional da instituição se eleva, ou que se atraem mais estudantes em busca do verdadeiro conhecimento. Não consta que, em Portugal, o Técnico tenha sentido necessidade de mudar de nome para poder receber estudantes nacionais e estrangeiros ou formar profissionais qualificados e alguns de excepção, mundialmente reconhecidos, havendo até quem aqui tenha deixado obra e continue a colaborar e leccionar na Universidade de Macau.
Macau já tem demasiadas universidades, e más, para a dimensão que tem. Há trabalhos académicos ao nível do mestrado e do doutoramento muito maus se comparados com o que se faz noutras universidades. O nível de muitos que saem licenciados das universidades de Macau, ou que andam a frequentar cursos de pós-graduação e mestrado, é sofrível por comparação com qualquer universidade de nível médio lá fora. Basta olhar para muitos licenciados em Direito que hoje são advogados – a culpa não é deles –, cujo grau de ignorância, seja na sua área técnica ou na de cultura geral, é absolutamente assustadora. E, no entanto, andam aí, muitos enganando os residentes e as empresas que a eles recorrem e a quem cobram quantias principescas para prestações de serviços medíocres, em nada contribuindo para a elevação do nível dos serviços jurídicos oferecidos à população de Macau. Basta ver os despachos de alguns magistrados sobre o que lhes sai na rifa, tanto na primeira instância como nas superiores, para se perceber o que digo.
Eu próprio, nos cursos que lecciono, tenho que normalmente começar por ensinar o básico que devia ser dado por adquirido. Como qualquer pessoa compreenderá não é fácil querer aprofundar algumas noções elementares de Teoria Geral do Estado, de Direito Constitucional Comparado ou de Organizações Internacionais a quem sai de uma licenciatura sem saber o que é um estado, uma constituição ou uma organização internacional, nem tem a mínima ideia do que isso é. Simplesmente nunca ouviu falar. E que até em relação à história contemporânea da China e da Ásia não sabe rigorosamente nada. Saberão cantar o hino e pouco mais. É aterrador.
Querer chamar universidade a um pequeno instituto, que oferece meia-dúzia de cursos, por muito respeitáveis que sejam, e no caso do IFT até são bem mais do que isso, apenas com o objectivo de atrair estudantes ou professores mais qualificados é uma fraude.
Ensinar e aprender não é mesmo que ir ao supermercado, à loja de sopa de fitas ou, ultimamente, ir tomar uma refeição no Clube Militar. Não pode ser apenas um negócio como os outros. Não sei se os senhores deputados e o Governo têm a noção disto.
A preocupação do Governo e dos senhores deputados deveria ser a melhoria do nível do ensino e a formação de profissionais mais competentes e mais qualificados em Macau, e que pudessem ser úteis à sociedade. Porque não é mudando o nome aos bois que estes se tornam príncipes. Não é por se chamar "doutor" a um ignorante que este vai passar a ser mais esperto e inteligente, deixando de ser "um bípede que risca o diamante" e um profissional medíocre que só cria problemas aos clientes, e, no caso dos tribunais, também aos juízes, aos funcionários, às partes e aos outros advogados.
O que me assusta é chegarem-me alunos com uma licenciatura que não sabem escrever, que têm dificuldade em articular meia-dúzia de linhas, que têm imensa dificuldade em ler e compreender um texto da sua área de formação, que são incapazes de resumir as suas ideias essenciais, que não sabem fazer uma citação e que até a copiar dão erros. Alguns não deveriam sequer ter sido admitidos numa instituição de ensino superior. Olhe-se para Portugal e veja-se no que deu a proliferação de universidades privadas, a criação de cursos inúteis, a "venda" de diplomas e a formação de desempregados "licenciados" a que se dedicaram algumas instituições nos tempos áureos do cavaquismo e do guterrismo, embora desses até houvesse quem chegasse a ministro apesar de pouco mais saber do que assinar o nome. Exemplos não faltam.
Também a formação apressada de magistrados, conservadores e notários não tem abonado em nada a saúde jurídica da RAEM. Os problemas são mais que muitos, e recorrentes, mas não será aqui que irei elencá-los.
E não constando que nenhuma das melhores escolas de turismo e hotelaria da Suíça, de Portugal, de França ou dos EUA tenham tido necessidade de passar a "Universidade" para atraírem mais alunos e melhores professores, permito-me sugerir que reformem, reorganizem, reestruturem, confiram mais meios, melhores equipamentos e instalações ao IFT para que este possa continuar a formar bons profissionais para Macau.
E preocupem-se antes, os senhores deputados e o Governo, com o mau ensino de algumas universidades da RAEM, com a má investigação académica que aqui também se faz, com os maus papers que se produzem, a fazer de conta que são científicos, com os maus professores, e arranjem-se meios para se ensinar os estudantes a aprender, a ler, a pensar como adultos, a investigar decentemente nalgumas áreas, balizando o conhecimento pela ciência, e não por um exacerbado nacionalismo e oportunismo político que faz deles mentecaptos e lhes retira a capacidade de pensarem por si, de crescerem e de serem cidadãos de corpo inteiro da RAEM e da China.
O panorama já é demasiado trágico para se continuar a inventar. Desçam à Terra.