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Linhas em jeito de diário. Inspiração. Homenagem a espíritos livres. Lugar de evocação. Registo do quotidiano, espaço de encontros. Refúgio de olhares. Espécie de tributo à escrita límpida, serena e franca de Marcello Duarte Mathias.
"(...) Depois de mais de setenta anos no exercício do poder, o PCC logrou constituir-se como uma dinastia orgânica – a primeira dinastia orgânica da história da China. Essa osmose com a cultura política tradicional viu-se fortalecida com a adopção de uma institucionalidade própria que assegura uma série de regras para evitar que os processos de sucessão, tão delicados nestes sistemas, gerem lutas fratricidas." (p.373)
O que ali se escreveu já perdeu, entretanto, actualidade com a revogação da regra da limitação de mandatos ou a incerteza da idade de aposentação em relação a alguns dirigentes, mas o nome de Xulio Ríos é suficientemente importante entre os estudiosos e analistas do fenómeno chinês actual para não poder passar despercebido.
Natural seria, por isso mesmo, que o seu último trabalho merecesse a devida atenção, tanto mais que foi traduzido e publicado em português. Não havia desculpa para não estar incluído na minha lista de prioridades.
Tivesse aguardado mais uns meses e o autor poderia ter alargado a sua análise ao XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC). Seria interessante conhecer a sua interpretação do episódio Hu Jintao.
Não obstante, e pese embora uma incorrecção e uma ligeireza na parte que diz respeito à geografia de Macau e a Luís de Camões (vd. p. 149), trata-se de um trabalho de fôlego, produzido com isenção e independência, embora nem sempre possa estar de acordo com o autor.
Xulio Ríos passa em revista toda a história do PCC, nos seus momentos mais marcantes, desde a sua fundação, congresso a congresso; sem esquecer as influências externas, o conflito com o KMT, a fundação da RPC, até chegar à situação de Hong Kong, aos problemas do Tibete, de Xinjiang e Taiwan, a reaproximação ao confucionismo e ao legismo, e o processo de sinização do marxismo até ao neo-mandarinato actual e ao xiismo.
Irrepreensível divisão histórica, capítulos bem alinhados, conclusões pertinentes e a merecerem discussão. No final, possui uma interessante bibliografia, alguns números relativos aos congressos e um índice onomástico para ajudar os leitores menos comprometidos com a realidade chinesa e as dinâmicas do PCC a compreenderem os papéis de alguns dos protagonistas.
Valeu a leitura, recomendo-a, e agradeço à minha amiga F. a generosa oferta que me fez.
Com a qualificação para os oitavos de final da Liga dos Campeões garantida com classe e distinção, após um percurso imaculado e uma jornada épica na catedral da Luz, é tempo de voltarmos ao essencial.
O campeonato está de volta.
Regressemos à terra, pois, concentremo-nos no essencial, e sigamos o exemplo de Roger Schmidt, deixando as "peixeiradas" para outros.
Ah!, e já agora, deixem os meninos e os rapazes em paz, dêem-lhes espaço.
E ao fim de quase três anos voltamos ao mesmo. Desta vez, o alerta foi no Fai Chi Kei. Uma mulher de 66 anos, sem vacinas, que regularmente se passeava entre os dois lados da fronteira. E uma vez mais o caso é detectado pelas autoridades de Zhuhai, que depois avisam os Serviços de Saúde de Macau.
Trata-se de um filme repetido, que de novo conduziu ao fecho de uma zona da cidade, à realização de testes em massa, ao desperdício de dinheiros públicos, à insatisfação da população.
Vivemos numa espécie de carrossel que nunca mais pára, com imensas luzes e uma música horrível e repetitiva, onde nos obrigam a andar e de onde não nos deixam sair sem que haja uma montanha de limitações e exigências. A não ser que seja para se ir ao interior da China onde continuam a nascer, e continuarão, casos de infectados. Com ou sem tolerância zero, com zero dinâmico ou com outro nome qualquer que dê cobertura à teimosia.
As autoridades de Macau continuam preocupadas com os que chegam de avião, do estrangeiro, ou de Hong Kong, pessoas que estão sempre controladas, que só viajam com testes negativos e são mantidos sob sequestro durante dias a fio sem qualquer justificação. Mas, curiosamente, as situações que levaram em Macau a situações de confinamento, ao encerramento de moradores nas suas residências, ao fecho de ruas, de bairros e da própria cidade, como sucedeu há três meses, vieram do interior da China, de e para onde muitos residentes de Macau se deslocam nos dois sentidos, de férias e em excursões, uma delas promovida por uma "escola patriótica", sem qualquer vacinação e sem estarem sujeitos às regras apertadas que se impõem a quem chega são e vacinado do estrangeiro, ou que aqui vive diariamente sem se deslocar a qualquer outro lado.
