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charco

por Sérgio de Almeida Correia, em 12.01.23

Lago Nam Van – Wikipédia, a enciclopédia livre

À medida que avança o julgamento do caso de corrupção que sentou no banco dos réus dois ex-directores dos Serviços dos Solos, Obras Públicas e Transportes, nota-se o incómodo das instituições e dos seus titulares. Dir-se-ia mesmo que nesta terra quando as coisas não encaixam no guião se torna mais difícil acomodar os factos à realidade que se quer ver vingar.

Se já em Dezembro passado o Chefe do Executivo não autorizou a prestação de depoimentos por parte do seu antecessor e do Secretário para as Obras Públicas, o que não deixa de ser lamentável quando em causa está apurar a verdade dos factos e perceber quem está a mentir e até onde vai o manto diáfano da alta corrupção, agora foi a Assembleia Legislativa a obstaculizar ao depoimento do deputado Vong Hin Fai, a que se seguirá previsivelmente igual decisão quanto aos deputados Chui Sai Cheong e Chui Sai Peng.

Não deixa de ser curioso que haja tanta gente da mesma família a ser referida por vários intervenientes num único processo, de arguidos a testemunhas, e não haja um esforço mínimo de se apurar a razão ou sem razão da invocação, tantas vezes, desses nomes – que não são pessoas quaisquer –, preferindo-se deixar tudo na opacidade.

Seria, aliás, necessário esclarecer, posto que isso foi também referido na sessão de ontem do julgamento, que história é essa das listas VIP para aquisição de fracções autónomas com 40% de desconto que eram aprovadas pelo arguido Ng lap Seng.

Recorde-se que este arguido, anteriormente ligado a diversos projectos imobiliários de grande envergadura, parceiro de negócios de alguns outros "tubarões" de Macau, financiador da Fundação Mário Soares, esteve preso durante largo tempo nos Estados Unidos da América exactamente por razões que se prendem com práticas corruptivas.

Saber até onde chegam as suas ramificações, até onde vão os tentáculos do polvo e dos seus parceiros de negócios, quais as razões para a existência dessa lista VIP, quem lá estava e porquê, é assunto de manifesto interesse público.

Qualquer residente de Macau gostaria de ter adquirido, de forma limpa, um apartamento, ou vários, no edifício Windsor Arch com um desconto de 40% e isenção do pagamento de condomínios. 

O escandaloso património imobiliário que algumas pessoas "amassaram" em Macau nas últimas décadas devia merecer outra atenção de quem tem por obrigação combater a corrupção, defender a legalidade, o bom nome das instituições e fazer justiça. Já bastou o que se passou no tempo da administração portuguesa com alguns "servidores" públicos.

O que se está a passar agora ultrapassa todos os limites, e é muito mau para quem vê o seu nome referido nos julgamentos em curso e não tem oportunidade de se defender. Mas é também mau para os arguidos e para as testemunhas, perante os quais parece que alguns partem do pressuposto de que nunca falam verdade; como ainda é mau para a justiça que se quer fazer e que se pretende que seja acima de tudo independente, transparente, imparcial e justa, mas é particularmente mau para a dignidade das instituições e o bom nome da RAEM, dos seus dirigentes e da República Popular da China que é quem tem, em última análise, a maior responsabilidade sobre os escândalos de Macau que envolvem dirigentes políticos e altos funcionários da Administração.

Não se percebem quais os receios do Chefe do Executivo e da Assembleia Legislativa para se impedirem os depoimentos dos visados.

Isto está tudo a cheirar demasiado mal há muito tempo e não é só por causa da ausência de uma política ambiental séria e da falta de tratamento adequado dos resíduos líquidos e sólidos.

De um charco saem todos enlameados. Os limpos, os sujos e as instituições.

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desgoverno

por Sérgio de Almeida Correia, em 06.01.23

40087469-1600x1067.jpg(LUSA, daqui)

Perdi, é este o termo adequado, algumas horas nos dois últimos dias a acompanhar a apresentação e debate da moção de censura ao Governo.

O voluntarismo, nalguns casos, a impreparação e a exaustão, noutros, dos que botaram faladura em nome da oposição foi notável.