Agora dizem que vão apertar as regras das excursões, exigir mais testes e em períodos mais curtos, mas a irracionalidade mantém-se em relação ao que está errado e se recusa a corrigir. Sem qualquer justificação racional ou científica. Basta ver que para se ir à Oktoberfest do MGM é preciso realizar teste de ácido nucleico, mas se for para se andar "à molhada" e aos encontrões na MIF, num espaço interior, exíguo entre expositores, onde há muito mais gente a circular, já ninguém quis saber dos testes. Qual a diferença? Quando dentro de algumas semanas se realizar o Grande Prémio caseiro e um tipo for para o meio daqueles milhares na curva do Hotel Lisboa ou na bancada do reservatório também vão pedir testes? Será que tudo isto continua a ter algum sentido?
Para quem reside em Macau e ao longo dos últimos dois anos e meio se viu impedido de levar uma vida normal devido às restrições impostas pela pandemia, tendo estado sujeito, caso se ausentasse para o estrangeiro, fosse por que razão fosse – tratamento médico, visita a familiares, acompanhamento de um funeral, participação em seminários ou congressos ou férias – a quarentenas de 14, 21, 28, 10 e, mais recentemente, de 7 dias, acrescidos de mais uns quantos de observação médica em casa, com código amarelo e acompanhados de múltiplos testes de ácido nucleico, não deixa de ser insultuoso ouvir a Secretária para os Assuntos Sociais e Cultura dizer que está agora, a um mês da corrida, a ser estudada a hipótese de redução de quarentena para os pilotos que queiram vir ao Grande Prémio.
E isto acontece, note-se, depois do Presidente do Instituto dos Desportos ter pomposamente anunciado a vinda de mais de dez pilotos estrangeiros.
Ora, se estes fizessem questão de vir a Macau, ainda que com quarentena, não haveria necessidade de estar a negociar com eles, a menos de um mês da data prevista para as corridas, a sua vinda. Muito menos a negociar a entrada de apenas meia-dúzia de pilotos, da metade inferior, diga-se de passagem e com o devido respeito por todos eles que não têm culpa nenhuma do que está a acontecer, admitindo-se um eventual regime de excepção de duração mais reduzida.
Já todos tinham percebido que de um ponto de vista político, social e económico a gestão da crise pandémica em Macau tem sido um desastre. Mas desportivamente não fica atrás, tendo-se apostado em igual nível. E não só nos desportos motorizados, também no futebol, no hóquei em patins, no voleibol e noutras modalidades.
Aquilo que havia de verdadeiramente importante em relação ao Grande Prémio de Macau era a obrigação de preservar o seu estatuto internacional, o que foi desprezado a partir do momento em que em todo o mundo se começou a regressar à normalidade e aqui ficou tudo na mesma, sendo incompreensível para muita gente do desporto automóvel mundial, como ainda este ano me pude aperceber quando acompanhei a última edição das 24 Horas de Le Mans, que se tivessem deixado cair as principais provas internacionais.
Muito mais importante do que trazer um punhado de pilotos de motas ao Grande Prémio de Macau era ter assegurado este ano, depois de dois anos de interregno, a continuidade da corrida de F3, a Taça do Mundo de GT e a etapa macaense do Mundial de carros de turismo.
Ao invés, anda-se a enganar as pessoas, atirando-se-lhes areia para os olhos, anunciando-se a vinda de pilotos – e os mecânicos e demais pessoal das equipas também vão ter um regime de excepção em matéria de quarentenas? – que ainda ninguém sabe se virão, a gastar dinheiro com eventos absurdos (melhor prova são os reduzidos patrocínios angariados este ano), sem qualquer interesse desportivo, e a negociar a vinda de pilotos para a corrida de motas, invertendo-se as prioridades e sem a mínima noção do mal que se está a fazer a Macau, ao seu Grande Prémio e ao prestígio internacional de uma jornada do desporto automóvel construída ao longo de décadas e que se tornara incontornável no calendário mundial.
Regresso à leitura da actualidade local. Com excepção das habituais tiradas, começam a saltar à vista as "trapalhadas" do concurso que decorre para atribuição de seis concessões de jogo em casino.