Do inenarrável Sarmento – líder da bancada do PSD – ao deputado "Mr. Músculos" Duarte Pacheco (enquanto está na Mesa sempre passa mais despercebido), do discurso requentado de Catarina Martins ao esforço da bancada da IL para mostrar serviço, dos diamantes da bancada socialista à lengalenga mofienta do que resta do velho PCP e ao deslocamento da deputada do PAN, dir-se-ia estar-se perante uma reunião magna de estudantes de qualquer academia. Com excepção de Rui Tavares (Livre), de Cotrim de Figueiredo (IL) e do sempre truculento Ventura (Chega) foram raros os momentos de algum interesse. 

Os discursos perdem-se em chavões, lugares-comuns, gracejos desajeitados, leituras apressadas de notas que pouco interessam. Não há ali ponta de substância. 

O primeiro-ministro acaba por embarcar no estilo, e confortável na sua maioria absoluta, que apenas se mantém compacta pelo cheiro do poder, vai tentando defender o indefensável.

As oportunidades perdem-se como quem devolve ao mar cestos de peixe miúdo. Alguns sucessos recentes em matéria de finanças públicas ou emprego numa conjuntura difícil não escondem o deserto de ideias, e de gente, de que se faz hoje a acção política e governativa.

Mas o que é mais surpreendente é que, ao arrepio de tudo o que seria previsível e mandaria o bom-senso, até mais o faro político, o líder da maioria esteja de tal forma enredado no aparelho do partido que dispense os melhores e se sinta na obrigação de defender quem nunca deveria ter escolhido para integrar um governo, gente que pouco tempo volvido, no último caso algumas horas apenas, se vê obrigada a apresentar a demissão do cargo em que acabara de ser empossada pelo Presidente da República.

Não sei, até porque estou longe, o que pensam e comentam os portugueses, mesmo os que apoiam ou se revêem nas políticas do PS, e que nos cafés, no trabalho, nos transportes públicos ou em casa vão olhando para os títulos dos jornais, ouvindo os protagonistas e assistindo a demissões e remodelações em catadupa num executivo formado por um partido que ainda há menos de um ano venceu as eleições com maioria absoluta.

Também não sei quando é que o próximo se demitirá – há um na calha que ontem foi referido, embora ninguém saísse em sua defesa –, mas o espectáculo que está a ser revelado é mau demais para que as próprias estruturas do partido não se manifestem.

Entregue, de norte a sul e ilhas, aos caciques dos aparelhos das concelhias, começa a ser difícil encontrar uma linha de rumo sem turbulência que permita cumprir o programa de Governo sem sobressaltos até ao fim do ciclo legislativo.

A não ser que o primeiro-ministro, a seguir à peregrina proposta de querer ir discutir com o Presidente da República "um circuito" que "permita evitar desconhecer factos" relacionados com as pessoas que escolhe para os seus governos [🤦‍♂️], comece a adjudicar a escolha dos futuros membros dos governos da República a uma dessas empresas de recrutamento de altos quadros.

O grande e saudoso Pedro Baptista, que um dia me disse, perante a minha desconfiança e depois de com grande mágoa se afastar da militância no PS-Porto, que o partido era irreformável, não está cá para assistir a nada disto. Teve a sorte (Soares e Sampaio também) de ser poupado a este espectáculo de desgoverno político, mas imagino o que ele não diria, depois de uma vida de combate por um Portugal decente, sobre o que está a acontecer. Não haveria na nossa língua vernáculo suficiente para expressar com rigor os seus, e os meus, sentimentos nesta hora.

[também no Delito de Opinião]

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lula

por Sérgio de Almeida Correia, em 02.01.23

Lula posse 000_336d3mf-675x450.jpeg

Lula não é, à partida, um nome simpático. O molusco cefalópode não é um bicho atractivo no seu aspecto viscoso e fusiforme, com a enorme massa visceral que faz parte do seu corpo, colocando-se entre a cabeça e os tentáculos. Confesso, porém, que, quando frescas, jovens, viçosas e macias, aprecio saboreá-las. 