A infelicidade de algumas das alterações introduzidas na legislação, o tempo que aquelas demoraram a ser paridas pelas entidades competentes, a deficientíssima técnica legislativa e as lacunas que ainda assim foram imediatamente perceptíveis, aliadas, mais recentemente, à confusão entretanto gerada com a ausência antecipada de critérios quanto ao peso dos factores de ponderação que deveriam ser seguidos na análise das propostas, colocando em causa a sua transparência, só por si não augurariam nada de bom.
Se a tudo isto juntarmos a tomada de posição da Asian American junto da Comissão do Concurso, as notícias veiculadas a partir de Pequim, em vésperas do XX Congresso, por Liang Wannian, de que não existe um calendário para saída da política de tolerância zero, sufragadas por declarações de Wang Changbin e Sonny Lo, e na linha de afirmações anteriores do Chefe do Executivo, que quer continuar alinhado com a política de Covid-19 do interior do país, o mínimo que se pode esperar é a continuação do caminho do Governo da RAEM em direcção à irrelevância e ao abismo.
O secretário-geral adjunto do Fórum Macau, ainda em Setembro, teve a coragem de apontar o dedo ao irrealismo oficial. Desconfio que poucos, e certamente nenhum dos que devia ter tomado atenção, terá percebido o que se disse sobre o conteúdo dos discursos.
É por isso mesmo estranho, ou talvez nem tanto, que no cenário actual, numa altura em que as acções das concessionárias descem a todo o vapor, ainda haja quem queira saber "qual a calendarização dos investimentos das futuras concessionárias e quanto é que as operadoras estão dispostas a investir ao longo dos próximos anos". Haja sentido de humor.
Não sei se alguém ligado às concorrentes, desses de quem se espera que "abram os cordões à bolsa", já terá tentado explicar à Comissão que nenhum investidor é louco, e que ninguém está disposto a apostar no escuro, prometendo mundos e fundos, empenhando a sua palavra e o seu património sem saber quando e quantos potenciais clientes irá ter. Nem digo daqui a dois ou três anos, mas daqui a seis ou oito meses.
Sem se saber quando é que Macau abrirá as suas fronteiras, quando voltará a ter uma relação normal com Hong Kong, com carreiras marítimas e de helicóptero, nem quando é que o aeroporto retomará o funcionamento a que nos habituou e se acabará com esta loucura das quarentenas, verdadeira sangria de dinheiros públicos e privados, descendo-se por um dia à realidade e reentrando-se no mundo dos vivos e das pessoas normais, não será possível dar descanso às múmias, aos feiticeiros, aos "académicos", aos moços de recados, e nem mesmo aos censores e polícias encartados da imprensa e das redes sociais.
Gostava de poder pensar que todos têm a noção do que andam a dizer e a fazer. Infelizmente, chego à conclusão de que há quem não veja grande diferença entre organizar um concurso para notários privados ou um festival de fogo de artifício e um concurso internacional que coloca à prova a reputação da China, as suas responsabilidades perante terceiros, e o futuro da RAEM e dos seus residentes.
Enfim, não são coisas que se resolvam levando os investidores internacionais, a Bloomberg, a Reuters ou a France Press numa excursão aos campos de algodão. Isso só resulta com alguns filibusteiros e montanheses que não aprenderam nada nos tempos do garimpo. No mundo empresarial, em especial do jogo, duvido que ainda haja adoradores de totens quando em causa está o valor de títulos cotados em bolsas internacionais. Títulos bilingues e trilingues.
Se alguma virtude teve o anterior concurso, que trouxe a Macau a prosperidade que agora tão facilmente e em tão pouco tempo se delapida, foi a de ter sido conduzido por profissionais.
Esse é hoje, perante aquilo a que se assiste, o maior elogio que nesta matéria — tenho dúvida que haja outras — pode ser feito ao primeiro Chefe do Executivo da RAEM. Apesar de tudo.
E já então foi muito, objecto de crítica e ainda hoje discutido nos tribunais.
Constitui um enigma saber até quando se prolongarão os folhetins ainda em curso, e para quê, se no final nada sobrar de relevante do sistema aqui deixado e se tornar indiferente viver na Taipa ou em Zhuhai. O pastel de nata não sabe ao mesmo na Garrett e em Cantão.
Dir-me-ão que há muitas maneiras de fazer pastéis de nata, é verdade; mas também conheço muitas pastelarias, em locais centrais, que foram ao fundo em pouco tempo. E não foi preciso patrão novo. Bastou mudar a criadagem e entregar a gestão a um chefe de messe.
Espero, de qualquer modo, que alguém se tenha lembrado de distribuir uns coletes aos membros da Comissão. Cheira-me que nem todos saberão nadar.
E, em todo o caso, convirá ter presente que se o barco se afundar nem os pastéis de nata se salvarão. Ninguém come pastéis molhados. E não faltará quem, noutros locais, aparecerá a produzi-los com mais elegância e sem necessidade de coletes ou aventais.
Um barco só se afunda uma vez. A confiança também.
E três meses volvidos regresso a uma "cela" do Hotel Tesouro.
Entre 27 de Junho passado e 10 de Outubro houve uma melhoria substancial dos procedimentos de chegada ao aeroporto de Macau e entrada no hotel de quarentena.
Se antes fui largado de manhã à porta do hotel, pouco passava das 7:00 horas, tendo chegado no dia anterior pelas 16.30, desta vez realizei o check-in pelas 21:40, depois de aterrarmos às 16:10.
Já não foi preciso ficar-se uma hora e meia dentro do avião, e fomos poupados ao espectáculo da desinfecção das malas na pista.
Assim que saímos do avião transportaram-nos para uma sala de "convívio" dentro do próprio aeroporto, com melhores condições de acolhimento, mais limpa, com casas de banho decentes, ar condicionado, assentos mais confortáveis e com tudo muito mais bem organizado. A nossa bagagem foi transportada para esse local por alguém que não nós. Por aí, sendo nós obrigados a vivermos com este estapafúrdio regime de quarentenas, a melhoria foi apreciável e valeu a pena chamar a atenção das autoridades. Não sendo o ideal, os ganhos de eficiência e tempo são consideráveis. Será preciso, porém, continuar a porfiar.
Mas há coisas que as pessoas tardam em perceber. Uma delas é que saindo o avião da Scoot de Singapura pelas 12:10, e com refeições sofríveis a bordo, não é com uma caixa de sopa de fitas instantânea que se satisfazem os futuros "reclusos". É incompreensível que chegando-se ao hotel àquela hora da noite, após um dia de viagem, pelo menos, e uma espera estafante, não se possa tomar uma refeição decente, mesmo fria. Ou encomendá-la. Pagando. Qualquer hotel mediano tem serviço de quartos. Se uma pessoa tem de pagar pela quarentena, e tem serviço de quarto, também pagaria de bom grado por uma refeição quente à chegada. E umas bebidas, se também não querem abastecer o frigorífico do quarto. Bastava uma máquina automática na entrada do hotel. No meu caso, que não como noodles, muito menos aves, valeu-me meia sanduíche de atum. Ah, e também umas bolachas de água e sal e um chocolate que trazia na mochila. E foi tudo o que me passou pelo estreito até ao pequeno-almoço desta manhã documentado por uma das fotos que aqui deixo: dois ovos cozidos, um pão doce seco e uma garrafa de água. Bem sei que com MOP$600 por dia não se pode esperar caviar, mas para pão fresco, uma fatia de fiambre ou de queijo, iogurte e um sumo devia dar.
Quanto ao mais, lamento não me ter lembrado de guardar algumas saquetas de café e de chá do último hotel por onde passei. Estes são bens preciosos e inexistentes neste "hotel" de quarentena, tal como sal ou açúcar. Temos água ("purified driking water" e "mineralized water") e é um pau, como qualquer outro recluso. E o máximo que se consegue é aquecê-la na chaleira eléctrica. Dizem que faz bem à digestão.
De resto, o regime de reclusão penalizadora e cara para quem ousa sair e regressar a Macau mantém-se em toda a plenitude. O hotel continua a não ter Internet capaz nos quartos, e nem mesmo uma chamada telefónica para o exterior utilizando a rede do hotel se pode fazer. Quando liguei para a recepção para saber qual o número para realizar uma chamada local, ligando-me à rede da CTM, foi-me dito que tal não seria possível. Se quisesse teria de usar o meu telemóvel ou então, alternativa simpática, a recepcionista telefonaria para o número que eu queria contactar, pedindo a quem atendesse para me ligar de volta. E quem não tem telemóvel ou ficou com este avariado como poderá fazer? Não soube explicar. Não vinha no manual.
Desconheço, porque ainda lá não pernoitei, se o regime do "Coloane Hilton" será muito diferente deste, mas daquilo que me apercebo este hotel onde estou não se distingue do que se passa nalgumas prisões onde os detidos só podem falar para o exterior com autorização do director do estabelecimento e direito a escuta.