Ora, isto é tudo o que não se pode dizer de Lula. Não do cefalópode, mas do operário metalúrgico que pela terceira vez, depois de libertado da prisão e politicamente ressuscitado, tomou posse como presidente do Brasil. Este Lula não tem seguramente a elegância, a beleza, os olhos ou o bambolear gingão de uma garota de Ipanema ou do Leblon. Não é fresco, nem jovem, nem viçoso, nem consta que seja macio. 

Bem pelo contrário, este vem já curtido por dois mandatos anteriores, por vários escândalos ou situações menos claras, processos judiciais, prisão e, perdoe-se-me a expressão, muita "sacanagem" que também lhe saiu ao caminho, como foi a de um tal Moro de triste memória, que aparentemente impoluto e incorruptível usou técnicas de cafajeste, atropelando a lei ao jeito bolsonarista para levar a água ao seu moinho, até ser politicamente recompensado, o que de nada lhe serviu. 

Não sendo neste velho samba-enredo apreciador do personagem Lula – o derrotado Ciro Gomes faz muito mais o meu estilo de político –, admito que, todavia, esses possam ser os seus grandes trunfos no mandato que ontem iniciou, desde que tenha sabido aprender com os erros passados.

Dele não se espera que enverede pelo populismo boçal do seu antecessor, nem que se comporte como uma elegante misse, distribuindo sorrisos e carícias à direita e à esquerda como forma de manter equilibrado o difícil presidencialismo de coligação – uma particularidade brasileira – em que vai ser obrigado a acomodar-se e mover-se para poder governar e dar aos brasileiros aquilo que tanto desejam e merecem.

Se o vice-presidente Alckmin, seu opositor nas presidenciais de 2006, e agora investido em funções que poderão ser essenciais para garantir os necessários apoios nos trade-off do Congresso, com o Senado e a Câmara dos Deputados, poderá ser um trunfo precioso, só o tempo o dirá.

Registo, para já, a forma como foi recebido e investido, a clareza das suas palavras nos discursos proferidos, que não permite segundas interpretações e lhe condicionará o mandato, bem como a presença, no que foi um record, de dignitários estrangeiros à sua posse.

E quanto a este ponto não posso deixar de sublinhar a forma como o Brasil, depois do modo indigno e humilhante como se comportou nos últimos anos o tropa-trolha que ocupou o Palácio do Planalto, voltou a cumprimentar, antes e depois da posse, e a tratar e receber o Presidente português. Não por ser Marcelo, mas apenas porque lá esteve em representação de Portugal, num gesto que também não passou despercebido aos milhares de brasileiros que vivem no nosso país.

E também a referência carinhosa que lhe foi feita pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sem soberba ou complexos coloniais, imbuído do espírito que devia, deve, sempre presidir às relações entre dois países que partilham a mesma herança secular, a língua, muitas vezes as paixões e até os defeitos.

Não será fácil reerguer um país que caminhava a passos largos para o desmantelamento das suas estruturas, e ao mesmo tempo devolver a esperança e o pão aos favelados da vida, reentrando no caminho da normalidade, devolvendo dignidade ao Estado e às instituições, cumprindo o desígnio de desmatamento zero da Amazónia, reerguendo os alicerces do estado de direito, da legalidade e da justiça, reforçando a autoridade do estado federal, a segurança de pobres e ricos, de brancos, pretos, amarelos e mestiços, qualquer que seja o seu credo, opção ideológica ou preferência sexual.

O Brasil é demasiado grande, diferente (bastou ver o minuto de silêncio por Pelé e o Papa Bento XVI, que antecedeu a posse, ou ouvir o episódio da caneta de Lula vinda do Piauí) e importante no contexto mundial para poder ser governado à balda, distribuindo "propina" a torto e a direito, escondendo o lixo debaixo do tapete ou promovendo o garimpo ilegal.

Lula da Silva tem uma hipótese única de ser recordado pelas melhores razões. Oxalá que não a desperdice, porque também não consta, mesmo sendo Deus brasileiro, que Este esteja disposto a escrever uma segunda vez sobre linhas tortas.

Não deixe o samba morrer, moço.  

Boa sorte, Brasil.

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