Escuta não sei se aqui também temos. Todavia, posso garantir que o privilégio da guarda é uma realidade sempre presente e que me entra pelos olhos de cada vez que me aproximo da vidraça hermeticamente fechada da "cela" que desta vez me reservaram. Há sempre o risco de me querer escapar para uma corrida nos trilhos e depois fugir para a liberdade ... em Hengqin.
Nascera em S. Tomé, quando o pai por lá andara, mas era Angola que admirava. Falava-me de Luanda e do Lobito com a mesma paixão com que eu lhe falava do Benfica, dos meus fugazes amores de Verão, dos livros de Pessoa, da música de Brel ou de Leo Ferré, das viagens que fiz e das que ansiava fazer.
Um dia, quando eu quis ir de férias, depois de deixar duas cadeiras para a segunda época e a Mélita me disse que não haveria "subsídio de férias", foi ele quem me arranjou uns 400 ou 500 marcos que contribuíram para uma volta à Europa. Os marcos eram do pai, tinham sobrado de uma viagem, andavam lá por casa numa caixa. Lembrou-se deles, falou com o pai, que concordou e considerou a causa justa, e combinei devolvê-los logo que pudesse. À responsabilidade dele, disse-lhe o pai com a bonomia habitual. Assim foi, embora essa ajuda não tivesse evitado o meu repatriamento de Milão. Coisas da vida; e da "melhor juventude".
Foram tempos de sonho e de sonhos, de muito estudo, de muita discussão, de muita alegria. Depois, rumei a Oriente, primeiro, a seguir ao Sul, e de novo a Oriente. Ele virou-se para Angola, terra que amava. Víamo-nos de tempos a tempos, quando se proporcionava, mas a amizade ficou para sempre. Quando por Portugal, na minha ausência, muitas vezes visitava o meu irmão, outros familiares e amigos comuns. A Mélita gostava muito dele. Apreciava nele a simpatia e a boa disposição. Eu também, que não sou diferente dela. E lá em casa todos os outros. Sempre educado, atencioso e disponível.
Não me disseram no dia. Soube-o depois, naquele que terá sido um dos mais fantásticos domingos da minha vida, em que a tristeza da notícia se misturou com a alegria e exuberância do momento que vivi.
De regresso à normalidade dos dias e das noites, pude então recordar a sua memória, levada de forma tão inexplicável, para mim, quanto terá sido pensada e reflectida a sua partida.
Lamento muito. Deus, se existe, saberá quanto. E o que se poderá aproveitar de um testemunho doloroso de uma amizade de corpo inteiro construída nos bancos da faculdade, nas idas a Coimbra, à "Queima", nas noites de estudo e de folia, em tantos e tão vividos momentos.
Poderei nunca vir a saber o que aconteceu, nem o porquê dessa tarde de 28 de Setembro, no Lubango.
Nem nunca lhe poderei contar como foi a minha experiência de conduzir, em Portimão, o Porsche 911 GT3 CUP. Contá-la-ei ao Zé e ao Palma, quando estiver com eles.
Também será o que menos interessa.
Porque aqui, o que importa, é mesmo recordar o que foi uma bela amizade, entre o seu sentido prático da vida e o meu lirismo sonhador, que ele tão bem transmitiu ao nosso caricaturista quando fui confrontado com a surpresa de ver na projecção da minha sombra os traços do autor da Ode Marítima. Foi o Alexandre quem teve a inspiração de dizer ao caricaturista quais os pontos a destacar na minha figura. E eles ficaram. Até hoje. Perseguindo-me como uma segunda pele. Vida fora, por muito errante que fosse.
Durante todos esses anos fomos companheiros inseparáveis. Estudávamos juntos, partilhávamos sebentas e livros, a minha casa foi a dele, e vice-versa.
A bem dizer, eu, que fui seu amigo, e continuarei a ser, irremediavelmente até ao fim da minha hora — porque se há alguma coisa que seja eterna, para lá dos abraços da Mélita, é a verdadeira e fraterna cumplicidade de um amigo, de uma amiga, aqui ou em qualquer outro lugar por onde passe —, irei "falar nisso a todos, / Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível", porque no relatório e contas do Além, repescando o que o outro escreveu, "tudo isso terá um sentido"; "um sentido mais belo e mais vasto / Que apenas o ter-se perdido o barco onde" ele ia.